Em decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal alterou seu entendimento de longa data e considerou que a prisão civil por dívida do depositário infiel, a despeito de prevista na própria Constituição Federal, deixou de existir com a adesão do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica, que permite somente a prisão civil por dívida no caso de devedor de pensão alimentícia.
As intensas discussões doutrinárias que levaram a essa decisão, especialmente aquelas relativas ao status dos tratados de direitos humanos, não serão objeto deste artigo, até porque já são por demais conhecidas. Optou-se apenas por discutir o futuro da prisão civil depois dessa decisão.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que a prisão civil não está restrita aos devedores inescusáveis de pensão alimentícia, uma vez que essa limitação refere-se somente àquelas prisões cuja causa é o inadimplemento de uma dívida. E entenda-se por dívida "toda obrigação cuja prestação é em dinheiro a ser cumprida pelo devedor"[1]. Portanto, a despeito da raríssima referência doutrinária[2], a prisão civil cuja causa é o descumprimento de uma obrigação não-pecuniária é perfeitamente admissível. Essa possibilidade consta, implicitamente, no art. 461, § 5°, do Código de Processo Civil:
§ 5º Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.
Portanto, desde que obedecido o princípio da proporcionalidade, com a adequada ponderação entre os bens sacrificados e os preservados, a prisão civil tem amplíssima possibilidade de aplicação.
Há também um detalhe que geralmente passa despercebido quando, por meios legais ou judicais, cria-se um direito. Nesse caso, insere-se o direito do depositário infiel de não ser preso. O detalhe é que todo direito tem custos[3], que serão suportados de forma difusa pela sociedade. O custo da medida aqui analisada é dificultar o recebimento de créditos, principalmente os oriundos de alienação fiduciária em garantia. Aumentando o risco, a consequência inevitável é o aumento dos juros cobrados de todos aqueles que utilizarem essa modalidade de financiamento, o que afeta, de forma indireta, toda a economia. Nunca é demais lembrar que uma das causas mais importantes das altíssimas taxas de juros cobradas no Brasil é a imensa dificuldade de receber o crédito.
Outra questão é a "prisão civil por dívida travestida em prisão penal". Trata-se dos crimes relacionados com o não-pagamento de tributos, como os crimes contra a ordem tributária (Lei 8.137/91), apropriação indébita previdenciária (Código Penal, art. 168-A) e sonegação de contribuição previdenciária (CP, 337-A). A incriminação dessas condutas é, indubitavelmente, um meio encontrado pela Fazenda Pública para pressionar o contribuinte omisso a pagar seus tributos.
Poderia ser argumentado que a sonegação fiscal, em si, não é um crime, uma vez que seria necessário também o cometimento das condutas previstas na lei, que revelam a intenção de fraudar o Fisco. Esse ponto de vista é, aparentemente, respaldado pelo art. 1° da Lei 8.137/91, cujo caput dispõe: "Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:". A seguir, são enumeradas diversas condutas, como "omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias" e "fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal".
O intérprete mais desavisado poderia chegar à seguinte conclusão: a sonegação fiscal é apenas um dos elementos do crime que, para sua caracterização, requereria também a prática de uma das condutas previstas nos incisos. Porém, a realidade prática indica que é impossível realizar a sonegação de tributos sem que alguma das condutas previstas seja também realizada. É inimaginável que alguém consiga deixar de pagar seus impostos sem, por exemplo, omitir dados ou prestar informações falsas.
O objetivo de utilizar o Direito Penal como um substituto da ação executiva fiscal fica evidente no art. 9° da Lei 10.684/03:
É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.
(...).
§ 2º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.
Assim, tem-se uma dívida do indivíduo para com o Estado, que é cobrada sob ameaça de pena. Se a dívida é paga, a qualquer momento, torna-se desnecessária a pena. Indubitavelmente, esse procedimento infringe a vedação constitucional de prisão civil por dívida. E nem se cogite a utilização do ultrapassado princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, uma vez que nenhum interesse estatal pode sobrepujar os direitos individuais, reconhecidos como cláusula pétrea pela Constituição.
Portanto, a vedação da prisão do depositário infiel ainda deixa algumas questões a serem resolvidas pela doutrina e pela jurisprudência:
- a) criação de mecanismos para dimimuir o abalo ao crédito ocasionado pela extinção dessa modalidade de cobrança;
- b) utilização da prisão civil para a execução de obrigações não-pecuniárias; e, principalmente,
- c) declaração de inconstitucionalidade das leis que criminalizam a sonegação fiscal.
[1] De Plácido e Silva. Vocabulário Jurídico, p. 283.
[2] Notável exceção é o interessante trabalho de Lise Nery Mota: Prisão Civil como Técnicas de Efetivação das Decisões Judiciais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
[3] Cf. Introdução à teoria dos custos dos direitos. Direitos não nascem em árvores, de Flávio Galdino.
Precisa estar logado para fazer comentários.