1. Crime tentado e crime consumado
Crime consumado (delito perfeito) é aquele que atingiu o resultado previsto no tipo penal. De acordo com o art. 14, I, do Código Penal (CP), o crime é consumado “quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal”. Ex.: o homicídio é consumado com a morte da vítima; e o furto com a retirada do bem da posse da vítima. No crime consumado, existe uma congruência perfeita entre o tipo subjetivo (dolo, entendido como intenção dirigida a um fim) e o tipo objetivo (resultado obtido).
No crime tentado (delito imperfeito), o agente quer atingir determinado resultado, mas não o consegue em decorrência de fatores que independem de sua vontade. De acordo com o art. 14, II, do CP, o crime é tentado “iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”. Ex.: o homicídio é apenas tentado se a vítima é socorrida após o ataque do agressor e sobrevive; e o furto quando o agente não consegue retirar o bem da posse da vítima, pois esta o impede. O crime tentado é incongruente, pois se realiza de forma integral apenas o tipo subjetivo (dolo), sendo que o tipo objetivo (execução) não equivale ao resultado desejado pelo agente. O dolo na tentativa é o mesmo do crime consumado, havendo diferença apenas no tipo objetivo. A tentativa somente existe se estiverem presentes dois elementos objetivos:
a) início da execução do crime;
b) consumação que não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade do agente;
c) dolo da consumação.
2. Iter criminis
São as etapas percorridas pelo agente até a realização total do crime. Divide-se em uma fase interna (cogitação e deliberação) e outra externa (manifestação, preparação, execução, consumação e exaurimento) – a punição só é possível nessa última fase. Não é imprescindível que todas essas etapas estejam presentes no caso concreto.
O iter criminis é composto de:
a) cogitação: o agente verifica mentalmente quais são suas opções de ação em determinada ocasião. Ex.: ao ser injuriado, o agente pode pensar em várias alternativas de reação, que vão do simples desprezo até o homicídio;
b) deliberação: o agente decide mentalmente cometer o crime. Ex.: resolve matar aquele que lhe injuriou;
c) manifestação: o agente declara a outrem sua intenção de cometer o crime. Ex.: João diz a Luiz que quer matar Antonio. Não é punível, exceto se a manifestação dirigir-se diretamente à vítima. Nesse caso, há crime de ameaça (art. 147);
d) preparação: o agente planeja o crime, buscando os meios para executa-lo. Para um observador externo, seu comportamento não se dirige no sentido de cometer o crime. Ex.: João pega uma faca para matar Antonio. Tal ação só tem sentido na subjetividade do agente, pois, no aspecto externo, essa conduta pode ter vários outros objetivos, às vezes totalmente indiferentes ao Direito Penal. A preparação normalmente não é punível, em face do disposto no art. 31 do Código Penal: “O Juste, a determinação, a instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos a ser tentado”. Porém, a punição é possível se fase preparatória de um crime for considerada como um crime autônomo. Ex.: quadrilha ou bando (art. 288). Trata-se de um caso de antecipação da tutela penal, face à relevância do bem protegido e ao risco em que ele se encontra;
e) execução: o agente passa a realizar atos que dirigem-se, de modo idôneo e inequívoco, a determinado resultado penalmente relevante. Ato idôneo é aquele que pode produzir o resultado. Ato inequívoco é aquele indubitavelmente ligado à consumação. Ex.: João atira na direção de Antonio. A execução é sempre punível, ao menos como crime tentado. É essencial que haja efetiva ameaça de lesão ao bem jurídico protegido. Caso contrário, haverá crime impossível (art. 17). O momento da execução é o critério que define a imputabilidade e o tempo do crime;
f) consumação (meta optata): o agente executa integralmente a conduta prevista no tipo penal, alcançando o resultado previsto, seja naturalístico (físico), ou apenas normativo. O momento consumativo é critério fundamental par aa definição de:
I) o termo inicial da prescrição da pretensão punitiva, que começa a ser contada no dia em que o crime foi consumado ;
II) a competência territorial nos crimes plurilocais (aqueles que ocorrem em mais de um ponto do território nacional) ;
III) a participação, que somente pode;
g) exaurimento: fase já posterior ao iter criminis, pois o crime já ocorreu, mas o agente ainda comete um fato que atinge o bem jurídico protegido penalmente. Somente ocorre exaurimento nos crimes formais, nos quais o tipo prevê uma conduta e um resultado, sendo o crime consumado com a conduta e o resultado mero exaurimento. Ex.: a corrupção passiva (art. 317) consuma-se com a solicitação da vantagem indevida com o objetivo de praticar ato de ofício. O recebimento efetivo da propina ou mesmo a prática do ato administrativo são apenas exaurimento de um crime que já ocorreu. Portanto, não tem o poder de alterar a tipificação do crime, mas afeta a aplicação da pena, aumentando-a. É essencial a diferenciação entre consumação e exaurimento, pois a prisão em flagrante só pode acontecer no primeiro caso.
3. Hipóteses de inocorrência da tentativa
A punição pelo crime tentado, embora seja regra geral prevista no art. 14 do CP, pode não ocorrer nas seguintes situações:
a) crimes culposos: não há intenção de atingir o resultado, que foi provocado por um descuido do agente. Portanto, não é possível “tentar fazer” algo que não se quer. Porém, é admitida a tentativa nos casos de culpa imprópria, em que o sujeito atua movido por um erro de tipo. Ex.: pai que tenta matar o próprio filho, imaginando-se tratar de ladrão;
b) crimes preterdolosos: são espécies de crimes qualificados pelo resultado, nos quais o agente quer consumar determinado crime, mas, por descuido, termina por cometer outro mais grave. Ex.: lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3°). Há dolo com relação ao resultado menos grave (antecedente) e culpa com relação ao resultado mais grave (conseqüente). Não admitem tentativa pelos mesmos motivos dos crimes culposos;
c) crimes unissubsistentes: aqueles em que a execução é completada em um único ato, que também consuma o crime. Assim, sempre que há execução há consumação. Ex.: injúria verbal;
d) contravenções: em tese, é possível a tentativa, mas a Lei de Contravenções Penais proíbe expressamente sua punição;
e) crimes omissivos próprios: consumam-se no primeiro momento em que o agente poderia fazer alguma coisa e não fez. Porém, a tentativa é admissível nos crimes omissivos impróprios, aqueles em que o agente tem a função de garantidor da não ocorrência do resultado. Ex.: pai que vê filho afogar-se e nada faz. Contudo, um terceiro o salva. Nesse caso, o pai responde por tentativa de homicídio doloso;
f) crimes nos quais quem tenta obter o resultado tem a mesma pena daquele que efetivamente obtém. São os crimes de atentado. Ex.: art. 3° da Lei 4.878/65 (crimes de abuso de autoridade);
g) crimes habituais: somente são consumados com a reiteração de condutas que, em si mesmas, são indiferentes penais. Ex.: curandeirismo (art. 284). Alguns autores admitem a tentativa neste caso.
h) crimes nos quais somente há punição se houver a produção de determinado resultado. Ex.: induzimento, instigação e auxílio ao suicídio (art. 122), que só é punido se o crime for consumado com a morte ou a lesão corporal grave da vítima.
4. Tipicidade e punibilidade da tentativa
O crime tentado não se encaixa perfeitamente na descrição legal. Assim, homicídio é “matar alguém” (art. 121) é não tentar matar alguém. A tentativa somente é punível devido à norma de extensão da tipicidade inscrita no art. 14, parágrafo único (“salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de 1 (um) a 2/3 (dois terços)”). Trata-se de um caso de tipicidade indireta ou por subordinação mediata – o outro caso é a participação no concurso de pessoas. A tentativa é um tipo penal derivado (subordinado), que funciona como causa de extensão do tipo principal.
Existem duas teorias que fundamentam a punibilidade da tentativa:
a) subjetiva (voluntarística): o agente é punido com a pena do crime consumado, pois o que importa é sua intenção de cometer o crime. É adotada excepcionalmente, nos crimes de atentado;
b) objetiva (realística): a tentativa recebe uma pena menor que o crime consumado, pois o resultado não foi atingido. É a teoria adotada pelo Código Penal;
c) sintomática: simples manifestação da periculosidade subjetiva já pode ser enquadrada como tentativa. Possibilita a punição por crime impossível.
A fração de diminuição da pena depende da proximidade do crime tentado com o crime consumado. Quanto maior a proximidade, menor é a fração da pena ser diminuída. A diminuição da pena no mínimo legal (1/3) indica que o crime praticamente foi consumado. Por outro lado, a diminuição da pena em sua fração máxima (2/3) indica que o agente encontrava-se na transição entre a preparação e a execução. Excepcionalmente, a lei prevê a mesma pena para a consumação e a tentativa de lesão. São os crimes de atentado.
5. Classificação da tentativa
Tentativa incruenta ou branca é aquela em que a vítima não chegou a ser atingida. Tentativa cruenta é aquela em que vítima foi atingida, mas, mesmo assim, o crime não foi consumado.
Tentativa idônea é aquela que deriva de uma conduta capaz de atingir o bem protegido penalmente. Para ser punível, a tentativa deve ser idônea. Tentativa inidônea é aquela incapaz de lesionar o bem protegido e, portanto, de atingir o resultado. Trata-se do crime impossível.
Tentativa perfeita ou acabada (crime falho) é aquela em se executou totalmente a conduta prevista no tipo penal, mas, mesmo assim, o crime não foi consumado. Ex.: Luiz dispara todas as balas de seu revolver em Antonio, que é socorrido e sobrevive. Na tentativa imperfeita ou inacabada, a execução não chega a completar-se, pois foi interrompida em seu decurso. Ex.: Luiz é preso em flagrante enquanto ainda estava disparando seus projéteis.
Tentativa abandonada ou qualificada: o agente voluntariamente desiste de continuar a execução do crime ou, depois da execução, evita sua consumação. Não se trata, realmente, de tentativa, pois as circunstâncias que impediram a consumação não foram alheiras à vontade do agente. São os casos de desistência voluntária e de arrependimento eficaz (art. 16).
6. Critérios para a distinção entre a preparação e a execução
O tópico mais controverso deste tema é a delimitação ente os atos que caracterizam a preparação e aqueles que já fazem parte da execução. Essa distinção é importantíssima para a determinação da punibilidade do ato, pois o crime tentado somente é possível se houver, ao menos, início de execução.
Os critérios de diferenciação mais aceitos pela doutrina são os seguintes :
a) critério objetivo-formal: só há execução quando o agente realiza ao menos parte da conduta descrita no tipo penal. É adotado por nosso Código Penal;
b) critério subjetivo: o crime começa a ser executado quando a intenção do agente é dirigida à sua consumação. De acordo com esse critério, não existiriam atos preparatórios;
c) critério material (teoria da hostilidades ao bem jurídico): inicia-se a execução quando houver lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico protegido;
d) critério objetivo-individual: a execução do crime é iniciada tanto pela concretização do verbo típico, quanto dos atos imediatamente anteriores à execução da conduta prevista no tipo penal. Acrescenta dois elementos ao critério objetivo-formal: o plano do agente e a proximidade do ato ao “núcleo do tipo”.
7. Momento de consumação do crime
Os crimes podem ser consumados em momentos diversos a depender de sua classificação. Assim, têm-se:
a) crimes materiais: consumam-se com a alteração na realidade física. Ex: o homicídio é consumado com a morte da vítima;
b) crimes formais e de mera conduta: consumam-se com a simples realização da conduta, sendo dispensável o resultado naturalístico. Nos crimes formais, esse resultado somente pode ocorrer depois da consumação do crime. Nesse caso, será mero exaurimento do crime. Ex.: concussão (art. 316). Nos crimes de mera conduta, o tipo penal não prevê a ocorrência de modificação no mundo físico. Ex.: calúnia (art. 138);
c) crimes de dano: consumam-se com a afetiva lesão ao bem protegido, que pode ser material ou imaterial. Ex.: furto (art. 155), que se consuma com a lesão ao patrimônio da vítima.
d) crimes de perigo: os crimes de perigo concreto, que se consumam com a exposição a risco do bem jurídico protegido. Ex.: maus-tratos (art. 136), que se consuma coma exposição a perigo da vida e da saúde da vítima. Os crimes de perigo abstrato consumam-se no momento da realização da conduta. Ex.: rixa (art. 137);
e) crimes omissivos próprios: consumam-se no primeiro momento em que o autor poderia ter agido e não agiu. Ex.: omissão de socorro (art. 135).
f) crimes omissivos impróprios: o sujeito que tinha a obrigação de evitar lesão a bem da vítima (função de garantidor da não ocorrência do resultado) não o faz. Consumam-se com a ocorrência do resultado, pois sempre são crimes materiais. Ex.: pai que deixa o filho afogar-se em uma piscina. Trata-se de homicídio, que se consuma no momento da morte da vítima;
g) crimes instantâneos: a consumação ocorre em um momento específico. Ex: o estupro (art. 213) consuma-se no momento da introdução do pênis na vagina da vítima;
h) crimes permanentes: o crime consuma-se continuamente, pois há constante lesão ao bem jurídico protegido. Ex.: seqüestro e cárcere privado (art. 148);
i) crimes qualificados pelo resultado: consumam-se no momento da produção do resultado que qualifica o crime. Ex.: latrocínio (roubo seguido de morte) – art. 157, § 3°;
j) crimes falimentares: consumam-se no momento da conduta ou do resultado, a depender da classificação (mera conduta, formais e materiais). A sentença declaratória de falência é apenas condição objetiva de punibilidade, não interferindo no momento consumativo.
k) crimes culposos: são sempre crimes materiais, pois o simples descuido que não provoca lesão nenhuma é um indiferente penal. Consumam-se, portanto, quando da produção de seu resultado.
Alexandre Magno Fernandes Moreira, o autor
Procurador do Banco Central do Brasil em Brasília. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá. Professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Paulista (Unip). Professor de Direito Penal, Processual Penal e Administrativo nos cursos Objetivo e Pró-Cursos. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Co-autor do livro "Direito Penal Acadêmico". Home Page: http://www.alexandremagno.com
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