Como é sabido, a doutrina distingue - distinção que remonta a Luden[1] (1840) - entre crimes omissivos próprios e impróprios. Nos primeiros, o legislador tipifica a simples omissão, isto é, a mera abstenção de fazer algo legalmente determinado, a exemplo da omissão de socorro (CP, art. 135) e da omissão de notificação de doença (CP, art. 269). Nos segundos, em razão de um dever legal especial de evitar o resultado imposto a certa e determinada pessoa, chamada garante, imputa-se-lhe o próprio resultado, como se ele mesmo o tivesse causado. É o que se dá com os pais em relação aos filhos, os médicos em relação aos pacientes, os salva-vidas em relação aos banhistas etc. Esta equiparação legal da omissão à ação está prevista, entre nós, no art. 13, §2°, do Código Penal, que estabelece os pressupostos desta excepcional imputação, a saber: a)posição de garante e, pois, dever de agir e de evitar o resultado; b) possibilidade concreta de agir; c)causação de um resultado imputável ao omitente. A omissão imprópria consiste, portanto, na não-evitação do resultado típico por parte de quem tem o dever legal de agir em defesa do bem jurídico em perigo, tentando, ao menos, impedir sua conversão em dano[2].
Neste dispositivo, o legislador consagra uma cláusula geral - aplicável, em tese, à generalidade dos crimes - que põe omissão e ação em pé de igualdade, de modo que, por exemplo, matar por omissão (v.g., deixando de alimentar o filho) é tão grave e reprovável jurídico-penalmente quanto matar por ação (v.g., empurrando o filho da escada). Por meio do §2° do art. 13, o Código erige, enfim, à categoria de criminosos comportamentos que, em princípio, ou seriam atípicos ou só configuradores de omissão própria. Afinal, os omitentes respondem pelo resultado não porque tenham causado a conduta típica, mas por não terem agido em defesa do bem jurídico, a fim de tentar impedir o evento[3].
Pois bem, semelhante equiparação, embora largamente adotada pelas legislações e, em geral, politicamente indiscutida pela doutrina, pode e deve ser questionada, no entanto, frente a três princípios constitucionais: legalidade, pessoalidade da pena e proporcionalidade.
Com efeito, se o princípio da legalidade implica a máxima taxatividade e precisão das mensagens do legislador e a máxima vinculação do juiz a tais mensagens[4], é evidente que o Código, ao se utilizar de uma cláusula geral e grandemente vaga, que equipara ação à omissão, não atende a tal exigência político-criminal e se revela claramente antigarantista. Porque, afinal, o legislador limita-se, simplesmente, a estabelecer os pressupostos gerais do dever de agir e de impedir o resultado, mas nada esclarece quanto ao seu conteúdo, remetendo, ainda, a complementação do seu significado (lei penal em branco) a uma outra lei, a um contrato ou uma situação concreta de criação de risco, em geral, ainda mais imprecisos e indeterminados, de sorte que fixar os limites da posição de garante é especialmente problemático[5]. Por isso, afirma Jakobs que "a determinação do garante é uma das tarefas mais difíceis da Parte Geral"[6].
Conseqüentemente, os crimes omissivos impróprios, à semelhança dos crimes culposos, para bem atenderem ao princípio da estrita legalidade, deveriam ter previsão expressa em cada tipo penal, com clara e precisa delimitação de seus limites. Disso, aliás, não diverge Tavares quando afirma que a solução mais coerente com a exigência do princípio da legalidade, embora não exaustiva e nem perfeita, seria a previsão, na Parte Especial do Código Penal, dos delitos que comportassem a punição por omissão[7]. Em não existindo semelhante previsão, entende, porém, segundo o critério da identidade - adotado, a seu ver, pelo nosso Código, diferentemente do Alemão, que adotou o critério da equivalência - que a omissão imprópria deve ficar restrita aos crimes contra a vida, a integridade corporal e a liberdade, cujos objetos jurídicos, pela sua natureza e pelas conseqüências, necessitam de uma imediata e oportuna intervenção protetiva, que não pode ser postergada para não se tornar inócua[8].
Também, e aqui reside uma objeção mais radical, a omissão imprópria implica, de ordinário, ainda que sutilmente, violação do princípio da pessoalidade da pena, sobretudo naquelas hipóteses em que se pretende imputar ao omitente uma ação de outrem ou um evento puramente natural, a justificar ou a sua abolição pura e simples ou a sua completa reformulação. Assim, por exemplo, quando se pretende que o salva-vidas responda pela morte do banhista que se afoga, que o médico responda pela morte do paciente que lhe implorava socorro, que a mãe responda por maus-tratos do companheiro contra filho menor etc., está-se, em realidade, em todos estes casos, a imputar ao garante (salva-vidas, médico, mãe) fato de exclusiva responsabilidade de terceiro ou puramente causal; sendo, pois, ilegítima a imputação do resultado a pessoa que não o próprio autor da ação.
Finalmente, a pena que se pretende irrogar ao omitente é francamente desproporcional e também ofensiva ao princípio da igualdade, na medida que se equipara, sem mais, a simples omissão à ação, comportamentos cuja significação ética e social é muito distinta, em franca contradição, aliás, com o caráter subsidiário do direito penal, pois bem mais razoável seria que o garante respondesse por omissão própria ou crime algum, sem prejuízo, evidentemente, das conseqüências extrapenais de seu ato: demissão do salva-vidas, suspensão ou cassação da licença para o exercício da medicina, perda do pátrio poder por parte da mãe etc., conforme o caso.
[1] Cf. Jescheck, Tratado, p. 550, Ed. Comares, 1993.
[2] Sheila Bierrenbach, Crimes Omissivos Impróprios, p. 60, Del-Rey, 2002.
[3] Sheila Bierrenbach, idem, p. 74.
[4] Silva Sánchez, Aproximatión al derecho penal contemporáneo, p.256, Barcelona, Bosch, 1992.
[5] Mesmo um exemplo tido como inquestionável - a mãe que deixa de amamentar o filho, causando-lhe a morte - é justamente questionado por Tavares, para quem "esta conclusão sempre foi tomada arbitrariamente pela doutrina, com base no costume, fazendo deste uma fonte de incriminação, o que violava o princípio da legalidade e toda a tradição liberal", pois o art. 384 do Código Civil, ao tratar do pátrio poder, não contemplava expressamente esta responsabilidade, apenas obrigando a criação e a educação dos filhos, sendo que tal previsão somente veio a ocorrer, de fato, com a Constituição Federal de 1988 (art. 229), As Controvérsias em Torno dos Crimes Omissivos, p. 66/7., Instituto Latino-Americano de Cooperação Penal, Rio, 1996.
[6] Derecho Penal, p. 968, Marcial Pons, Madrid, 1995.
[7] Idem, p. 70.
[8] Ibidem, p. 81/2.
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