Com a entrada em vigor da Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, o título VI da parte especial do Código Penal passou a ser denominado “Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual”. Entendeu o legislador que esta expressão é uma vertente do Princípio da dignidade da pessoa humana, o qual representa um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III, CF/88).
De uma forma geral, a nova Lei trouxe significativas mudanças aos crimes sexuais, inclusive ao art. 229 que trata do crime “casa de prostituição”, o qual será abordado no presente trabalho.
A redação anterior incriminava a conduta daquele que mantinha por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, com ou sem intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente, senão vejamos:
“Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente”.
Não obstante severas críticas por parte da doutrina e da jurisprudência quanto à desnecessidade de se incriminar uma conduta tolerada, senão aceita, por grande parte da população, o legislador ordinário manteve o art. 229, cuja redação passou a ser a seguinte:
“Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente”.
Observa-se que a grande inovação introduzida pela Lei 12.015/09 foi substituir casa de prostituição ou lugar destinado a encontro para fins libidinosos por estabelecimento em que ocorra a exploração sexual. Esta última expressão passou a abranger não só os prostíbulos, mas qualquer estabelecimento que venha a servir de abrigo para a prática habitual de comportamentos que denotem exploração sexual.
A pena prevista no tipo penal permaneceu de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão e multa.
Por mais nobre que seja a intenção do legislador de tutelar a dignidade sexual das pessoas, o tipo penal previsto no art. 229 do Código Penal na prática não tem se mostrado eficaz.
Segundo o Prof. Rogério Greco:
“a existência de tipos penais como o do art. 229 somente traz descrédito e desmoralização para a Justiça Penal (Polícia, Ministério Público, Magistratura, etc.), pois que, embora sendo do conhecimento da população em geral que essas atividades são contrárias à lei, ainda assim o seu exercício é levado a efeito com propagandas em jornais, revistas, outdoors, até mesmo em televisão, e nada se faz para tentar coibi-lo”.
Nesse mesmo sentido, esclarece Guilherme de Souza Nucci:
“os que forem contrários aos locais de prostituição devem buscar sanar o que consideram um problema através de campanhas de esclarecimento ou educação moral, mas jamais se valendo do direito penal, que há muito tempo se mostra ineficaz para combater esse comportamento”.
Ainda, para corroborar esse entendimento, faz-se necessário a transcrição de alguns julgados de nossos tribunais:
“Não há falar em crime previsto no art. 229 do CP, quando a própria sociedade tolera a existência de casa de prostituição. O desuso da norma do art. 229 do CP, por ser habitualmente inaplicada, faz letra morta o dispositivo. Precedente desta Corte”. (TJDF, APR 1880598, 2ª T., Crim., Rel. Ribeiro de Sousa, j. 24/9/1998, DJ 26/5/1999, p. 92).
“Não se caracteriza o delito de casa de prostituição quando a boate destinada a encontros amorosos funciona na chamada zona do meretrício com pleno conhecimento e tolerância das autoridades administrativas bem como da sociedade local”. (TJPR, 4ª Câm. Crim., Ac 0352174-4 Arapongas, Rel. Des. Antônio Martelozzo, um., j. 19/10/2006).
“Forte corrente jurisprudencial vem entendendo que o tipo penal descrito no art. 229 do CP está sofrendo um verdadeiro processo de despenalização, em decorrência da institucionalização da prostituição no tecido social”. (TJRS, ACR 70015569288, 8ª Câm. Crim., Rel. Sylvio Baptista Neto, pub. 2/5/2008).
“Casa de prostituição é conduta que vem sendo descriminalizada pela jurisprudência, em face da liberação dos costumes, e por isso, quando não há notícia que envolva menores, como no caso concreto, considera-se atípica”. (TJRS, ACR 70022554778, 5ª Câm. Crim., Rel. Genacéia da Silva Alberton, pub. 25/4/2008).
Diante disso, caberá aos tribunais superiores resolver essa dicotomia, fazendo uma análise do novo art. 229 do Código Penal à luz dos princípios que norteiam o ordenamento jurídico-penal.
A título de exemplo, cumpre mencionar o Princípio da fragmentariedade do direito penal que atribui um caráter fragmentário ao direito penal. Ou seja, o direito penal só deve entrar em cena como ultima ratio, intervindo somente quando imprescindível à segurança da coletividade e do cidadão. Nem todas as lesões a bens jurídicos protegidos devem ser tuteladas e punidas pelo direito penal, pois este constitui apenas uma parte do ordenamento jurídico. O mais deve ser resolvido pelos outros ramos do direito, através de indenizações civis ou punições administrativas.
Destaca-se também o Princípio da adequação social da conduta, o qual defende a impossibilidade de se considerar como delituosa uma conduta aceita ou tolerada pela sociedade, mesmo que se enquadre em uma descrição típica. Exemplos seriam as lesões corporais causadas em partidas de futebol e o próprio fato de manter estabelecimento onde pessoas maiores de idade se reúnem para encontros com fins libidinosos.
Ora, o que não se pode permitir é a mantença de estabelecimento onde ocorra exploração sexual de menores ou outros delitos imprescindíveis de repressão penal.
Podemos concluir que, apesar da norma penal incriminadora prevista no art. 229 do Código Penal estar em plena vigência é necessário interpretá-la de forma cuidadosa para que possa ter validade e aplicabilidade ao caso concreto. Do contrário será apenas letra morta de lei.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, Editora Revista dos Tribunais, 2009.
GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches e; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à reforma criminal de 2009 e à Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
GRECO, Rogério. Curso de direito penal – parte especial. v. III; 6. ed. Niterói: Impetus, 2009.
GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 2. ed. Niterói: Impetus, 2009.
CAMPOS, Pedro Franco de; THEODORO, Luis Marcelo Mileo; BECHARA, Fábio Ramazzini e; ESTEFAM, André. Direito Penal Aplicado. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal – parte especial. v. II. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
GOMES, Luiz Flávio e; VIGO, Rodolfo Luis. Do Estado de Direito Constitucional e Transnacional: Riscos e Precauções (Navegando pelas ondas evolutivas do Estado, do Direito e da Justiça). V. III. São Paulo: Premier Máxima, 2008.
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