A reforma do Código de Processo Penal era uma reivindicação antiga da comunidade jurídica, tendo em vista a necessidade de adaptação das regras processais penais as novas diretrizes trazidas pela Constituição Federal de 1988. Registre-se que o Código Penal Pátrio é de 1941, sendo certo que muitas de suas disposições não têm mais aplicação, justamente por não se conformarem com a nova ordem jurídica constitucional. Além disso, vale consignar que se trata de uma reforma pontual, embora traga significativas mudanças no campo do processo penal.
Visando à conformação do CPP aos princípios e regras constitucionais, em agosto de 2008 entraram em vigor três novas leis, quais sejam: 11.689, 11.690 e 11.719. Tais leis trouxeram profundas alterações no procedimento do júri, mudanças no tratamento das provas, além de modificações no procedimento ordinário e sumário.
O tema que nos interessa discutir refere-se a constitucionalidade do art. 156 ,I, do CPP, que passou a ter a seguinte redação:
“Art. 156.A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;(...)
A nova redação foi alvo de severas críticas pela doutrina, sob o fundamento de que fere o princípio acusatório. Afirma-se que a Constituição Federal adotou o sistema acusatório, segundo o qual há separação entre as funções de julgar e acusar, sendo defeso ao juiz ter um papel ativo na produção de provas.
Dessa forma, defende-se que o art. 156, I, do CPP, é uma reafirmação do princípio inquisitório, no qual o juiz passa a ter um atuação investigativa, sendo clara a possibilidade de iniciativa probatória. Dessa forma., o citado artigo é considerado uma verdadeira afronta ao sistema acusatório.
Nesse sentido:
"agora, sem embargo, o texto é mais honesto se medido em relação à realidade que se vive, deixando claro o absurdo fascista das entranhas do sistema, inclusive em relação ao próprio magistrado. Afinal, permite-lhe expressamente nas duas fases da persecução, ordenar ex officio a produção de provas (...) e, depois, cobra-se dele, a partir da base constitucional do processo (ainda confundido, em 2008, com ação penal) e no acertamento do caso penal"[1]
Auri Lopes Jr é uns dos principais críticos do art. 156 em sua nova redação. Vejamos trecho de artigo em que ele defende a inconstitucionalidade do artigo:
“O art. 156 sempre foi um grande problema, especialmente para aqueles comprometidos com o sistema acusatório-constitucional. Incrivelmente, ficou pior! É insuficiente pensar que o sistema acusatório se funda a partir da separação inicial da atividade de julgar e acusar. (...) De nada basta uma separação inicial, com o Ministério Público formulando a acusação, se depois, ao longo do procedimento, permitimos que o juiz assuma um papel ativo na busca da prova ou mesmo na prática de atos tipicamente da parte acusadora (...)
Nesse contexto, o art. 156 do CPP funda um sistema inquisitório, pois representa uma quebra da igualdade, do contraditório, da própria estrutura dialética do processo.” [2]
Há, contudo, quem defenda a constitucionalidade do inciso I do artigo 156 do CPP, por considerar que a nova redação retrata a nova função assumida pelo juiz no moderno direito processual, que deixa de ser um mero espectador na produção de provas e passa a ter um importante papel no sentido de estimular o contraditório e a ampla defesa na busca da verdade real. Além disso, a atuação dos juiz na produção de provas é meramente supletiva ou complementar, motivo pelo qual não há que esse falar em ofensa ao princípio acusatório.
Ada Pellegrine Grinover[3], umas das autoras dos projetos de lei da reforma processual penal, afirma que a atuação do magistrado na produção de provas, mesmo que subsidiariamente, não compromete a sua imparcialidade, uma vez que o juiz, não poderia adivinhar o resultado da prova que eventualmente mandou produzir.
Os defensores da perfeita conformação do art. 156 do CPP com a Constituição Federal, contudo, ressaltam que o inciso I deve ser interpretado no sentido de que a atuação do juiz somente poderá acontecer quando houve pedido da autor da ação, sob pena de ofensa ao princípio da inércia da jurisdição.
Sobre o tema:
“Em que pese o caput do dispositivo ("A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício") generalizar a possibilidade de o Juiz agir de ofício em ambas as situações que prevê – incisos I e II – parece evidente que, no caso do inciso I ("ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida"), o juiz só pode agir quando provocado pelo titular do direito de ação (Ministério Público ou querelante, conforme de iniciativa pública ou privada), no resguardo de uma prova pertinente e importante, que esteja em vias de perecer, tendo por parâmetro os já citados arts. 225 do próprio Código de Processo Penal e 846/851 do Código de Processo Civil. Assim se estabelece em complemento, como também já destacado, ao art. 155, caput, parte final, do Código de Processo Penal, no ponto em que ressalva as provas antecipadas, que são essas que o Juiz pode determinar antes de iniciada a ação penal (art. 156, I, do Código de Processo Penal), mas não de ofício, como parece pretender o caput, o que contrariaria, aí sim, o princípio da inércia, inerente ao sistema acusatório, com o quê mostrar-se-ia incompatível, eis que ainda não iniciada a ação por quem de direito, não cabendo ao Juiz partir em busca da prova antes de ser exercido o direito de ação, posto que, se assim o fizesse, estaria investigando, adotando comportamento tipicamente inquisitivo (nos velhos moldes dos arcaicos Juizados de Instrução), o que lhe é vedado constitucionalmente. Sugere-se, pois, uma interpretação conforme a Constituição, de modo a, na hipótese do inciso I, não permitir que o Juiz aja de ofício, só podendo determinar a produção de prova antecipada se isto for requerido pela parte interessada. [4]
Exposto os dois entendimentos sobre o assunto, e considerando que o artigo em discussão entrou em vigor recentemente, nos restar aguardar a manifestação da jurisprudência para saber qual deles vai prevalecer.
Notas:
1.
[1]COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. As reformas parciais do CPP e a gestão da prova: segue o princípio inquisitivo. In: Boletim do IBCCRIM, ano 16 - n. 188 – julho de 2008. p. 12.
[2] JÚNIOR, Aury Lopes. “Bom para Quê(m)?”. Boletim IBCCRIM. Ano 16. N. 188 – Julho de 2008.
[3]A Iniciativa Instrutória do Juiz no Processo Penal Acusatório. Artigo publicado na Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, nº 68, jan/jun 1999.
[4]Marcelo Lessa Bastos. Artigo publicado no site www.
http://jus2.uol.com.br/doutrina. Processo penal e gestão da prova. Os novos arts. 155 e 156 do Código reformado (Lei nº 11.690/08)
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