A doutrina brasileira é praticamente unânime em afirmar que a atual Constituição adotou o sistema acusatório. De acordo com esse entendimento, o poder de demandar fica restrito ao Ministério Público, na ação penal pública, e ao acusado, na ação penal privada. Tornou-se extreme de dúvidas a não recepção do processo judicialiforme previsto no Código de Processo Penal para as contravenções.
Porém, sobre dezenas de outros dispositivos do CPP paira a dúvida a respeito de sua constitucionalidade. São normas que dizem respeito à atuação do magistrado na movimentação do processo. Estando vetado o direito de demandar ao juiz, teria ele o direito de ação? Assim, poderia ele requisitar a instauração de inquérito policial, fazer o controle do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, convocar testemunhas, decretar a prisão preventiva de ofício?
Utilizando vários princípios processuais penais, como contraditório, ampla defesa, favor rei, imparcialidade do juiz, busca da verdade real e igualdade, a doutrina chega a resultados bastante díspares. Afinal de contas, o juiz deve contar com poder instrutório em nome da verdade real (como defende Ada Pellegrini Grinover) ou deve se abster em nome de sua imparcialidade (como defende Geraldo Prado)?
Acreditamos que a solução é bastante simples e se encontra em um único dispositivo da Constituição: o art. 129, I, que dispõe sobre a função privativa do Ministério Público de promover a ação penal. O termo “promover” tem variado sentido, desde “fazer avançar” e “dar impulso a” até “requerer” e “propor”. De acordo com o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, devemos considerar “promover” em seu sentido mais amplo, que inclui fazer avançar a ação penal e não apenas propô-la.
Isso significa que a Constituição de 1988 desencadeou uma ruptura de dimensões tectônicas no processo penal brasileiro. O Ministério Público não apenas tem competência privativa para propor a ação penal pública, mas também para realizar todos os atos pertinentes ao seu desenvolvimento.
O que resta para o juiz? Em nosso entender, ele somente poderá exercer sua função primordial: aplicar o Direito ao caso concreto, garantindo o respeito aos direitos constitucionais do réu. Não há mais possibilidade de que ele auxilie na busca da “verdade real” (considerada como mito pela doutrina mais moderna). O juiz deve ser completamente inerte, situação que pode não garantir sua imparcialidade, mas diminui sensivelmente os riscos inerentes a um juiz ativo no processo.
Nesse sentido, torna-se, no mínimo, impreciso definir nosso sistema processual como acusatório, que veda o poder de demanda ao juiz. Mais do que isso, foi instaurado em nosso ordenamento jurídico o adversarial system, típico de Estados que adotam a common law, segundo o qual o processo se trava entre as partes e a interferência do juiz somente é aceitável para garantir as regras do jogo.
Tendo em vista que o CPP admite largamente a atuação do juiz no processo penal, o ideal seria que um novo código fosse promulgado logo após a Constituição. Como isso não aconteceu e nem há sinais de que isso vá acontecer algum dia, todos os operadores do Direito têm uma tarefa hercúlea pela frente: reconstruir doutrinariamente e jurisprudencialmente o Direito Processual brasileiro, calcado em uma nítida diferenciação entre as funções de acusar, defender e julgar, sem matizes que permitam ao juiz extrapolar o seu poder constitucional, auxiliando uma das partes, e reforçando a atuação dos únicos sujeitos que podem agir no processo penal: o Ministério Público e a Advocacia.
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