É sabido que com o advento da malgrada Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) surgiu a possibilidade de violação ao artigo 5°, inciso LXVI, da Constituição Federal, vedando a concessão de liberdade provisória a indivíduos acusados de praticar crimes daquela natureza.
Todavia, com o advento da Lei 11.464/2007 — que deu nova redação ao artigo 2°, da referida lei, alterando, dentre outros, o inciso II com a exclusão do termo “liberdade provisória” do mesmo, a jurisprudência dos Tribunais pátrios, com o afastamento deste óbice legal, flexibilizou-se, no sentido de conceder liberdade provisória em crimes de natureza hedionda.
Nesse sentido, consulte-se, v.g., o acórdão da lavra do ministro Og Fernandes proferido pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento do Recurso em Habeas Corpus 23.393/SP, publicado no DJ de 29 de setembro de 2008.
Não obstante, esta mudança legal e jurisprudencial ocorrida, alguns Tribunais têm indeferido pedidos de concessão de liberdade provisória em crimes como de tráfico e os demais previstos nos artigos 34 a 37 da Nova Lei de Tóxicos (Lei 11.343/2006), por entender que a regra contida no artigo 44 da referida norma vedaria a concessão deste “benefício” — independente de motivação explícita relativa à aplicação dos requisitos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal, para manutenção da segregação cautelar.
Ora, não há como persistir este entendimento, pois, do contrário, basta que um promotor de Justiça menos zeloso, ao deduzir a imputação penal — troque a capitulação do artigo 28 — porte ilegal de drogas — para o artigo 33 — tráfico ilícito de entorpecentes — da Lei de Tóxicos e o acusado, mesmo diante da dúvida existente quanto a sua conduta, não poderá obter a liberdade provisória, nos termos da vedação legal constante do artigo 44 da referida lei.
Trata-se de um contra-senso que equipara este entendimento à nefasta prisão obrigatória há tempos banida do ordenamento jurídico pátrio e do ordenamento jurídico de qualquer outro Estado Democrático de Direito.
Causa ainda mais perplexidade, a aplicação desta regra em casos nos quais sequer foi instaurada a instância penal, nem tampouco foi oferecida denúncia.
Impedir que magistrados e Tribunais façam valer as garantias constitucionais, examinando a possibilidade de conceder liberdade provisória a acusados de praticar em tese crimes de natureza hedionda, é entregar ao Ministério Público, ou a autoridade policial, o poder de, através da capitulação do delito, manter ou não o acusado na prisão, segundo o seu exclusivo interesse. Ainda mais quando, nos termos do mais pacífico entendimento jurisprudencial, o réu se defende dos fatos e não da capitulação a ele imputada.
Isso, evidentemente, afronta o espírito e a letra da garantia instituída no artigo 5°, incisos LXI e LXVI, da Constituição Federal e usurpa do Poder Judiciário a competência exclusiva para decidir, em primeira mão, sobre a prisão de qualquer indivíduo submetido à jurisdição brasileira (artigo 5°, LXI da CF/88).
Dessa forma, em situações onde haja substanciosa dúvida quanto à capitulação do crime constante na denúncia, ou no auto de prisão em flagrante lavrado pela autoridade policial, não estará o juiz ou tribunal impedido de deferir a liberdade provisória, em face de ser outro o delito mais ajustado ao caso concreto, a fim de se evitar uma flagrante injustiça contra um cidadão.
Note-se, que em casos onde se discute a liberdade de um indivíduo preso em flagrante, acusado de tráfico ilícito de entorpecentes, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal tem abrandado o rigor da norma contida no artigo 44 da Lei 11.343/06, conforme se depreende do seguinte aresto, verbis:
“HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO EM FLAGRANTE. CRIME HEDIONDO. LIBERDADE PROVISÓRIA.
Embora o entendimento de que, em se tratando de crime hediondo ou a ele equiparado, a manutenção da prisão preventiva não necessita ser fundamentada na ocorrência de um dos requisitos do artigo 312, do CPP, a vedação constitucional deve ser vista com reservas.
Não havendo prova da materialidade ou indícios, mesmo que mínimos, da autoria, não pode o paciente permanecer acautelado, sob pena de se configurar o constrangimento ilegal.
Tudo isso, aliado ao fato de ser o paciente primário, não possuir antecedentes criminais, ser estudante universitário e ter residência fixa no distrito da culpa, mostra-se suficiente para a concessão da liminar.
Concedida a ordem, mantendo-se os efeitos da liminar deferida.”(TJDFT – HC 20080020156580, relator, desembargador Renato Scussel, DJ 3.12.2008, p. 65)
Assim, o que se espera, em casos onde se apura a prática de crime de natureza hedionda, especialmente o tráfico ilícito de entorpecentes, é que magistrados e Tribunais, em caráter excepcional, ausentes os requisitos constantes do artigo 312 do Código de Processo Penal, que autorizariam a medida de segregação cautelar — garantia da ordem pública, da ordem econômica, aplicação da lei penal ou conveniência da instrução criminal — façam cessar os efeitos da medida restritiva de liberdade, e não se curvem diante da vedação legal existente no artigo 44 da Lei de Tóxicos (Lei 11.343/06).
Frise-se, por fim, que não se trata de um afastamento definitivo do óbice legal contido naquela norma, mas sim, que este deverá sempre ser analisado com reservas pelos julgadores, sob pena de ter sua função jurisdicional usurpada pelo Ministério Público ou mesmo pela autoridade policial.
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