A crônica judiciária nos brindou com um caso bem inusitado: a condenação, em Guarulhos, de três homens acusados de haverem assassinado uma jovem, Vanessa de Freitas, em 2006. Por quatro votos a três, os cidadãos que formaram o Tribunal do Júri os consideraram culpados. Como a votação é sigilosa e não podem os jurados esclarecer o porquê de suas convicções, é de concluir-se apenas que a argumentação apresentada pela acusação foi mais convincente do que a negativa de autoria por parte da defesa.
Todos se recordam de que os três acusados permaneceram presos durante dois anos até que surgisse uma confissão prestada por um assassino serial, conhecido como “O maníaco de Guarulhos”, assumindo a autoria do homicídio. Como o processo já estava em sua fase final, os três réus foram soltos e agora submetidos a julgamento. Com a condenação, voltaram a ser presos.
O resultado foi justo? Impossível saber. O fato é que nem os familiares da vítima nem os promotores de justiça que atuaram no processo – vale lembrar que o promotor que pedira a libertação dos acusados afastou-se do caso – parecem ter alguma certeza sobre quem realmente assassinou Vanessa de Freitas.
E por que se mantém essa dúvida? Porque durante todo o processo os seus atores principais – delegados de polícia, promotores de justiça, advogados e juízes – firmaram suas convicções com base nas declarações que prestaram os suspeitos, ao serem interrogados na Polícia, sem a presença de seus advogados.
É dizer, sem testemunhas diretas, sem perícias concludentes, sem documentos, os referidos personagens apoiaram-se na confissão que prestou um dos três acusados (os outros dois sempre negaram participação no crime) e, depois, na que prestou o “Maníaco de Guarulhos”. Quando ambos se retrataram de suas confissões, alegando terem sido torturados para assumirem a autoria do homicídio, não souberam mais os acusadores e juízes em qual versão acreditar. Ficaram, assim, ao sabor das oscilações dos acusados, reféns de confissões que não se sabe sob quais condições foram obtidas.
Com esses ingredientes – valor excessivo dado à confissão prestada em uma Delegacia de Polícia, alegações de tortura, bem assim um julgamento efetuado por juízes que não dão os motivos de seu convencimento – temos uma receita perfeita para um processo fadado à insegurança jurídica, com aroma de possível erro judiciário.
No terceiro milênio da era cristã soa anacrônico um processo ainda preso a dogmas e tradições antigas, que não mais se ajustam, racionalmente, a um mundo globalizado e dinâmico como o atual. A tortura, por exemplo, justificada pela lógica de que tudo vale em nome da verdade (os fins justificam os meios), fez parte do ordenamento jurídico brasileiro até 1832, quando as Ordenações Filipinas foram substituídas por legislação mais moderna. Até então, acreditava-se que o criminoso que confessasse o crime desempenhava o papel de “verdade viva”, de modo a autorizar o uso de todo tipo de suplícios, à luz do dia e diante de todos, para fazer “brilhar a verdade”. Sob tal lógica, se legitimava o pensamento segundo o qual é preferível que nenhum culpável resulte impune, ao custo da incerteza de que também algum inocente possa ser castigado.
Ao leitor não familiarizado com os meandros da justiça criminal, alerte-se para o fato de que a única hipótese em que alguém pode ser condenado sem o direito de saber os motivos concretos que levaram o julgador a decidir é a dos crimes da competência do Tribunal do Júri, em que os juízes do povo se pautam por sua íntima convicção. Também é importante saber que uma confissão, para valer como prova, deve ser prestada perante um juiz (e não perante um Delegado de Polícia), na presença do advogado do réu, e que essa confissão, se desacompanhada de outras provas, não basta para condenar o acusado.
Sem embargo, nem sempre essa regra é observada pela Justiça, a exemplo do que ocorreu no caso em exame. E se ainda acontecem julgamentos como esse, em que o destino dos acusados é definido simplesmente pelo que eles próprios disseram na fase de investigação (não houve confissão perante o juiz da causa), é porque ainda consideramos a confissão a rainha das provas, como se o resultado eficaz da função estatal de punir pudesse depender da colaboração do próprio acusado.
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