Apesar da intervenção do Secretário Geral da ONU, do Conselho de Segurança e, recentemente, da Assembléia Geral da ONU no conflito entre Israel e o Hamas, pedindo cessar fogo, ambas as partes do conflito continuam ignorando tal pedido. Após diversas intervenções do Conselho de Segurança em conflitos armados seguindo-se ao fim da guerra fria, incluindo a resolução 1701[1], colocando fim ao conflito armado entre Israel o Hizbollah em 2006, desta vez a resolução 1860[2], adotada dia 08 de Janeiro, mostrou-se ineficaz. Todavia, isto não significa que o Direito Internacional seja insignificante, ou simplesmente, que tal atitude seja um reflexo da famosa expressão 'inter armas silent leges', isto é, em tempo de guerra as armas falam, e as leis se calam.
1. Jus ad bellum e Jus in bello
O Direito da Guerra é divido em dois ramos, o jus ad bellum e o jus in bello. O primeiro refere-se às normas que regulam o direito de recorrer ao uso da força no Direito Internacional. O Segundo refere-se às normas que regulam o exercício do uso da força, isto é, quais as armas e métodos de combate são permitidos uma vez que Estados ou grupos irregulares fazem uso da força. Em ambos os ramos há o requisito da proporcionalidade. Enquanto a proporcionalidade é um requisito do direito de legítima defesa, de acordo com o direito costumeiro, tal como estabelecido no caso Caroline[3] e reconhecido pela CIJ no caso Nicarágua como requisito não formal do direito de legítima defesa[4]; no jus in bello, a proporcionalidade refere-se ao direito humanitário.
Estas são concepções bem distintas: no jus ad bellum, a proporcionalidade refere-se a ameaça representada pelo ataque armado que precede o uso da força em legítima defesa, noção presente no Direito Penal; no jus in bello a proporcionalidade diz respeito às regras do direito humanitário, tais como a proteção de civis em conflitos armados, e limitações ao uso da força visando a proteção de civis. Estes dois ramos também derivam de sistemas normativos distintos. O jus ad bellum é regulado pela Carta da ONU, e tem por fundamento o princípio da proibição do uso da força, com base no artigo 2.4.[5] A única exceção a este princípio fundador da atual ordem internacional é o direito de legítima defesa, com base no artigo 51[6]. O jus in bello é regulado por tratados internacionais, principalmente as Convenções de Genebra de 1949 e os Protocolos adicionais de 1977.[7] Enquanto, de fato, o papel do Direito Internacional é limitado no que se refere ao jus ad bellum, o papel do Direito Humanitário está longe de ser insignificante no conflito entre Israel e o Hamas.
Por um lado, o argumento da legítima defesa de Israel contra os mísseis do Hamas não se enquandra nos termos da Carta da ONU, e do artigo 51. Gaza e o governo do Hamas não são membros da ONU, e tampouco Gaza é um Estado independente. Apesar do fim formal da ocupação Israelense de Gaza, com a retirada unilateral em 2005, Israel continua a controlar Gaza através dos bloqueios terrestre, aério e marítimo. Neste sentido, de acordo com o parecer consultivo da CIJ sobre a legalidade da construção de um muro nos territórios ocupados da Palestina, Israel não teria o direito de legítima defesa contra um território que ocupa e que não é outro Estado.[8] Por outro lado, tanto Israel quanto o Hamas estão sujeitos às regras do Direito Humanitário. O fato de que uma parte viola tais regras não desobriga a outra parte da observância do Direito Humanitário. Entretanto, em guerras assimétricas entre Estados e organizações terroristas esta questão não é tão simples. Enquanto instalações civis, tais como hospitais, escolas e edifícios consagrados ao culto religioso são em regra protegidos, e a violação de tais regras é considerado crime de guerra de acordo com o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, há várias ressalvas. O ataque a população civil deve ser intencional[9], e no caso de edifícios protegidos, tal proibição aplica-se sempre que não se trate de objetivos militares.[10]
2. Jus in bello e a Guerra contra o Terrorismo
A observância do Direito Internacional Humanitário na 'guerra contra o terrorismo' é um dos principais dilemas enfrentados por democracias no combate a organizações terroristas. Enquanto organizações terroristas não se subordinam às regras do Direito Internacional Humanitário, e tampouco são partes signatárias de tratados internacionais, em geral, tais organizações buscam proteção nestas mesmas regras que rejeitam. A identificação de membros de organizações terroristas e infraestrutura terrorista representa um desafio constante. Não há uniformes, quarteis militares, e na maior parte dos casos, as ações terroristas são planejadas e levadas a cabo em meio a população civil, em casas de família, em meio a crianças, mulheres, e idosos que não participam diretamente nas hostilidades. Sob o ponto de vista de Israel, sempre que alvos civis são utilizados para fins terroristas, tais alvos se tornam alvos militares de acordo com as convenções internacionais. Sob o ponto de vista do Hamas, não há distinção entre civis e militares, e o Hamas ataca intensionalmente a população civil israelense, ignorando quaisquer convenções internacionais, enquanto busca proteção em meio a população civil. Entretanto, isto não significa que Israel está autorizada a atacar quaisquer alvos civis designados como alvos militares de maneira indiscriminada. Além disso, o uso de armas, projéteis, materiais e métodos de combate que, pela sua própria natureza, causem ferimentos supérfluos ou sofrimentos desnecessários ou que surtam efeitos indiscriminados são, em regra, proibidos pelo Direito Humanitário e constituem crime de guerra, de acordo com o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.[11]
Israel e Hamas não são partes do Tribunal Penal Internacional e não estão sujeitos a jurisdição deste tribunal, mas certas regras do jus in bellum, as quais refletem costume internacional, aplicam-se indistintamente a ambas as partes. Enquanto a plausibilidade da solução do conflito por meio do Direito Penal Internacional é discutível, sem dúvida, as resoluções da ONU, seja do Conselho de Segurança ou do Conselho de Direitos Humanos da ONU, constituem precedentes, que incorporam as várias resoluções da ONU relativas ao conflito entre Israelenses e Palestinos. Enquanto tais resoluções pouco influiram no jus ad bellum, sempre que israelenses ou palestinos recorrem o uso da força, o jus in bello influencia o comportamento das partes de maneira complexa. O resultado é o alto custo humanitário, e a responsabilidade de ambas as partes não deve ser excludente de ilicitude, seja por parte do Hamas ou de Israel. Neste sentido, as resoluções da ONU representam uma evidência das reações internacionais, refletindo a prática internacional dos Estados. Tais fontes de prova são comumente utilizadas pela CIJ, a exemplo do Parecer Consultivo sobre a legalidade da construção de um muro nos territórios ocupados da Palestina. A decisão da CIJ não foi ignorada pela Suprema Corte de Israel, e influenciou os julgamentos relativos a rota do muro, reconhecendo a aplicação do Direito Internacional Humanitário nos territórios sob o comando militar.[12]
3. Conclusões
O Direito Internacional, longe de estar silencioso, econtra-se em ebulição e constante construção. As fundações do Direito Internacional Humanitário foram estacadas sobre os destroços da Primeira e Segunda Guerra Mundial, e destinadas, ao contrário do jus ad bellum, não a proscrição do direito da guerra, mas à proteção dos civis em tempos de guerra, independente da legalidade do uso da força. Para o jus in bello, as leis nunca se calam, mesmo quando as armas falam mais alto. [1] http://www.un.org/News/Press/docs/2006/sc8808.doc.htm
Notas:
[2] http://www.un.org/News/Press/docs/2009/sc9567.doc.htm
[3] http://avalon.law.yale.edu/19th_century/br-1842d.asp
[4] ICJ Reports, 1986, para. 237
[5] Artigo 2.4 ' Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas.'
[6] Artigo 51 ' Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos Membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais.'
[7] Ver Infrações graves especificadas nas Convenções de Genebra de 1949 e no Protocolo adicional I de 1977 < http://icrc.org/Web/por/sitepor0.nsf/html/5TNDEX>
[8] ICJ Reports, 2003, para. 139. Ver também parecer da Juiza Higgins, para. 34
[9] Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, artigo 8, a, iii, b, i-iv
[10] Id, artigo 8, 2, b, ix
[11] Id, Artigo 8, b, xx
[12] WAISBERG, Tatiana. Parecer Consultivo da CIJ que Condena a Construção de um Muro nos Territórios Ocupados da Palestina e a Mudança de Comportamento da Suprema Corte de Israel. Revista Jus Vigilantibus, v. 30, p. 1, 2007 <http://jusvi.com/artigos/29812>
Advogada e Professora da FPL. Mestre em Direito Internacional - PUC/MG e Universidade de Tel Aviv
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: WAISBERG, Tatiana. O Papel do Direito Internacional na Guerra entre Israel e o Hamas: inter armas silent leges? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 jan 2009, 10:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/16503/o-papel-do-direito-internacional-na-guerra-entre-israel-e-o-hamas-inter-armas-silent-leges. Acesso em: 22 nov 2024.
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