Resumo. Trata-se de um paralelo e confronto entre duas visões da hermenêutica jurídico-penal no Brasil. A primeira, de cunho teórico, passa em revista as questões tradicionais de interpretação e analogia: conceito, importância, escolas, métodos, aplicações práticas. A segunda, de ordem crítica, se fundamenta na relatividade da dogmática e do direito em sua concretude histórica. As regras de hermenêutica jurídica, além de eventualmente contraditórias, conservam as mesmas virtudes e defeitos de qualquer sistema de linguagem articulada, à semelhança do que se passa com a linguagem utilizada pelo legislador. É impossível padronizar a conduta de um intérprete emocionalmente predisposto a indicar a solução compatível com suas próprias expectativas ideológicas e o clima de liberdade ocasionalmente desfrutado.
Palavras-chave: interpretação; analogia; hermenêutica; visão teórico-dogmática; visão crítico-metodológica; contradições jurídico-penais; força, poder, vontade, liberdade.
Introdução.
De início, nos dois primeiros capítulos, aporto algumas observações doutrinárias concernentes ao tema escolhido: interpretação e analogia em face da lei penal brasileira. Sirvo-me, como roteiro, de um texto mais antigo, acrescentando-lhe de passagem ou deixando para o final — Capítulo III — anotações atualizadas de caráter teórico-dogmático e crítico-metodológico.
Capítulo I - Interpretação da lei penal
Sumário: 1. Generalidades sobre interpretação 1.1. Conceito e importância 1.2. Classificação quanto ao sujeito 1.3. Classificação segundo o resultado 1.4. Métodos de hermenêutica jurídica 2. Hermenêutica e aplicação do direito através da história 2.1. Escolas hermenêuticas: antecedentes 2.2. Idade contemporânea: surgimento das escolas 3. Interpretação da lei penal brasileira 3.1. Importância da interpretação no direito penal 3.2. Métodos de hermenêutica aplicáveis 3.3. Interpretação analógica e interpretação extensiva 3.4. Interpretação benigna.
1. Generalidades sobre interpretação
1.1. Conceito e importância.
A palavra interpretação não pertence exclusivamente aos estudiosos do direito. Ao contrário, é empregada com freqüência nos múltiplos ramos do conhecimento e na própria vida comum. O mundo moderno não mais se espanta com a infinidade de intérpretes de filmes, de composições musicais, de obras científicas e literárias, e até de sonhos.
Há sempre alguém que traduz o pensamento de seus pares, de seus companheiros. E os homens parecem gostar da interpretação, porque mexe com o raciocínio, quebra a monotonia, empolga. Ainda hoje se toma conhecimento da escolha de um novo papa através de uma singela fumaça branca. Se a fumaça fosse escura, diria o repórter, erigido à posição de intérprete: "Por enquanto, não temos papa".
Para o filho pequeno ninguém é tão culto quanto seus pais, que sabem esclarecer os inúmeros fenômenos que excitam sua natural curiosidade.
É fácil, pois, compreender que o significado trivial do termo não sofreria radicais transformações no campo do direito. Interpretar é explicar, é precisar, é revelar o sentido. E outra coisa não se faz ao se interpretar um preceito legal, como medida indiscutivelmente útil e necessária.
Sua importância no direito não há quem a negue. É que a exegese, na expressão de Paulo de Lacerda, "toca inquestionavelmente na parte mais sensível, senão na mais vital, da ciência do direito, por interessar de modo capital à aplicação, isto é, ao lado prático da norma jurídica" (Manual do código civil, v. 1. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos,1918, p. 415).
Constitui temeridade incontestável a afirmação de que as leis são claras e precisas, podendo, portanto, dispensar qualquer exegese. Ao legislador, lembra Nelson Hungria, não foi reservado "o condão da impecável justeza da expressão" (Comentários ao código penal, v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1949, p. 48).
É preciso modificar o brocardo: com razão se diga "in claris non cessat interpretatio". Porque interpretar não implica necessariamente o fato de se tornar claro, mas requer a revelação do conteúdo e alcance da lei, independentemente até da vontade do legislador ou do significado puramente literal do texto.
1. 2. Classificação quanto sujeito.
Considerando o órgão que a pratica, a interpretação pode ser autêntica ou legal, judicial e doutrinária. Somente a primeira tem força de lei. Exemplos corriqueiros: o sentido da expressão casa , no crime de violação de domicílio (Código Penal, art. 150, § 4º); o conceito de funcionário público, para os efeitos penais (art. 327, § § 1º e 2º ); o conceito de vias terrestres, para os fins de aplicação do Código de Trânsito Brasileiro (arts. 1º e 2º , parágrafo único, da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997).
Por sua vez, as duas últimas (interpretação judicial e doutrinária), principalmente quando reiteradas, servem de auxílio e apoio ao hermeneuta ou operador jurídico.
1.3. Classificação segundo o resultado.
Se o exegeta conclui pela existência de locução inadequada, incapaz de abranger, por si só, todo o conteúdo do preceito, diz-se que a interpretação se torna extensiva, porque confere ao texto maior alcance. Neste caso o legislador "minus dixit quam voluit", isto é, disse menos do que desejou.
Magalhães Noronha (Direito penal, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 83) e Aníbal Bruno (Direito penal, t. 1. Rio de Janeiro: Nacional de Direito, 1956, p. 221) entendem que a interpretação analógica constitui espécie de interpretação extensiva. A rigor, no entanto, a exegese se denomina extensiva apenas quando se observa, em relação ao texto, um conteúdo mais amplo. A exegese analógica, por sua vez, não toma este nome em razão de confronto entre a letra e o espírito. Pode até ocorrer uma perfeita harmonia entre ambos, pois é o próprio texto que autoriza a aplicação analógica a hipóteses tipicamente previstas. Veja-se, por exemplo, a hipótese de homicídio qualificado porque cometido "à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido" (Código Penal, art. 121, § 2º ,IV). Como tantas outras, traduz uma analogia visivelmente prevista e determinada em texto específico: outro recurso que, à semelhança do que se passa com a traição, emboscada ou dissimulação, dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido.
A interpretação restritiva diminui o alcance que o texto, à primeira vista, parece apresentar, em face de sua linguagem impropriamente excessiva.
E a interpretação declarativa, por fim, se coloca exatamente entre as duas mencionadas e, por isso mesmo, não estende nem restringe a aplicação do texto. Conclui-se, então, que o legislador consignou o que desejou consignar; que o sentido encontrado condiz precisamente com a fórmula por ele empregada. Em regra, se faz acompanhar ou preceder de conhecido apelo retórico, relacionado com a tese da exclusividade e soberania da lei: "Se o legislador não distingue, não cabe ao intérprete distinguir".
1.4. Métodos de hermenêutica jurídica.
Segundo os elementos ou recursos utilizados na interpretação, costumam os autores distinguir dois métodos ou processos fundamentais: gramatical e lógico.
O primeiro, também chamado literal ou filológico, se atém exclusivamente às palavras da lei. O hermeneuta, com base nos conhecimentos de gramática, examina, por exemplo, os sinais de pontuação, a posição dos vocábulos na frase e o seu significado técnico e comum. Leva em conta, exclusivamente, a fórmula verbal usada pelo legislador.
O processo lógico preocupa-se essencialmente com o espírito da norma, que pode contrastar, algumas vezes, com o texto frio. Em face dos meios adotados toma o nome especial de processo lógico propriamente dito (sentido estrito); sistemático (lógico-sistemático); histórico (lógico-histórico); finalístico (lógico-teleológico); sociológico (lógico-sociológico). Trata-se de visão esquemática, relativamente falha e incompleta. Basta considerar que o método lítero-gramatical não abandona a lógica pròpriamente dita e envolve o exame em conjunto das palavras e frases do sistema normativo (interpretação lógico-sistemática).
O processo lógico em sentido estrito pede à lógica geral as regras necessárias ao fim colimado. Importa unicamente o raciocínio, desdobrado em deduções e induções, com as quais o processo se exaure. Apresenta muitíssimas vantagens, mas é insuficiente por si só, uma vez que esquece as mutações da vida, a diversidade das circunstâncias, os inúmeros fatores sociais, enfim, que ao direito não podem passar despercebidos.
Intimamente ligado a esse processo se encontra o método lógico-sistemático, que "nos leva a confrontar a disposição em análise com outras da mesma lei, ou outras leis, referentes ao mesmo assunto, e, às vezes, com os princípios gerais do direito" (Magalhães Noronha, ob. cit., p. 82). O hermeneuta serve-se das rubricas, do exame de determinado instituto, ramo do direito e até do direito comparado. Trata-se, a meu ver, de método obrigatório. Todo e qualquer dispositivo legal há de ser analisado e compreendido no contexto maior do sistema normativo. Assim, o homicídio doloso (CP, art. 121) cede a vez para o infanticídio (art. 123), que é espécie daquele. E subsiste na forma tentada (art. 121 c/c art. 14, II) precisamente porque não pode ser interpretado isoladamente, apartado do plano geral do legislador.
Valioso subsídio para o intérprete constitui, também, o elemento histórico. Útil é conhecer do povo os caracteres e cultura, de que fazem eco os próprios institutos jurídicos, ora efêmeros, ora perenes, atestando assim, na trajetória do tempo, sua subordinação às exigências e transformações ético-sociais. Os projetos e discussões parlamentares, as circunstâncias de momento (occasio legis) e exposições de motivos interessam de perto à pesquisa histórica.
Outrossim, não podem ser esquecidos os elementos extra-jurídicos, porquanto é comum procurar o exegeta, nas outras ciências e artes, o correto sentido do dispositivo legal.
Adota-se ainda, com muito entusiasmo, o método lógico-sociológico. Não se perquire obrigatoriamente a vontade do legislador, como o fazia a Escola Dogmática, no campo da hermenêutica. Inúmeras são as dificuldades supervenientes e o legislador não anteveria as transformações políticas, econômicas, sociais e culturais. A letra da lei fica inerte; entretanto, o direito sobrevive, através de uma interpretação realmente genuína e sensível às contingências do presente. A lei, por certo mais sábia que o legislador (Wach), abraça hipóteses por ele imprevistas, amoldando-se no tempo e rejuvenescendo no labor construtivo do magistrado.
Reconhece Benjamin de Oliveira Filho: "Método sociológico é, hoje, a expressão mágica, que espanca as brumas, dissipando as incertezas. Pois seja. O direito não é senão um fato social" (O problema da aplicação da lei. Rio de Janeiro: Haddad Editor, 1957, p. 21).
Fala-se igualmente em processo teleológico ou finalístico, considerado por Carlos Maximiliano "o melhor, o mais seguro na maioria das hipóteses" (Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,1941, p. 19).
Realmente, supõe-se que todo preceito tenha um escopo, em que se denote, como lembra Espínola Filho, inspirado na melhor doutrina, justiça e utilidade prática – o bem comum, em suma (Código de processo penal anotado, 3ª ed., v. 1. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 182/183). Essa vontade da lei, uma vez divisada, se sobrepõe à letra fria do texto, mero instrumento verbal do direito, muito vezes injusto se mecanicamente aplicado.
Assim, a delimitação do campo de atuação da norma jurídica tendo em vista o motivo (ratio legis), ou fim prático que a impulsiona, constitui tarefa inadiável do hermeneuta. Exemplo bastante claro: a forma qualificada de lesão corporal se ocorre "aceleração de parto" (Código Penal, art. 129, 1 º , IV). Ora, o termo "aceleração" implica, em regra, alguma coisa já em andamento que é submetida a maior velocidade. Se inexiste, ainda, processo de parto, este não pode ser "acelerado". Vale, então, o espírito da lei, que não quer evitar propriamente uma "aceleração" de parto, mas o próprio parto, antecipado e prematuro.
Apesar da atualidade dos dois últimos processos (sociológico e finalístico) não se pode abandonar os demais, por obsoletos ou inúteis. O ideal é combinar todos os meios indicados. Já ensinava Paulo de Lacerda, profundo estudioso da matéria, que os métodos se apóiam e se completam mutuamente, podendo, porém, em certos casos, "um prevalecer ou vir em socorro do outro, para esclarecimento da norma jurídica em relação à sua aplicação prática" (ob. cit., p. 383).
A interpretação, afinal, é uma só, diferenciando-se apenas os seus métodos. Existirá mais de uma verdade só porque vários caminhos podem ser utilizados? Não, evidentemente.
Somente o caso concreto dará ensejo ao magistrado a preferir este ou aquele método de hermenêutica, se bem que melhor se apresente, para a segurança de suas decisões, a conjugação dos diversos procedimentos. Contudo, entre a letra e o espírito, na hipótese de contraste, não cabe vacilar: fica-se com o último.
2. Hermenêutica e aplicação do direito através da história
Os métodos de interpretação, há pouco mencionados, se consolidaram lentamente através da história. Eis, abaixo, rápida síntese da matéria.
2.1. Escolas hermenêuticas: antecedentes
É certo que os romanos não chegaram a construir um corpo sistemático de regras de hermenêutica jurídica. Apenas se empenharam em formular preceitos para casos determinados, sem se preocuparem com a apresentação de princípios gerais. Imperava a obsessão pelas formalidades, pelo rito solene, de importância capital.
O poder da palavra, revelado nas relações da vida pública e privada, haveria portanto de penetrar no direito e refletir sensivelmente em sua interpretação. Segundo Ihering, todavia, o exagerado apego à palavra e à formalística mais se verificava na interpretação dos atos jurídicos do que, propriamente, na interpretação das leis. Daí a afirmação de Carlos Maximiliano, baseada em estudos do referido jurista alemão, de que "já os primitivos jurisconsultos romanos praticavam habilmente a hermenêutica evolutiva" (ob. cit., p. 72).
Os glosadores da Idade Média, em sua faina incessante, buscavam no texto romano as regras de exegese, a que aditavam outras, de direito canônico e consuetudinário. Mas não chegaram a elaborar uma autêntica doutrina interpretativa.
Estava reservada aos juristas da Idade Moderna, tendo em vista mesmo o farto material casuístico fornecido pelos glosadores, a confecção dos primeiros arcabouços teóricos de hermenêutica.
Consoante depoimento de Joaquim Inácio Ramalho (Lições de hermenêutica jurídica, 2a ed. São Paulo: Tipografia Americana, 1872, p. 4), já se divisava na obra de Hugo Grotius, De jure belli ac pacis, capítulo 16, uma preocupação em reduzir a um sistema especial a hermenêutica jurídica. Seguiram-no Puffendorf, Thomasius e Eckardus.
2. 2. Idade Contemporânea. Surgimento das escolas.
Foi a Revolução Francesa, marco indelével da História, que permitiu o crescimento de uma verdadeira escola de hermenêutica, denominada Clássica, Tradicional ou Dogmática. Contra o arbítrio judicial, regra comum até ao Absolutismo, se insurgiram os seus adeptos, proclamando uma total subserviência ao texto da lei, expressão única do direito (Montesquieu, Laurent, Pescatore).
Se a lei é clara, improcede qualquer tentativa de interpretação: in claris cessat interpretatio. Sendo a lei incerta, ambígua ou obscura, é mister perquirir a vontade, o pensamento do legislador, com o auxílio do elemento lógico. Eis aí o seu erro, pois "da vontade primitiva, aparentemente criadora da norma se deduziria, quando muito, o sentido desta, e não o respectivo alcance, jamais preestabelecido, e difícil de prever" (Carlos Maximiliano, ob. cit., p. 72). Aferrando-se ao pensamento do legislador e à rigidez das palavras, desconhecia a natural evolução dos fatos sociais, base do direito, que lhes segue os passos.
Daí a importância da Escola Histórica, fundada por Savigny, que negava a antítese letra/lógica. Em face de seus escopo, a interpretação haveria de ser uma só, desdobrando-se, isto sim, em métodos, entre os quais se incluiria o método histórico.
A interpretação, para Savigny, consistia na reconstrução do pensamento do legislador, expressão da consciência comum do povo. Impunha-se, então, o conhecimento dos costumes e dos fatos sociais ligados ao conteúdo da lei, já que o direito, produto da vontade nacional, não se poderia considerar originário da razão humana. Foi este, aliás, o grande mérito da Escola Histórica: o de haver afastado a concepção essencialmente racional da origem do direito.
José Kohler, Coviello e outros introduziram o elemento sociológico. Nítida é a separação da lei, depois de publicada, do pensamento de seus artífices. As mutações e o progresso social, em suas manifestações infindas, não seriam antevistas pelo legislador. A lei, por seu turno, resiste ao tempo. Cumpre ao intérprete a tarefa de fazer com que atinja o seu verdadeiro escopo, eminentemente social.
Quer no final do século XIX, quer nos primórdios do século XX, as teorias proliferavam, ao sopro das novas idéias, sem dúvida revolucionárias.
Para Gény, por exemplo, a livre investigação científica passou a ser considerada como fonte do direito, ao lado da lei e do costume. Inexistindo norma escrita ou consuetudinária é lícito ao juiz criar o direito. O próprio Código Civil suíço, por influência de Huber, ofereceu guarida ao preceito. Permitiu ao magistrado, na falta do direito escrito ou consuetudinário, sob inspiração da doutrina e jurisprudência consagradas, decidir segundo a regra que ele próprio estabeleceria se fora legislador.
Kantorowicz, na Alemanha, chegava ao extremo. Compete ao juiz, de acordo com sua habilidade e consciência, procurar e aplicar o direito justo, superior à própria lei, especialmente se persistem dúvidas a respeito de seu conteúdo.
O exagero é manifesto. O arbítrio dos juízes, em termos tão dilatados, acarreta a mais completa insegurança jurídica e social; fere, aliás, o princípio da independência e harmonia dos poderes, apanágio das liberdades fundamentais, dogma insubstituível das constituições.
O afastamento da lei só é permitido em hipóteses excepcionais: somente quando sua aplicação, no caso concreto, não atender aos fins sociais a que se destina, tornando-se portanto injusta. É a conclusão do Supremo Tribunal Federal, que sempre repeliu, via de regra, a decisão contra legem. O que o juiz não poderá fazer, ensina Alípio Silveira, "é considerar uma lei como injusta em geral, em face do bem comum, da maneira por que ele o entende, e negar-lhe sempre aplicação" (O supremo tribunal e a decisão contra a lei, Revista Jurídica, v. 54. Porto Alegre: Sulina, 1961, p. 26). Hoje, todavia, com a percepção dos males do próprio direito penal como solução dos problemas sociais, fica mais fácil conciliar injustiça com inconstitucionalidade e, em conseqüência, aproximar o direito penal (em matéria de punição) às teses do direito justo.
A filosofia positivista influiu também na formação de uma teoria interpretativa. Vander Eicken, discípulo das idéias de Augusto Comte, chegou a afirmar que à interpretação se aplica a lei dos três estados — donde haver sido, no passar do tempo, literal (fase teológica); lógica (fase abstrata); e positiva (fase científica).
A corrente positivista, partindo do pressuposto de que o direito se constitui, fundamentalmente, em uma ciência prática, teleológica, que visa à felicidade social, faz do fim da lei o objeto primordial da interpretação.
Mesmo à revelia da concepção filosófico-jurídica de seus primeiros defensores, a doutrina ganhou numerosos adeptos e conserva, ainda hoje, ao lado da doutrina sociológica, a mais pujante vitalidade.
No Brasil, aliás, os autores modernos não escondem sua preferência pelos dois últimos processos, que nem um pouco se contradizem, mas se combinam, se completam, e até se confundem. A propósito, para Inocêncio Borges da Rosa "a interpretação evolutivo-sociológica é teleológica, porque se preocupa com a finalidade da lei, que outra coisa não pode ser senão a finalidade do direito, que é promover o bem comum e, dentro deste, o bem individual" (Dificuldades na prática do direito. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1939, p. 254).
A adoção de ambos os processos se tornou inclusive obrigatória. É que o juiz, segundo estatui o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, atenderá na aplicação da lei aos fins sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum. Com a mesma dose de razão assim também procederá ao examinar e aplicar as normas relativas aos demais ramos do direito.
Mais recentemente, com a Constituição Federal de 1988, redescobriu-se a fonte maior de todos os direitos: a liberdade, a igualdade e a dignidade do homem. Assim, só poderia haver direito penal que se limitasse, em caráter subsidiário, à proteção exclusiva de bens jurídicos; à efetiva lesão ou perigo concreto de lesão; a uma tipicidade ao mesmo tempo formal (centrada na lei escrita) e material, a exigir, em termos mais estritos (conteúdo ideológico), a produção de resultado desvalioso e intolerável, objetivamente imputável ao risco proibido inerente à conduta.
Tudo isso não surgiu abruptamente. É fruto, justamente, do esforço dogmático de juristas nacionais e estrangeiros, preocupados com a reconstrução de um direito penal mínimo e garantista, válido para todos os membros do grupo social. Veja-se, a respeito do tema, dentre outros: Luiz Flávio Gomes, Teoria constitucional do delito no limiar do 3° milênio, Boletim IBCCrim n° 93, agosto de 2000, p. 3/4; também Direito penal, parte geral: introdução. São Paulo: RT, 2003, p. 27/166.
Por sinal, os que conhecem o direito em sua concretude histórica (de qualquer país ou região; de caráter penal ou extra-penal) sabem que o juiz, ainda que obrigado a aplicar a lei, na expressão de Chaïm Perelman, "dispõe, não obstante, de um conjunto de técnicas próprias do raciocínio jurídico que lhe permitem, o mais das vezes, adaptar as regras ao resultado buscado (grifos meus). A intervenção do juiz possibilita introduzir no sistema jurídico considerações relativas à oportunidade, à justiça e ao interesse geral que parecem, numa perspectiva positivista, alheias ao direito" (Ética e direito, [trad.]. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 426).
Examinemos agora, de modo perfunctório, a questão da interpretação da lei penal, no Brasil.
3. Interpretação da lei penal brasileira.
3.1. Importância da interpretação no direito penal.
Poder-se-ia pensar que o direito penal, por suas características preventivo-repressivas, prescinde de qualquer processo exegético, livrando-se assim, em sua aplicação prática, de possíveis enganos e contradições, que concorrem para o descrédito da justiça.
Cesare Beccaria, a propósito, foi bem incisivo, ao proibir qualquer tentativa de interpretação das leis criminais. Estas deveriam ser executadas segundo seu texto, a fim de que cada cidadão possa "calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, porque tal conhecimento poderá desviá-lo do crime" (Dos delitos e das penas. São Paulo: Atena Editora, 1954, p. 38).
Para a época do humanitário marquês (1764) a doutrina até certo ponto se explicava, pois tinha em mira preservar os homens da prepotência judicial, muitas vezes cruel e subserviente.
Os tempos mudaram. A hermenêutica jurídica, teoria sistemática da interpretação, já alcançou a maturidade. Vedá-la no campo do direito criminal não é apenas ignorar sua utilidade e importância, é atestar um diminuto horizonte de raciocínio, ou retroceder, voltar ao atraso de outras épocas, sem as escusas das velhas circunstâncias.
A legislação penal também constitui obra humana, suscetível de imperfeições, de obscuridades. Nem seria este o motivo que leva o jurista à pesquisa de seu espírito. Ao processo exegético, como já foi visto, se submete igualmente a norma cristalina.
Interpreta-se a lei penal porque também ela, como as demais, possui um sentido e alcance próprios, que não podem ser esquecidos. O texto frio, mero arcabouço verbal, abstrato e solene, com seus conceitos e advertências, precisa ser compreendido em seu conteúdo autêntico. Isto se obtém à custa de um consciencioso trabalho exegético, que impede se cometam injustiças, e das piores, porquanto atingem o homem em sua honra e liberdade.
3. 2. Métodos de hermenêutica aplicáveis
Ensina Aníbal Bruno: "Não se deve pensar que o direito penal exija um método particular de interpretação, que fuja à rotina da interpretação jurídica em geral. Qualquer processo idôneo de hermenêutica pode ser aí aplicado" (ob. cit., p. 213/214).
Neste particular, portanto, qualquer método é permitido. Pode-se indagar sobre o fim do preceito, sobre sua origem, compará-lo com outros, dissecar-lhe as palavras, analisá-las em si ou em conjunto.
Já se discutiu, por exemplo, a respeito da verdadeira exegese do art. 218 do Código Penal, assim redigido: "Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de catorze e menor de dezoito anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou presenciá-lo. Pena — reclusão, de um a quatro anos".
A principal dúvida, logo removida, residia na expressão "ato de libidinagem", capaz ou não de comportar a própria cópula carnal. Os tribunais responderam afirmativamente e a matéria se tornou pacífica.
Para a certeza desse entendimento foram utilizados os mais variados métodos de hermenêutica, conforme se depreende de trabalho apresentado por José Rocha Ferreira Bastos à Semana Comemorativa do Duodecênio do Código Penal (Sedução e corrupção de menores. Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal. Rio de Janeiro, ano XXV, 1955):
1. Método literal: concluiu-se que a expressão ato de libidinagem, por si só, abrange a cópula carnal.
2. Método lógico: se a corrupção de consegue com o menos, também se conseguirá com o mais (cópula carnal).
3. Método sistemático: os artigos 214 (atentado violento ao pudor) e 216 (atentado ao pudor mediante fraude) se referem expressamente a "ato libidinoso diverso da conjunção carnal", reconhecendo a inclusão desta no conceito genérico de ato de libidinagem. O silêncio do artigo 218, neste ponto, autoriza a conclusão de que o legislador tacitamente apregoou a conjunção carnal como ato de libidinagem.
4. Método teleológico: a finalidade da lei é a defesa da vida sexual e da idoneidade moral do menor.
Note-se que a recente revogação do crime de sedução (Lei n.º 11.106/2005) reativou a importância do sentido e alcance do tipo legal concernente à corrupção de menores. Com efeito, nada impede que certas "seduções" se encaixem agora, em contrapartida, na figura delituosa do citado art. 218 do Código Penal em vigor.
3.3. Interpretação analógica e interpretação extensiva.
Não se confundindo a interpretação extensiva com a analogia propriamente dita, lícito se torna seu emprego em direito penal, mesmo que acarrete prejuízo para o réu. Seria um contra-senso fugir o hermeneuta do conteúdo da lei. Se esta o permite expressamente, como repudiá-la?
Ressalte-se, no entanto, que se deve atentar exclusivamente para a lei, para o seu espírito, nada mais. A adição de elementos estranhos à norma incriminadora, para enquadrá-la, assim adulterada, num caso concreto, não só compromete em sua essência a função interpretativa como fere acintosamente o salutar aforismo da legalidade dos crimes. O artigo 1º do Estatuto Penal consagra o princípio do nullum crimen, nulla poena sine lege, ainda hoje reverenciado, expressão e garantia que é (ou deveria ser) da liberdade jurídica, barreira intransponível à tirania e à prepotência.
Daí não se conclua que se proíbe a interpretação extensiva. Incorre em verdadeira ilusão quem afirma o contrário. É de espantar, aliás, o receio de Carlos Maximiliano (ob. cit., p. 383) a respeito do uso da expressão "exegese extensiva", especialmente no direito penal, preferindo falar em "interpretação estrita", visto que oferece, na sua opinião, menos margem a equívocos e divergências.
Basileu Garcia segue-lhe os passos: "Quanto aos resultados, a interpretação da lei que pune não deve ser extensiva. É uma decorrência do princípio contido no art. 1º do nosso Código. Não se pode dar ao texto penal interpretação que lhe confira maior amplitude do que a que resulta naturalmente da sua força compreensiva". E diz, mais adiante: "declarativa ou estrita deve ser a interpretação" (Instituições de direito penal, t. 1. São Paulo: Max Limonad, 1963, p. 159).
A exegese extensiva, afirme-se logo, não pode ser considerada, principalmente pelos estudiosos da matéria, um monstro de sete cabeças, sempre pronto a desvirtuar o genuíno sentido do texto.
Afinal de contas — e isto é elementar — ela não constitui método, ou processo. Revela-se apenas como efeito, conclusão, conseqüência. É simples resultado, inevitável ou não, conforme o caso, do trabalho desenvolvido pelo hermeneuta. No momento em que se proíbe a interpretação extensiva, inconfundível com a analogia, se proíbe em verdade o próprio mecanismo de interpretação e, como possível conseqüência, o respeito à vontade da lei ou do legislador.
O próprio art. 1º do Código Penal, referente à legalidade dos crimes e das penas, sempre foi interpretado em sentido amplo (lei e decreto-lei), a fim de que se evitasse o paradoxo de sua auto-anulação (autofagia), revelada por sua forma: decreto-lei (Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940). Não deixa de ser curioso um decreto-lei afirmar que não há crime sem lei...
Exemplos claros de interpretação extensiva nos fornece Nelson Hungria: "Quando o Código incrimina a bigamia (artigo 235) está necessariamente implícito que abrange na incriminação a poligamia; quando incrimina o rapto (artigo 219), sem outra distinção que a referente aos meios executivos, compreende não só o rapto per abductionem (com remoção da vítima de um lugar para outro) como o rapto per obsidionem (com arbitrária retenção da vítima em lugar aonde fora por sua livre vontade); quando um fato é incriminado por criar uma situação de perigo (v.g.: o fato previsto no art. 130 do Código Penal), também o é, não obstante o silêncio da lei, quando cria uma situação de dano efetivo (crime exaurido)" (ob. cit., p. 70).
Outros exemplos de exegese extensiva: o reconhecimento da prática do crime de racha (Código de Trânsito Brasileiro, art. 308) não apenas através de "corrida automobilística", mas também de outros veículos automotores (motocicletas, caminhões etc.); a inclusão das armas impróprias (chave inglesa, bisturi, foice, etc.) no conceito de arma, para efeito de majoração da pena do crime de roubo (CP, art. 157,§ 2º , I); a admissão, como vítima do crime de omissão de socorro, de qualquer pessoa, mesmo válida ou sem ferimentos, desde que em grave e iminente perigo de vida; a forma qualificada de lesão corporal mesmo quando não ocorra, propriamente, aceleração de parto (já tratei do assunto no capítulo anterior), mas sua inesperada e perigosa antecipação, por força da violência sofrida pela gestante (CP, art. 129, § 1°, IV); a forma qualificada de receptação não só na hipótese em que o agente "deve saber" mas, como parece óbvio, na hipótese em que efetivamente "sabe" que a coisa receptada é produto de crime (CP, art. 180, § 1º).
A exclusão desse tipo de exegese, do exposto, mesmo em face do direito criminal, é de todo indefensável. O máximo que se pode aceitar é a advertência de que "em matéria penal só deve ser admitida nos casos estritamente necessários" (Nelson Hungria, ob. cit., p. 70). Isto porque a exegese extensiva, dizendo mais do que as palavras do texto, pode caracterizar uma conclusão injusta, por defeito de técnica ou má-fé do aplicador da lei. Mas só nestas hipóteses é mister repudiá-la, em razão do vício de origem, que nega sua própria finalidade. Inexistindo qualquer falha ela se torna pura, inatacável. E por quê? Porque se cumpre a lei, por seu espírito, diversamente do que pode acontecer quando se invocam outros princípios à revelia de seus limites lógico-dogmáticos, ou seja, dos limites lógico-dogmáticos da lei pertinente à hipótese.
E não se alegue, para se tentar impedir a interpretação ampliativa, que os preceitos penais são de ordem pública, proibitivos ou imperativos, e limitam a liberdade do homem. Tudo isso faz lembrar, tão somente, a necessidade de maior cautela na sua interpretação, e que se deve adotar, na hipótese de dúvida, a solução mais benigna.
3.4. Interpretação benigna
Quer isto significar que a incerteza em relação ao espírito da norma não deve ocasionar prejuízo para o réu, no momento da opção. Ao revés, é de boa política favorecê-lo, por uma questão mesmo de consciência, quando falta convicção ao magistrado a respeito da melhor exegese — e única "verdadeira". Neste caso, sim, resolve-se o dilema com uma exegese restritiva ou declarativa, sendo a norma incriminadora; e com uma exegese extensiva, se o preceito beneficia o réu.
A rigor, porém, como assevera Bento de Faria, "não existe interpretação benigna ou severa; há somente interpretação verdadeira, desde que a falsa não poderia ser considerada" (Código penal brasileiro comentado, v. 1. Rio de Janeiro: Record, p.70).
Assim, a adoção do princípio do in dubio pro reo apenas é consentida depois de esgotados todos os recursos de hermenêutica, isto é, exclusivamente depois que a interpretação se mostrou insegura, impotente, duvidosa.
Vejamos, em seguida, no próximo capítulo, um tema correlato: analogia em direito penal.
Capítulo II - Da analogia em direito penal
Sumário: 1. Conceito e fundamento 2. Natureza jurídica da analogia 3. Analogia em face da lei penal brasileira 3.1. Analogia in malam partem. 3.2. Analogia in bonam partem.
1.Conceito e fundamento
Os vocábulos gregos ana (entre) e logos (razão) deram origem à expressão analogia, utilizada nas ciências físicas e matemáticas, e bem assim na filosofia, onde é entendida como espécie de raciocínio "que consiste em passar de semelhanças verificadas a outras não verificadas", como ensina Armand Cuvillier (Manual de filosofia [trad.]. Porto: Educação Nacional, 1948, p. 319).
A necessidade de sua inclusão no campo de aplicação do direito sentiram-na os próprios romanos, sob o fundamento de que deve prevalecer o dispositivo correspondente onde se depare razão igual à da lei: ubi eadem legis ratio, ibi eadem legis dispositio.
De fato, a analogia se baseia na semelhança de elementos existentes nas situações contempladas e não contempladas em lei.Vale, pois, como recurso ou método de integração jurídica, destinado à solução dos casos omissos.
Tem por função precípua o preenchimento das lacunas do direito positivo. O legislador, por mais hábil e cauteloso que seja, não pode prever todos os fatos da vida social. Sua limitação e impotência ele mesmo as reconhece, donde o motivo pelo qual prescreve, inclusive, formas de suprimento dos espaços vazios. Sobressai entre essas formas a analogia, porquanto retira da lei a regra jurídica adaptável a uma hipótese dada.
Existem autores que apontam um outro tipo de analogia, dita jurídica, que não recorreria à lei, e sim, aos princípios gerais de direito, em face da ausência de norma expressa capaz de abranger, por identidade de razão jurídica, o caso omisso de que se cogita. Por tratar-se de hipótese destituída de importância prática, a distinção é, não raro, criticada. É muito mais provável que ocorra a simples subsunção do fato ao princípio geral de direito, circunstância que dispensa e elimina o processo analógico.
Na verificação das similitudes procede-se por indução, mas indução incompleta, que vai do particular para o particular coordenado. É o que ensina Del Vecchio, citado por Alípio Silveira (Analogia, Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, v. 3, p. 222). Já em sua fase final a analogia implica, para muitos, raciocínio por dedução, revelado pela extensão da lei, ou de seu princípio geral fundamental, mais geral e elevado, como prefere Coviello, ao caso omisso cuja solução se procura.
Compreende-se, pois, o papel importante da lógica na utilização da analogia. Assevera, no entanto, Alípio Silveira, e com razão, que o método analógico "não se reduz a uma cadeia de silogismos ou a uma indução imperfeita. Entra na analogia o elemento valorativo, político-social" (Analogia, cit., p. 228).
É que o direito, visível no texto ou latente no sistema, está longe de circunscrever-se a construções geométricas de pura lógica. Ao revés, se o propósito das regras jurídicas, na expressão de Balthazar Barbosa, estribado em Pontes de Miranda, é "regular o entrechoque dos interesses, de modo que haja paz e, pois, ordem" (A jurisprudência e as transformações sociais. Revista da Faculdade de Direito de Caxias do Sul, nº 1. 1964, p. 129), na própria realidade objetiva se haverá de procurá-lo, pois que aí ele nasce e se desenvolve, como processo de adaptação social. Por isso se diz que as semelhanças devem ser encaradas sob o ponto de vista de uma verdadeira valoração jurídica. Fatores indiferentes ao direito, embora idênticos, não podem autorizar o emprego da analogia. Esta somente se justifica depois de constatada a mesma ratio juris, que lhe serve de fundamento.
2.Natureza jurídica da analogia.
Discutem os autores a respeito da natureza jurídica da analogia. Ferrara, por exemplo, enquadra-a na noção de interpretação, tomada em sentido amplo, uma vez que o trabalho do jurista fica sempre vinculado à lei. Grispigni, por seu turno, considera-a como espécie sui generis de interpretação, porquanto não passa de "uma descoberta de uma disposição jurídica dentro do sistema, se bem que em forma latente" (apud Ruy da Costa Antunes. Da analogia no direito penal. Recife: 1953, p. 9).
Uma vez se atente para o próprio conceito de interpretação, ver-se-á que os fundamentos apresentados, corretos em princípio, porque destacam uma faceta do processo analógico, não são suficientes para a conclusão a que chegaram.
Se a analogia reclama necessariamente ausência de dispositivo legal que regule uma certa hipótese, não se deve falar em "interpretação analógica", tendo em vista que "é impossível interpretar uma norma inexistente" (Giulio Battaglini. Direito penal [ trad.] . São Paulo: Saraiva, 1964, p. 61). Poder-se-ia contra-argumentar que não é uma norma inexistente que se interpreta, mas justamente o preceito de lei que se adaptaria ao caso concreto. O disparate seria semelhante: concluir, por interpretação, que determinado preceito se estende a um caso omisso (!) é o mesmo que não interpretar, é subverter toda a estrutura da hermenêutica, minando-a em sua base, desmoronando-lhe o sistema.
A confusão de conceitos parece advir do fato de o magistrado, em sua atividade prática, primeiramente preocupar-se com a interpretação dos dispositivos que porventura se aplicariam a uma hipótese dada. Realmente, o processo exegético, neste mister, se torna indispensável. Todavia, desde que se constate a existência de uma lacuna, suscetível de ser preenchida pelo recurso analógico, não cumpre mais falar em interpretação. Esta já se exauriu, cedendo então lugar ao processo analógico propriamente dito. E isto é fácil de compreender-se, pois a fase interpretativa também se mostra independente da aplicação de um preceito a um caso previsto em lei. Antecede-a na simples verificação do alcance e conteúdo do texto, nada mais. Apenas se concebendo a aplicação no sentido amplo é que se pode enxergar a interpretação como uma fase ou etapa sua. No sentido estrito, particular, a aplicação é geralmente empregada "para exprimir a atividade prática do juiz ou administrador, o ato final, posterior ao exame da autenticidade, constitucionalidade e conteúdo da norma", como ensina Carlos Maximiliano (ob. cit., p. 22).
Eliminada, assim, a natureza interpretativa da analogia, cabe verificar se tem procedência a teoria que lhe imprime um genuíno caráter de criação do direito.
Considerando que o direito não se resume na lei, é de se reconhecer, logo de início, a possibilidade da afirmação, mormente quando se sabe que o magistrado, atento às circunstâncias especiais e mutáveis da vida social, não se pode eximir de proferir sentença, sob o pretexto de silêncio, obscuridade ou lacuna da norma escrita.
Fonte do direito não é apenas a lei: encontra-se-o também nos costumes, na jurisprudência e em seus próprios princípios básicos ou gerais.
Nelson Hungria é enfático: não estando prevista a hipótese nem explícita nem implicitamente, a analogia importa "criação ou formação de direito novo, isto é, aplicação extensiva da lei a casos de que esta não cogita. Com ela, o juiz faz-se legislador, para suprimir as lacunas da lei. É um processo integrativo e não interpretativo da lei" (ob. cit., p 73).
Também para François Gény a analogia possui caráter de verdadeira criação do direito. Separando-se da fonte formal, como instrumento independente de elaboração jurídica, ela constitui, aliás, o principal processo de indagação científica.
Forçoso é reconhecer a sutileza da matéria. Basta lembrar que considerável parcela da doutrina se inclina no sentido de negar essa função criadora, asseverando que o processo simplesmente revela um princípio latente no ordenamento jurídico. Alguns, como já foi visto, chegam inclusive a ampliar o conceito de interpretação, a fim de nela situarem a analogia.
Com isso deram ensejo à formação de uma teoria mista, que se propôs a conciliar as duas correntes (Windscheidt, Coviello). Afirma Ruy da Costa Antunes: "Reunindo certos elementos comuns a ambas as hipóteses, melhor será que aceitemos, com Coviello, constituir a analogia um meio-termo entre o processo interpretativo e a criação da lei pelo juiz" (ob. cit., p. 27).
No entanto, se há uma natureza mista, esta não transparece através da simbiose interpretação/criação do direito. A interpretação difere, em essência, da analogia. Pouco importa que juristas de renome ainda confundam os dois processos. Das divergências e divagações doutrinárias sempre se pode retirar algo de útil e de verdadeiro, mas o que é impreciso ou contraditório... deixa-se de lado!
Muito mais consentâneo com os conceitos usuais é o reconhecimento de que a analogia, servindo-se indiretamente de um preceito legal determinado, não cria, a rigor, o princípio jurídico que informa a lei: apenas o revela ou descobre, eis que ele já se encontraria latente no sistema.
Por outro lado, em face da ausência de norma e conseqüente existência de lacuna, sua integração se realiza mediante a criação — expressão tomada em sentido relativo — de uma regra específica, individualizada, válida exclusivamente para o caso concreto. De outro modo seria impróprio falar em função integrativa, de vez que a analogia não iria integrar à lei um princípio preexistente. Isto é mais compreensível quando vem à lembrança a necessidade da elaboração de um novo dispositivo pelo próprio legislador, se quisesse regular a hipótese imprevista. Não o fazendo, deixa a tarefa ao magistrado.
Por sinal, a interpretação das leis, em face da complexidade e variabilidade das relações sociais, pode possuir "uma função até certo ponto de recriação do direito", conforme assinala Aníbal Bruno (ob. cit., p. 207). E Carlos Maximiliano: "O juiz, até certo ponto, exerce função relativamente criadora, como as câmaras, desde que não se pode abster de decidir, com alegar obscuridade ou silêncio da lei" (ob. cit., p. 95). É neste sentido que Victor Nunes Leal se refere ao "fluxo criador da jurisprudência" (Atualidade do Supremo Tribunal. Revista da Faculdade de Direito de Caxias do Sul, nº 1. 1964, p. 145)
Em suma: conforme o prisma pelo qual se examine a questão, pode-se falar em revelação de um princípio superior, ínsito no sistema legal, ou em criação de uma regra jurídica especial para a situação anômala. "Nada há de contraditório nisto, explica Alípio Silveira, pois um mesmo princípio jurídico pode informar vários dispositivos legais" (Analogia, cit., p. 228). Assim, a regra aplicável ao caso omisso já estaria compreendida no princípio geral, mais elevado, latente no sistema.
Podemos, agora, examinar o assunto à luz da lei penal brasileira.
3. Analogia em face da lei penal brasileira
3.1. Analogia in malam partem.
Entendeu o legislador pátrio (e isto persiste em pleno século XXI) de consignar, na Lei de Introdução ao Código Civil, diretrizes sobre o preenchimento das lacunas. Dispõe o art. 4º : "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito".
Se o princípio se estende aos demais ramos do direito não mais se discute na doutrina. A Lei de Introdução ao Código Civil, em razão da natureza de seus dispositivos, interessa a todos os setores do direito e a eles se aplica indistintamente, a menos que norma específica estabeleça de forma diversa.
Assim é que, na conceituação de crime e imposição de pena, legítimo seria o emprego da analogia se não o vedasse o art. 1º do Código Penal: "Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal".
Trata-se de norma básica, síntese do moderno direito penal. Já apregoava Franz von Liszt: "Segundo a intuição moderna, a lei é a única fonte do direito penal. Todas as disposições penais pertencem, pois, ao direito estatuído" (Tratado de direito penal alemão, [trad.], t. 1. Rio de Janeiro: F.Briguiet, 1899, p.132).
É bem verdade que já se procurou desmentir o valor do apotegma para a época presente. Alega-se que o crime em si, como fato nocivo e anti-social, existe independentemente de qualquer construção legislativa, não sendo justo que o respectivo autor permaneça impune.
Desconhecem os que assim pensam o receio, aliás natural, de uma justiça autoritária e hipertrofiada. Para eles, "as razões históricas, quanto a esse temor, seriam eventuais, como os excessos do arbítrio judicial do século XVIII" (Roberto Lyra. Direito penal, v.1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1936, p. 250).
Demonstrou o contrário a legislação nacional-socialista, que permitiu se identificasse a analogia, em suas aplicações práticas, com a política destruidora do Führer. Embora menos severa, também a prescrevia o código penal da então URSS, de 1926. A analogia era baseada na idéia de defesa social, de caráter político. Depois, com a reforma de 1958, adotaram os soviéticos o princípio da reserva legal.
Pouco vale o argumento de que países legalistas tenham ilidido o princípio do nullum crimen, nulla poena sine lege. Muito menos serve de apoio o precedente do Tribunal de Nuremberg, considerado por Ruy da Costa Antunes o maior tribunal da história, que "não vacilou em recorrer à analogia" (ob. cit., p. 130).
Se erros foram cometidos, nenhuma culpa se pode atribuir ao apotegma. Serviram até para despertar a atenção dos juristas contemporâneos, os quais, longe de abandoná-lo, se têm preocupado em garantir-lhe a eficácia, mediante uma formulação condizente com seu elevado significado político.
Quanto ao Tribunal de Nuremberg, convém lembrar que para muitos "é indefensável, uma vez o apreciemos sob o aspecto jurídico. Basta invoquemos, para essa afirmativa, a regra tradicional do nullum crimen, nulla poena sine lege, que, no caso, foi absurdamente supressa" (José Rocha Ferreira Bastos. O problema da criminalidade de guerra. Revista Jurídica, n.19. Porto Alegre: Organização Sulina, 1956, p.33).
O Brasil não abre mão daquela máxima. Sua inclusão nas constituições e códigos penais já denota uma tradição altamente dignificadora do senso jurídico dos nacionais. Já advertia Filinto Bastos: "Temerário e anti-social seria entregar aos caprichos da tirania, às paixões ou à ignorância do executivo, ou ao arbítrio dos juízes e tribunais, a liberdade e a vida do cidadão, deixando-lhes a faculdade de, a seu talante, qualificar delitos e prescrever penas que a estes fossem aplicáveis" (Breves lições de direito penal. Bahia: Tipografia Almeida, 1906, p. 41).
Há um caráter essencialmente político, que logo se denota: é a certeza do respeito aos direitos do homem. Com isso, desaparece o medo de uma justiça duvidosa. São palavras de Bento de Faria: "Ninguém pode viver na incerteza do que é ou não é punível, perdendo, assim, a garantia de tranqüilidade" (ob. cit., p. 74).
Deve-se ainda recordar que o raciocínio por analogia pertence ao magistrado, mas "pode não ser o do criminoso — e o que importa, em direito penal, é a intenção do criminoso"(Alcino Pinto Falcão, As garantias individuais como limite ao arbítrio da repressão penal, Revista Jurídica n.º 18. Porto Alegre: Organizações Sulinas, 1957, p. 61). Sob este aspecto, segundo Nelson Hungria, a supressão do princípio da reserva legal afetaria a própria noção de culpabilidade, que não pode existir sem a consciência da violação do dever jurídico, ou sem a possibilidade dessa consciência.
Por tudo isso, e especialmente em nome do ideal de liberdade, tem plena justificativa a total consagração do aforismo, com a conseqüente vedação da analogia in malam partem.
3. 2 Analogia in bonam partem.
Entretanto, não se pode estender a proibição da analogia a hipóteses que se não relacionam com o princípio do nullum crimen, nulla poena sine lege. Contanto que a analogia nenhum prejuízo acarrete ao réu, mas venha em seu auxílio, lícito será seu emprego. Não o proíbem a Constituição, nem o Código Penal — antes o permitem.
O silêncio do Código, neste particular, não deve ser interpretado sob o signo da intransigência. Ao revés, reclama uma análise mais acurada de todo o ordenamento jurídico brasileiro, assim como um exame cuidadoso das conseqüências da analogia in bonam partem.
Ora, já ficou patenteado que o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil se aplica aos demais ramos do direito, desde que preceito especial não disponha em sentido diferente. São concordes, nesta assertiva, juristas do porte de Alípio Silveira, Carvalho Santos, Clóvis Bevilacqua, Eduardo Espínola, Espínola Filho, Frederico Marques, Magalhães Noronha, Pontes de Miranda, Serpa Lopes e tantos outros.
No caso do direito penal, só existe um dispositivo de lei que versa sobre o assunto. É o artigo primeiro, que de modo peremptório não admite a analogia no tocante à definição de crime ou imposição de pena. Refere-se, pois, única e exclusivamente, à analogia in malam partem.
Nelson Hungria, no entanto, contrapõe à analogia in bonam partem a circunstância de serem excepcionais os preceitos concernentes à exclusão de crime ou de culpabilidade, isenção ou atenuação de pena e extinção de punibilidade, concluindo que "não admitem extensão além dos casos taxativamente considerados" (ob. cit., p. 76).
De fato, segundo um velho preceito de hermenêutica, as exceções se interpretam estritamente — exceptiones sunt strictissimae interpretationes. Deste teor era o artigo 6º da antiga Introdução ao Código Civil.
Não obstante, a analogia benigna é defendida por enorme parcela da doutrina mundial, com a qual sintonizam acatados penalistas pátrios. Os que lhe são adversos constituem, no Brasil, flagrante minoria.
O assunto já fora debatido em conclaves internacionais, de que sai sempre vitoriosa a tese de sua legitimidade. Recorde-se o IV Congresso Internacional de Direito Penal (Paris, 1937) e o I Congresso Latino-Americano de Criminologia (Buenos Aires, 1938). Em 1963, em Santiago do Chile, foi convocada uma reunião de penalistas da qual participaram Nelson Hungria, Basileu Garcia e Heleno Fragoso, com o fim de se elaborar um Código Penal Tipo para a América Latina. A declaração de princípios, então aprovada, elimina unicamente a analogia in malam partem (Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal da UEG, nº 4, 1964, p 145 a 152).
Teria perdido o seu prestígio o provérbio da interpretação estrita?
Positiva seria a resposta, logo à primeira vista, uma vez se reconhecesse o caráter excepcional daquelas normas.
Em verdade, porém, nem o provérbio caiu em completo desuso nem é pacífica a doutrina na conceituação e determinação dos preceitos gerais e excepcionais.
Prova disso oferece Aníbal Bruno, para quem as normas que beneficiam o réu "não são exceções às normas incriminadoras, mas expressões, por si mesmas, de princípios gerais que se aplicam à matéria que delas se ocupam" (ob. cit., p 209).
Assim também pensa Ruy da Costa Antunes (ob. cit., p. 219). Não é absoluto o poder punitivo do Estado. Ao contrário, sempre se condiciona à prévia verificação de certas circunstâncias, atinentes à própria noção de crime e ao complexo de valores (vida, liberdade, etc.) considerados não isoladamente, mas em harmonia com o sistema que lhe cabe preservar. O que se observa, em outras palavras, é a existência sempre possível de determinadas condições (idade, saúde mental, necessidade, etc.) que concorrem para a limitação do poder punitivo do Estado.
O argumento é convincente. Determinadas normas não podem ser consideradas excepcionais apenas porque traduzem a abstenção punitiva do Estado. Os mortos e os animais não sofrem penas. Trata-se de princípio indiscutível (nos últimos séculos, pelo menos). Pois bem: tal afirmação implica exceção a alguma regra? Não, obviamente. O mesmo raciocínio é válido para o exame das normas que isentam de pena os loucos e os menores, por exemplo.
Ensina, outrossim, Carlos Maximiliano: "A disposição excepcional e aquela a que a mesma se refere devem ser de natureza idêntica; enquadram-se na mesma ordem de relações a exceção e a regra" (ob. cit., p. 276). Ora, punir e não punir são expressões que não possuem a mesma natureza, nem se enquadram na mesma ordem de relações, pois uma sempre nega a outra, inevitavelmente.
Não obstante, ainda que se reconheça o caráter excepcional daquelas normas, hão de existir outros motivos — e de fato existem — que justifiquem a analogia in bonam partem.
Não mais se concebe o Estado todo-poderoso, arbitrário, absoluto. O Estado é meio e, não, fim, com bem disse Ataliba Nogueira (O Estado é meio e não fim. São Paulo: Saraiva: 1955). Mormente quando se legitima no poder de punir, como instrumento do direito, não pode prescindir do elemento ético, que informa e estrutura, dentre tantas outras, a doutrina da responsabilidade, das causas justificativas, das circunstâncias atenuantes e agravantes.
A vontade (fonte de aferição do grau de culpa) e a necessidade (base da teoria da inexigibilidade de outra conduta) são conceitos que interessam não só à filosofia como ao próprio direito penal. Este vive de moral impregnado, tanto que do crime se diz comumente que constitui a violação do mínimo ético. De outra forma, não se poderia subentender que a lei é conhecida de todos. Onde buscar esta presunção, à vista de tantos analfabetos e leigos no direito? Só há uma resposta: na consciência de todos e de cada um. Na própria noção de sociabilidade. Na capacidade potencial de discernimento, inata no homem, entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto.
Por isso se há de convir, com José Frederico Marques, que são os mandamentos do bem comum que permitem a construção analógica "para considerar-se lícita uma conduta cuja punição viria ferir a consciência ética da coletividade, e contrariar suas normas de cultura moral e social"(Tratado de direito penal, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 143).
Percebe-se, pois, que o brocardo da interpretação estrita nunca foi erigido em dogma de hermenêutica, mesmo porque "se aplica com a maior circunspecção e reserva, e comporta numerosas exceções" (Carlos Maximiliano, ob. cit., p.285). Os brocardos, aliás, proliferam com facilidade, alguns são até antagônicos, outros surgem de casos isolados, não podendo estender-se a todas as situações da vida social. Na sua escolha se percebe, muitas vezes, o genuíno magistrado, de quem se deve esperar um lúcido espírito crítico, incapaz de se deixar seduzir por parêmias enganadoras.
A propósito, especialmente no direito penal, outros aforismos se levantam, em nome da eqüidade e do bom senso. Recorde-se o que serve de fundamento à própria analogia: Ubi eadem ratio ibi idem jus. Se existe a mesma razão jurídica, por que correr-se o risco de uma punição sumamente rigorosa? Acaso a liberdade do homem vale menos que uma pretensa e duvidosa defesa social? Não, em absoluto, pois não se compreende a defesa da sociedade sem a defesa do indivíduo: "Se cada cidadão for protegido individualmente a soma dessa proteção corresponde à proteção da coletividade. O erro é pensar-se que defender a sociedade significa esmagar o indivíduo. A parte não pode destacar-se do corpo sem que este se ressinta" (Américo Marco Antônio, Causas de exclusão de criminalidade no anteprojeto do código penal. Ciclo de conferências sobre o anteprojeto do código penal brasileiro. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1965, p. 32).
Daí a justeza do velho adágio: Libertas omnibus rebus favorabilior est, ou seja, em todas as coisas maior favor se atribua à liberdade.
É bem significativa a advertência dos mestres de que existem ocasiões especiais que forçam o juiz a recorrer ao processo analógico em direito penal, sob pena de cometer palpáveis iniqüidades.
Magalhães Noronha assinala uma hipótese: a da mulher violentada em seu pudor que venha excepcionalmente a engravidar. O Código se refere à licitude do aborto médico da mulher estuprada (art. 128, II). A punição pelo abortamento será inevitável se a analogia deixar de ser invocada.
Pode-se acrescentar o aborto praticado por enfermeiro, diante da absoluta e previsível falta de médico no local, ou de sua expressa negativa em fazê-lo, mesmo em caso de estupro. É certo que se recorre, então, à figura do estado de necessidade. Mas também é certo que o raciocínio analógico reforça a convicção da injustiça de um tratamento diferenciado, nas circunstâncias há pouco referidas.
Extingue-se a punibilidade, segundo o inciso VIII do artigo 108 da antiga Parte Geral, pelo casamento do agente com a ofendida, nos crimes contra os costumes definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial. A "ofendida", na expressão literal do Código, só poderia constituir uma pessoa do sexo feminino. Lembrava, porém, Basileu Garcia que também a mulher é suscetível de sofrer a imputação do crime do art. 214 (atentado violento ao pudor) e do art. 218 (corrupção de menores). Se ela vem a casar com a vítima, que seria um homem, indubitavelmente, extinta se torna a punibilidade? Ele mesmo respondeu: "Não se pode dizer que não, mas a lei não é suficientemente flexível para a solução justa, em patrocínio da qual se terá de recorrer à analogia, a fim de evitar uma iniqüidade" (Instituições de direito penal, v. 2. São Paulo: Max Limonad, 4ª ed., 1963, p. 692 e 693).
Parece que a simples interpretação lógica, baseada na própria finalidade do texto, ampara da mesma forma a solução apontada por Basileu Garcia. Entretanto, serve o exemplo para denotar a importância da eqüidade no direito penal, muitas vezes inexistente quando a analogia é esquecida. A propósito, a nova Parte Geral (inciso VII, recentemente revogado pela Lei nº11.106/2005) passou a falar de casamento do agente com a vítima e, não, com a ofendida.
Fernando de Almeida Pedroso, dentre outros exemplos, lembra que o Código Penal isenta de pena, no crime patrimonial sem violência ou grave ameaça, ao agente que o pratique em prejuízo "do cônjuge, na constância da sociedade conjugal" (art. 181, I). Sustenta a aplicação da imunidade a quem vive como marido e mulher, em união estável. Motivo: analogia in bonam partem (Direito penal, 3ª ed. São Paulo: Leud, 2000, p. 48/49).
É também no campo da isenção de pena que João José Leal sustenta a validade da analogia em favor do acusado. Cita como exemplo "a aplicação da escusa absolutória prevista no § 2º do art. 348 (favorecimento pessoal) aos casos de prática do delito de fuga de pessoa presa (art. 351, caput do CP)", desde que a evasão se proceda sem ameaça ou violência e que o autor seja descendente, ascendente, cônjuge ou irmão do evadido" (Direito penal geral, 3ª ed. . Florianópolis, OAB/SC, 2004, p. 123.
Edmundo José de Bastos Júnior, fazendo remissão a Fabbrini Mirabete, alude à hipótese do co-herdeiro que destrói coisa fungível, cujo valor não excede à quota da herança a que tem direito. Entende cabível a aplicação analógica do § 2º do art. 156 (furto de coisa comum), atinente à ausência de punição (Código penal em exemplos práticos, 3ª ed. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2002, p.22).
Fabbrini Mirabete, há pouco citado, menciona, dentre outros, como caso de aplicação de analogia in bonam partem, "a punição por simples crime culposo, no excesso por culpa no estado de necessidade, exercício de direito ou cumprimento do dever legal, diante do que previa o artigo 21, parágrafo único, da lei anterior, referente à legítima defesa". E acrescenta que a lacuna já foi eliminada, haja vista a "disposição genérica do artigo 23, parágrafo único, da lei nova" (Manual de direito penal, v. 1, 6ª ed. São Paulo: Atlas, 1991, p. 48).
Em suma: desde que se vislumbre a mesma razão jurídica, a exigir a analogia, não se há de proscrevê-la para preferir-se a injustiça, pois esta não tem lugar na consciência nem nas decisões dos autênticos magistrados.
É hora de se rever a matéria no capítulo a seguir, em forma de síntese, e ainda com o acréscimo de observações de ordem crítico-metodológica.
Capítulo III - Síntese teórico-dogmática e visão crítico-metodológica
Sumário: 1. Síntese teórico-dogmática 2. Visão crítico-metodológica
1.Síntese teórico-dogmática
Pode-se resumir os capítulos anteriores, no plano teórico-dogmático, através dos itens seguintes:
I) A hermenêutica jurídica, pregando, em regra, a elasticidade da lei e sua harmonia com o fim do direito e o bem comum, afastou-se gradativamente da rigidez das palavras e do pensamento do legislador para erigir-se em sistema idôneo de interpretação, que atende, em regra, a seus elevados objetivos.
II) A interpretação é o processo de determinação do sentido e alcance da norma jurídica.
III) A analogia é o processo lógico que autoriza a criação de uma regra jurídica, derivada da lei, aplicável a um fato omisso. Situa-se, pois, no setor de aplicação do direito, onde opera como elemento supletivo da lei.
IV) A analogia difere, por seu próprio objeto e finalidade, da interpretação analógica e da interpretação extensiva.
V) A interpretação analógica não constitui espécie de interpretação extensiva, tendo em vista que não implica, necessariamente, maior amplitude do espírito da lei em relação à fórmula empregada. É o próprio texto que a indica e a permite. Logo, não faz sentido falar-se, no caso, em interpretação extensiva.
VI) A interpretação analógica e a interpretação extensiva são perfeitamente válidas no direito penal brasileiro. Extensiva, declarativa ou restritiva, a exegese, aliás, é sempre legítima, a menos que se pretenda amputá-la, desfigurar-lhe a substância.
VII) O princípio do in dubio pro reo não se acomoda ao processo interpretativo propriamente dito. Não vale como guia, ou ponto de partida. Ao intérprete é defeso, inclusive no direito penal, servir-se de conceitos apriorísticos que possam obliterar, mesmo eventualmente, a descoberta da verdade.
VIII) A analogia in malam partem é terminantemente vedada no direito penal brasileiro. Impedem-na o Código (art. 1º ) e a Constituição (art. 5º , XXXIX), que consagram o princípio da reserva legal, reflexo de comprovada maturidade político-jurídica dos nacionais.
IX) A analogia in bonam partem: a) não está proibida pela Constituição, nem pelo Código Penal; b) é expressamente permitida pelo artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, estendível ao direito penal pátrio, em face do silêncio do respectivo Estatuto; c) impõe-se como medida indispensável, destinada a conciliar a lei com a eqüidade, em atenção à justiça e aos reclamos da moral social.
2.Visão crítico-metodológica.
Nada obstante, há que se rever a matéria de um ponto de vista crítico-metodológico. Sob este prisma, o que mais interessa é o direito penal efetivamente positivado como verdade histórica.
Não basta afirmar, hodiernamente, o sentido de garantia das normas constitucionais e penais em face do poder constituído. Não basta dissecar o princípio da reserva legal e dele extrair certas conseqüências ditas irrefutáveis: proibição da retroatividade, da analogia e dos costumes em prejuízo do acusado; obrigatoriedade de clareza e objetividade na descrição do fato punível (ausência de vagueza e ambigüidade).
O penalista precisa se dar conta de que profere suas lições em linguagem natural (no Brasil, em língua portuguesa), o que significa dizer que não se liberta dos vícios que lhe são inerentes, mesmo quando se atém à terminologia técnica, especializada. E as regras de hermenêutica jurídica, além de eventualmente contraditórias, conservam as mesmas virtudes e defeitos de qualquer sistema de linguagem articulada, virtudes e defeitos que se encontram igualmente na linguagem utilizada pelo próprio legislador. Seria útil, por isso mesmo, a leitura do livro de Rosa Maria Cardoso da Cunha, em que procura mostrar o caráter retórico do princípio da legalidade. Lê-se na própria capa, como subtítulo: "ou como a lei penal retroage em prejuízo do acusado; a lei escrita não é a única fonte do direito penal; existe analogia in malam partem; as palavras da lei penal são vagas e ambíguas" (O caráter retórico do princípio da legalidade. Porto Alegre: Síntese, 1979).
E mais. A lógica que vale para o direito tem tudo a ver, desde o início, com o processo ou mecanismo de busca das premissas. São muitos os dispositivos legais, ou extra-legais, à disposição do operador jurídico. É dele o ponto de partida. É dele que depende, em última instância, o acerto ou desacerto da escolha efetuada.
Por exemplo: cabe ou não cabe analogia in bonam partem na hipótese de aborto praticado por médico em mulher cuja gravidez é derivada de violência diversa do estupro? Já vimos que Magalhães Noronha opinava pela afirmativa. A grande maioria dos penalistas, por sinal, concorda com ele. Mas Heleno Cláudio Fragoso, ainda na edição de 1985, nos apontava um impedimento de ordem técnica, relacionado com o caráter excepcional da regra do artigo 128, II (Lições de direito penal: a nova parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 88).
Coisas do passado? Nem sempre. Servindo-se de especialistas em hermenêutica, inclusive na área jurídico-penal, Luiz Regis Prado entende "que a regra do art. 128, II, do Código Penal, é norma penal não-incriminadora excepcional ou singular em relação à norma não incriminadora geral (art.23, CP). Pelo que, como se trata de jus singulare, em princípio, não é de ser aplicado o procedimento analógico, ainda que in bonam partem" (Curso de direito penal brasileiro: parte geral, 2ª ed. São Paulo: RT, 2000, p. 103).
O curioso dessa negativa reside no fato de se tratar de obra moderna, bem escrita, atualizada. Nela há todo um capítulo dedicado aos princípios penais de garantia: da legalidade ou da reserva legal; da culpabilidade; da exclusiva proteção de bens jurídicos; da intervenção mínima; da fragmentariedade; da pessoalidade, da individualização e da personalidade das penas; da humanidade; da adequação social; da insignificância (p. 77/90). São princípios que procuram preservar o indivíduo de abusos do legislador ou do operador jurídico, em matéria de crime e pena.
Note-se que cidadãos, no Brasil, são também as vítimas de crimes legalmente tipificados; mas o princípio garantista vale, de modo particular, para os possíveis réus de processo criminal.
Contudo, a lei penal, mesmo nos dias de hoje, não oferece nenhuma garantia ao cidadão se dela divergir o intérprete ou juiz convencido da validade ou legitimidade de seu ponto de vista pessoal. Assim, a par das ambigüidades dogmáticas, há que se levar em conta a discricionariedade do julgador, que "somente encontra limites em sua própria concepção pessoal da criminalidade e nos estereótipos que orientam a possibilidade de separar o joio do trigo", na expressão de Alessandro Nepomoceno (Além da lei: a face obscura da sentença penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 228).
A verdade é que em todos os tempos se opina e se decide eventualmente contra a lei, em determinadas matérias, mesmo em prejuízo do acusado. Por exemplo, excelentes penalistas dispensam a ocorrência de perigo concreto de dano (dano potencial) na hipótese do crime de embriaguez ao volante, in verbis: "Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem [ grifei]. Penas — detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor (Código de Trânsito Brasileiro, art. 306). Contentam-se com a direção irregular na via pública, independentemente de existir ou não, nas proximidades, em estradas vazias, uma única pessoa sequer ("outrem", na expressão da lei). Transformam ilícitos administrativos em crimes de trânsito, apesar de negarem, em tese, a possibilidade jurídica de crimes de perigo abstrato. E há os que, mais radicais ainda em prejuízo do réu, falam justamente em perigo abstrato associado ao simples fato de se dirigir veículo automotor na via pública em estado de embriaguez. Haveria crime mesmo se não se percebesse, além da própria embriaguez, qualquer outra conduta indicativa de infração de trânsito. Nessa hipótese, e muitas outras, como já tive a oportunidade de lembrar, institucionalizou-se a anarquia exegética. E sem nenhuma surpresa para os que guardam para si um mínimo de espírito crítico (Crimes de trânsito: interpretação e crítica. Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 25. São Paulo: RT, 1999).
Se essa liberdade exegética é possível em crimes de trânsito, nem sempre ligados a pessoas previamente carimbadas como criminosas, imagine-se o que pode ocorrer com o latrocínio consumado. Ainda que este, por definição legal, implique subtração (CP, art. 157, § 3º ), considerável parcela da doutrina e da jurisprudência a dispensa, em prejuízo do réu. Lê-se na Súmula 610 do STF: "Há crime de latrocínio quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima".
Outro exemplo: a lei só admite infanticídio (CP, art. 123) se a conduta visando à morte do filho ocorre durante o parto ou logo após. Ainda assim, muitos criminalistas dispensam o "logo após" e acomodam o delito a qualquer momento após o parto, desde que haja influência do estado puerperal. Percebe-se, no caso, benefício para a mãe. Esta, no entanto, é flagrantemente prejudicada quando procede com simples imprudência ou negligência. Parte da doutrina lhe aponta a prática do crime de homicídio culposo, em detrimento do princípio da reserva legal. Ora, admitida essa possibilidade, teríamos que imputar-lhe, igualmente, a lesão corporal seguida de morte, com pena de reclusão de quatro a doze anos (CP, art. 129, § 3º). E o infanticídio, que só existe na forma dolosa (dolo de matar: CP, art. 123 c/c art. 18, parágrafo único), além da pena de detenção, tem limites bem menores, de dois a seis anos... Conclusão: a visão lógico-sistemática do Código Penal, em parceria e consonância com o método hermenêutico da ponderação dos bens e valores, ou da lógica do razoável, só poderia nos indicar a visível atipicidade do "homicídio culposo" eventualmente cometido sob a influência do estado puerperal.
A lei menciona o "emprego de arma" em uma das formas de roubo qualificado (CP, art. 157, § 2o, I). Nada obstante, em homenagem à subjetividade (temor) da vítima, era comum reconhecer a mesmíssima figura delituosa se o agente se servia de meio fraudulento (arma de brinquedo) para intimidar o ofendido. A matéria chegou a constar da súmula 174 do Superior Tribunal de Justiça, in verbis: "No crime de roubo, a intimidação feita com arma de brinquedo autoriza o aumento da pena". A súmula foi cancelada em novembro de 2001. Não é difícil perceber, no entanto, a enorme diferença que existe entre a lei penal, como projeto de direito, e a realidade jurídica efetiva e contraditoriamente construída pelos operadores do sistema.
Na receptação imprópria, que ocorre quando o agente influi para que terceiro, de boa-fé, adquira, receba ou oculte coisa produto de crime (CP, art. 180, caput, 2a parte), fala-se em consumação mesmo que o terceiro manifeste de imediato seu total desinteresse pela proposta. Rogério Greco, acertadamente, não compartilha do lugar-comum. A consumação do crime pressupõe o efetivo recebimento, aquisição ou ocultação da coisa por parte desse terceiro de boa-fé (Curso de direito penal, v. 3. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 377). Contudo, alguém afirmou, pela primeira vez, que o delito é formal, ou que independe para seu aperfeiçoamento da conduta da pessoa de boa-fé. Resultado: é raro encontrar, ainda hoje, um jurisconsulto que se lembre da Lei, e da Constituição Federal, como garantia do réu contra as "liberdades" de uma exegese que, ao descartar a tentativa de crime, e insistir na consumação, transforma seu artífice (o jurisconsulto), com exclusividade, em fonte direta ou indireta do direito penal.
Daí que a lei, em verdade, jamais será fonte exclusiva do direito, em termos objetivos. A par de sua vagueza e ambigüidade, ela concorre com a paralela produção teórico-doutrinária dos juristas, que se encarregam, assim, de convalidar por outras vias a faceta contraditória do direito. E essa convalidação por outras vias também ocorre diante de leis bastante claras, mas rejeitadas, em havendo interesse e clima para diferentes construções fático-normativas (Curso crítico de direito penal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998, p. 59/60)
É evidente que o grupo social também participa do contexto jurídico, em tema de conteúdo, pois legisla no "varejo", enquanto o poder público se restringe a legislar no "atacado". Aceitando e professando a ideologia dominante, a ideologia dos grupos encastelados no poder de persuasão; ou germinando, por sua conta e risco, outras idéias e valores, também os governados conseguem ratificar ou retificar o direito, inclusive o direito penal. E o fazem por ação e omissão, amalgamando sua cota de poder na decisão mais ou menos formal dos que se incumbem, em princípio, de agir em nome da comunidade: autoridades administrativas, delegados de polícia, promotores de justiça, juízes de direito, legisladores (idem, p. 61).
Visão crítico-metodológica: o direito penal é isso mesmo, ditado e construído pelas circunstâncias históricas. Delas participam, em maior ou menor intensidade, a lei penal em vigor; o decreto-lei em vigor; o ato institucional em vigor; as valorações sociais; a globalização jurídico-dogmática; a personalidade do operador jurídico; o nível de opção argumentativa ou decisória em face das condições políticas do país.
Ainda que modernas e atualizadas, as teorias jurídico-penais não conseguem padronizar a conduta do intérprete emocionalmente predisposto a indicar a solução compatível com suas próprias expectativas ideológicas e um certo grau de liberdade ocasionalmente desfrutado. Quer dizer: ele, o intérprete, as conhece muito bem, e sabe que, não raro, essas teorias apontam para caminhos divergentes; ou que, por sua vagueza e ambigüidade, ora permitem o sim, ora permitem o não — tal como ocorre com as leis, costumes, razão, justiça, eqüidade e bom senso.
Em suma, conforme registrado em outro contexto, nenhuma dogmática jurídico-penal consegue eliminar o que está fora do seu alcance: a dialética do tempo; a lógica jurídica de busca das premissas; a biografia do intérprete; o mistério das palavras; o poder econômico; a força política; os sentimentos éticos e preconceitos inseridos no grupo social. Estes ingredientes é que ajudam a forjar o direito em sua concretude (Ensino crítico de direito penal. Revista da ESMESC, v. 11, n.º 17. Florianópolis: Habitus, 2005, p. 168; igualmente em Jus Navigandi, Teresina, a. 9, nº 557, 15 jan. 2005).
Nada disso, entretanto, invalida o esforço de identificação e aperfeiçoamento das regras de hermenêutica jurídica. Construídas historicamente, elas permanecem válidas como subsídio retórico a quem se despe da força bruta para, com honestidade intelectual, contribuir com seu próprio gesto para o direito que repute possível e justo, em clima de liberdade e responsabilidade socialmente compartilhadas.
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Professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BASTOS, João José Caldeiras. Interpretação e analogia em face da lei penal brasileira: visão teórico-dogmática e crítico-metodológica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 set 2008, 09:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/14928/interpretacao-e-analogia-em-face-da-lei-penal-brasileira-visao-teorico-dogmatica-e-critico-metodologica. Acesso em: 22 dez 2024.
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