1. INTRODUÇÃO AO TEMA
O Superior Tribunal Militar, em julgamento datado de 26 de março de 2009, apreciando mérito do pedido de habeas corpus nº 2009.02.034386-5/MS, em que foi relator o Ministro Francisco José da Silva Fernandes, por maioria[1] denegou a ordem, entendendo inexistir amparo legal.
Na espécie tratou-se de pedido feito pela Defesa visando trancar processo penal instaurado contra um recruta que fora flagrado portando e inalando a substância apontada como “cola de sapateiro”, no interior da sala de recreação do 9º Grupo de Artilharia de Campanha – 9º GAC, sediado no município de Nioaque/MS.
Conforme se verifica do corpo do v. acórdão e de sua ementa, para o Superior Tribunal Militar, “diversamente da legislação comum, a redação do art. 290 do CPM contém um plus ao estabelecer que o tipo também se aperfeiçoe com a conduta de usar ou consumir substância que determine dependência física ou psíquica em lugar sujeito à administração militar”.
Para a Corte Militar, “embora não esteja incluído na Portaria 344/98-ANVISA como entorpecente, a cola de sapateiro é substância que causa efeito semelhante, cuja conseqüência é determinar a dependência física ou psíquica, como aliás restou concluída em laudo pericial”.
No entanto, o que mais chama a atenção é o fato do venerando acórdão transcrever trechos do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, do Recurso Ordinário em Habeas Corpus de nº 94.418-3/MS[2], igualmente interposto pela Defesa do mesmo militar acusado sobre o mesmo fundamento. A bem da verdade, os trechos escolhidos são citações de apartes feitos pelos Ministros do STF, e que, uma vez gravados passam a integrar todo o contexto daquele julgamento. Dessa forma, ainda que o e. Ministro Marco Aurélio tenha evidenciado “alguma perplexidade no que o art. 290 do Código Penal Militar, norma especial aplicável à espécie, cogita, não só de substância entorpecente, como também da utilização, do uso próprio, da entrega de qualquer forma e do consumo da substância que determine dependência física ou psíquica” e que, essa perplexidade fez com que a e. Ministra Carmen Lúcia tenha chamado a atenção sobre a conjunção ou inserida no dispositivo penal castrense, tenho por mim que o colóquio ministerial, ocorrido durante sessão de julgamento no Supremo, não tem o condão de embasar este precedente perigoso do Superior Tribunal Militar, já que ao manter em andamento o processo penal contra um recruta flagrado inalando “cola de sapateiro” acaba o STM indiciando um futuro entendimento de que o ato em si mesmo considerado é relevante penalmente, com o que, ressalvado entendimentos contrários e de todo respeitados, não posso concordar.
Foram também pinçados do colóquio ministerial durante o julgamento referido no STF, e usados para fundamentar a decisão do STM, a diferença entre o tipo do art. 290 do CPM e a Lei nº 11.343/2006 (nova Lei de Drogas) apontada pelo Ministro Marco Aurélio e, da mesma forma a preocupação do Ministro – no que foi secundado pela Ministra Carmen Lúcia, acerca do espaço específico da jurisdição militar, no qual a disciplina e a hierarquia são fundamentais.
A decisão do STM, repito, abre um precedente perigoso. Se for certo que o abolicionismo do direito penal não é a solução mais segura para a sociedade, a toda evidência que o expansionismo do direito repressivo também não o é, como procurarei demonstrar a seguir.
Mesmo porque, no julgamento do RHC 94.418/MS o Supremo Tribunal Federal sequer analisou a questão sobre a tipicidade/atipicidade do ato de inalar cola de sapateiro, o que foi decidido naquele momento é que, nos termos do voto vencedor do Ministro Marco Aurélio, ficou-se apenas no provimento do recurso para que o Superior Tribunal Militar examinasse a questão de fundo – o STM não havia adentrado à questão de fundo, ser ou não ser a cola substância entorpecente, já que julgara prejudicado o pedido de HC pelo entendimento de que, tendo a defesa buscado inicialmente o trancamento do inquérito policial militar por absoluta atipicidade da conduta assumida pelo paciente, prevalecia a tese de que, recebida a denúncia, não é mais o caso de se falar em falta de justa causa para o inquérito.
A matéria voltará a ser apreciada pelo Supremo, em face de novo RHC, de nº 98.323[3].
2. ATIPICIDADE DA CONDUTA DO MILITAR PORTANDO E INALANDO COLA
Que o ato de aspirar (cheirar, inalar) a chamada “cola de sapateiro” é prejudicial à saúde ninguém duvida.
Na área de jurisdição da 3ª Auditoria da 3ª Circunscrição Judiciária Militar relembro, ao menos de dois exemplos anteriores, onde o representante do Ministério Público Militar requereu o arquivamento dos autos em face da atipicidade da conduta, tendo os dois pedidos sido deferidos pelo Magistrado.[4]
Não deixa de causar surpresa o fato da posse, guarda e uso de substância conhecida como “cola de sapateiro” em uma Unidade Militar e por um de seus integrantes. Surpresa porque o consumo da “cola de sapateiro” aumentou em proporções geométricas, como conseqüência do quadro caótico de miséria reinante no país, principalmente por parte de crianças e adolescentes que vivem nas ruas das cidades de médio e grande porte.
Conforme anotei alhures, “já em dezembro de 1991, a Polícia Militar do Paraná questionava o Instituto Médico Legal acerca dos componentes da cola de sapateiro, bem como efeitos e sintomas apresentados pelo usuário.
Em resposta, o Dr. Dilermando Brito Filho, chefe da Seção de Toxicologia daquele Instituto esclareceu que a composição química da cola é variadíssima, porém o componente principal geralmente é o tolueno, solvente que tem, por inalação, efeitos psicotrópicos.
Esclareceu ainda que a substância normalmente causa dependência psíquica e em alguns casos física, dependendo da formulação química, sendo que o usuário apresenta como sintomatologia, tontura, fraqueza, crises de euforia, violência, marcha cambaleante (embriaguez), eventuais delírios, sintomas idênticos à embriaguez etílica como voz pastosa, diminuição da acuidade visual e da destreza motora, etc.
Quanto aos efeitos, este compreende depressão do sistema nervoso central, necrose dos rins, fígado, das glândulas suprarenais, depressão do córtex central e coração. Anemia plástica é um dos efeitos esperados a médio prazo e é um fato irreversível, além de micro-hemorragias viscerais.
A morte pode sobrevir por insuficiência respiratória, ação direta sobre o miocárdio com parada cardíaca, além de complicações hepáticas, renais e aplasia da medula (conforme ofício nº 1.699/91, de 24.12.1991, do IML). ”[5]
Daí porque minha surpresa, já que desde o início da década de 90 passei a acompanhar os maléficos efeitos da cola de sapateiro, seja como 1º Coordenador do Projeto PM Criança, que visava adequar a atividade da PM paranaense às regras do Estatuto da Criança e do Adolescente, que gerou fértil parceria com representantes à época da Pastoral da Criança, Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, Secretaria Municipal da Criança de Curitiba e Ministério Público, seja posteriormente como Promotor de Justiça da Infância e da Juventude no sudoeste do Paraná, entre os anos de 1995 a 1999.
Recrutas militares que são flagrados aspirando cola não deixam de ser pessoas recém-saídas da adolescência[6], com toda certeza trouxeram dela a herança maléfica do uso da cola.
Ora, ainda que perniciosa ao extremo, a conduta de portar, aspirar ou cheirar cola não é crime em nosso ordenamento pátrio.
Conforme já ficou assinalado anteriormente, “em primeiro lugar, é fundamental que policiais civis e militares tenham em mente que a ação do público infanto-juvenil [e digo agora, de adultos também] em inalar a dita cola de sapateiro não é ato infracional [e nem crime]. Esta conduta, como esclareceu a Promotora de Justiça Valéria Teixeira de Meiroz Grilo, não é considerada criminosa, seja praticado por menor ou maior de dezoito anos. Não pode, portanto, ser apreendido e processado o adolescente nessas condições. O ato infracional seria o de adquirir, trazer consigo para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (Lei de Tóxicos, art. 16). Esta é a definição da infração. Como não há portaria do Ministério da Saúde que inclua o tolueno ou xileno como substância entorpecente ou psicotrópica, nos moldes do art. 36 da Lei 6.368/76, não há que se falar em crime ou ato infracional (A cola de sapateiro e os solventes químicos frente ao ECA, Fórum sobre Cola de Sapateiro e Solventes Químicos, 23.03.1994)”.[7]
A comercialização da cola de sapateiro é devidamente controlada, inclusive a nível legislativo já que leis obrigam o cadastramento das pessoas jurídicas que comercializam produto que tenha em sua composição solvente hidrocarboneto aromático denominado tolueno.
Lembra Valéria Teixeira de Meiroz Grilo que “na verdade, o controle deve ocorrer sobre todos os produtos que contém solventes voláteis e têm como fator comum uma ação depressora sobre o sistema nervoso central. São as colas contendo tolueno e solventes encontrados nos removedores, polidores, tintas, agentes de limpeza e tiners. Todos estes produtos podem ser inalados com auxílio normalmente de um plástico que o consumidor põe sobre a face e causam dependência física e psíquica com sérios danos à saúde”.[8]
Para concluir esta parte acerca da atipicidade do ato de portar e aspirar a dita “cola de sapateiro” não se pode esquecer que o art. 290 do Código Penal Militar reintroduziu o critério da norma penal em branco. O caput do artigo é a norma de vigência comum, ao passo que a norma de reenvio ou complementar é a relação de substâncias entorpecentes ou capazes de determinar dependência física, expedidas pelo Serviço Nacional de Fiscalização de Medicina e Farmácia, do Ministério da Saúde. São as conhecidas listas da DIMED-MS[9], e que hoje são regulamentadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
As resoluções da ANVISA, atualizadas periodicamente, relacionam as substâncias de uso proscrito no Brasil. “A questão que se coloca neste momento é saber se a “cola de sapateiro” consta do rol exaustivo das substâncias de uso proscrito no País. A cola de sapateiro possui solventes orgânicos voláteis do tipo N-Hexano e, principalmente tolueno, que com o uso abusivo, podem causar dependência física ou psíquica. Todavia, estas substâncias não se encontram relacionadas na Lista “F”, da Resolução RDC nº 044, da ANVISA.
Ora, se as substâncias encontradas na “cola de sapateiro” não estão expressamente elencadas pelo órgão competente como de uso proscrito no País, a conduta de trazer consigo é um indiferente penal, sendo assim, atípica. ”[10]
3. A CELEUMA DA CONJUNÇÃO “OU” DO TIPO PENAL DO ART. 290 DO CPM
Conforme se depreende da leitura do acórdão do STM ora analisado, a Corte castrense concluiu que, “não obstante constituir o art. 290 do CPM norma penal em branco quanto à definição de substâncias entorpecentes, a essas não se limita, estendendo expressamente de forma alternativa, mediante o emprego da conjunção “ou”, a toda e qualquer substância de efeito similar ao entorpecente, vale dizer, que determine dependência física ou psíquica” (sic).
Com a devida vênia, parece que o disco foi jogado longe demais. É certo que o destaque à conjunção “ou” fora lembrado no colóquio ministerial quando do julgamento do RHC 94.418/MS, mas ele fora feito em comparação da norma penal militar com a norma penal comum, o art. 28 da Lei nº 11.343/2006 que trouxe um tratamento completamente diverso à matéria, principalmente em relação àquele caracterizado como usuário.
O CPM foi editado em 1969, sendo que antes dele a matéria não havia sido tratada pelo legislador penal militar. Em 1976, com a edição da Lei de Tóxicos, exatamente com ela (apesar de tratar tanto do uso quanto do tráfico no mesmo dispositivo) é que a norma do art. 290 foi identificar-se, seja no antigo e famoso art. 12 (hipótese de tráfico) da Lei 6.368/76, seja no art.16 (hipótese de uso próprio).
Pois bem, uma simples leitura dos artigos 12 e 16 da antiga Lei de Tóxicos permitem verificar que a conjunção “ou” ali se encontrava, ligando a expressão entorpecente àquela que determinasse dependência física ou psíquica, verbis: “(...), de qualquer forma, a consumo[para uso próprio] substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica(...)”.
Nos trinta anos de vigência da Lei de Tóxicos (1976/2006), salvo engano para o qual desde logo me penitencio, não houve perplexidade semelhante em relação à conjunção ou, que pudesse autorizar o enquadramento de usuários de quaisquer substâncias voláteis possível de causar dependência física ou psíquica (não só a cola de sapateiro, mas, também colas de madeira, tintas, solventes em geral, esmalte de unha, tiners) como usuários ou traficantes de tóxicos.
Conquanto o art. 290 do CPM (de vigência comum) seja uma norma penal em branco, a norma de reenvio que o complementa é de natureza restrita, somente alcançando as substâncias que são elencadas como de uso proscrito pelas autoridades competentes deste imenso Brasil, não havendo espaço para interpretações extensivas in malam parte.
Curioso que o v. acórdão do STM não tenha se referido a outros trechos do debate entre os Ministros do STF, por exemplo quando o Ministro Marco Aurélio assinalou “por ora não me comprometo com a tese de fundo[ser ou não ser a cola entorpecente]. Apenas entendo que se deve esgotar a jurisdição penal militar e determino que o Superior Tribunal Militar se pronuncie”. Nem tampouco sobre o voto vencido do relator originário Ministro Carlos Britto, que acolhia o pedido e trancava a ação penal instaurada em face do uso da cola. Ou mesmo o aparte do saudoso Ministro Menezes Direito, após o relator ter assinalado que iria ficar vencido: “é até bom porque ajuda o julgamento lá. O voto vencido ajuda o julgamento lá”.
4. AFINAL, O USO INDEVIDO DA COLA DE SAPATEIRO PODE OU NÃO SER PUNIDO?
Há uma resposta afirmativa para tal pergunta, mas com certeza não iremos encontrá-la na legislação penal militar.
Já dissemos há tempos atrás que “o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a partir do artigo 228, dispõe sobre os ‘crimes em espécie’, melhor dizendo, tipifica todas aquelas condutas que violam os preceitos da Lei nº 8.069, de 13/07/90. Dentro da doutrina de proteção integral, principalmente em relação aos bens indispensáveis da vida e da saúde, e que o legislador previu a figura do art. 243, cujo texto é o seguinte:
Art. 243 – Vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam causar dependência física, ou psíquica, ainda que por utilização indevida.
O delito do art. 243 do ECA inclui-se entre os que ofendem a incolumidade pública, sob o particular aspecto da saúde de crianças e adolescentes. É crime de perigo abstrato. (...)
b) A parte seguinte é o trabalho a ser desencadeado, na capital e no interior, em harmonia com o Ministério Público e a Justiça da Infância e da Juventude, visando prender em flagrante ou indiciar em inquérito policial, adultos que estejam realizando o ‘tráfico ilícito da cola’, com vistas a tornar dependentes crianças e adolescentes e, assim, utilizá-los na prática de outros delitos, notadamente o furto. (...)
c) Uma vez instaurado o inquérito ou preso em flagrante o adulto responsável pela distribuição ou comercialização da cola e, assim, incurso no art. 243, caberá a autoridade policial materializar o delito.
c.1. Para esta materialização, de crime de perigo abstrato, é fundamental o laudo técnico competente do Instituto Médico Legal.
c.2. Para tanto, após a apreensão da substância (em sacos, latas ou outros recipientes) esta deverá ser encaminhada ao Instituto Médico Legal, cujo perito designado deverá responder, entre outros, aos seguintes quesitos: a substância conhecida como cola de sapateiro é entorpecente? Qual a sua composição química? A cola de sapateiro causa dependência física ou psíquica? Dita substância é prejudicial à saúde física e mental? Quais os efeitos nocivos causados por ela? Quais os sintomas apresentados por alguém embriagado pela substância? É possível determinar as sensações que tem quem a ingere? A cola de sapateiro pode causar a morte? Em que circunstâncias?”.[11]
Creio ter ficado demonstrado a impossibilidade de se prender e depois processar um adulto, militar ou não, pelo fato de ter sido flagrado portando e aspirando a substância conhecida como “cola de sapateiro”.
Com efeito, mesmo que apenas por força do art. 243 do ECA, a conduta a ser punida não é o”inalar”, “aspirar”, “cheirar” a dita cola, mas sim a venda, o fornecimento, o ministrar, a entrega de qualquer forma e sem justa causa da cola para criança ou adolescente porque estas são consideradas pessoas em desenvolvimento, merecedoras de integral proteção.
Aproveitando-se o caso concreto, se ao invés de um recruta (que é maior de 18 anos) fosse flagrado um militar adolescente (é possível, nas Escolas de Oficiais o adolescente de 17 anos ter ingressado na Força por concurso público, como os adolescentes de 17 anos que são aprovados no vestibular) a conduta a ser punida seria a daquele que tivesse dado condições, de alguma forma, para que a cola pudesse ser utilizada por aquela pessoa em desenvolvimento[12] e nunca a do infeliz usuário.
O venerando acórdão do Superior Tribunal Militar até citou precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo, onde consta que o fornecimento da substância conhecida como cola de sapateiro com laudo pericial demonstrando a presença de componentes possíveis de causar dependência física ou psíquica, caracteriza ato infracional...(Câmara Especial – apelação nº 068.463.010, Pilar do Sul – 08.01.2001).
Infelizmente, a mera referência ao acórdão do TJSP não elucida a questão. Tive o cuidado de buscar o inteiro teor do referido acórdão, cuja ementa, na íntegra, é a seguinte:
“Menores – Ato infracional equivalente ao crime previsto no art. 243 do ECA – Autoria e materialidade comprovadas – Fornecimento da substância conhecida como cola de sapateiro, demonstrando a presença de componentes possíveis de causar dependência física ou psíquica, que caracteriza o ato infracional – Recurso provido, para aplicar aos apelados medida sócio-educativa de liberdade assistida, pelo prazo de seis meses, cumulada com medida de protetiva de inclusão em programa de tratamento a dependentes de droga”. (TJSP, Câmara Especial, Apelação 068.463.0/0-00, Comarca de Pilar do Sul, relator Des. Sérgio Gomes, unânime, julgado em 08.01.2001)
Ou seja, consta do corpo do acórdão que um menor de idade e outro adulto forneceram, gratuitamente, para outros dois adolescentes, quantidade indeterminada de cola de sapateiro, que usada indevidamente, pode causar dependência física ou psíquica. Como o art. 243 do ECA é de natureza subsidiária, não há necessidade da substância N-Hexano e Tolueno, componentes da cola, estarem relacionados na Lista do Ministério da Saúde, pois se isso ocorresse, estaria tipificado um dos crimes previstos na Lei 6.368/76, e o art. 243 do ECA seria letra morta.
Digo mais, não só a cola de sapateiro, mas qualquer outra substância que seja capaz de causar dependência física ou psíquica, desde que fornecida indevidamente para crianças e adolescentes, irá configurar o crime do art. 243, mesmo que não conste das listas de produtos proscritos no Brasil. Como exemplo, cito o das bebidas alcoólicas, as quais, em que pese não serem proscritas podem causar dependência psíquica ou psíquica, tanto que o alcoolismo crônico já é reconhecido como doença. Assim, adultos que forneçam, vendam, ou entreguem de qualquer forma bebidas alcoólicas para crianças e adolescentes (objetos de proteção integral por parte do Estado), podem vir a ser processados pelo crime do art. 243 do ECA, à toda evidência, será necessário o laudo pericial, nos mesmos moldes que nos referimos acima. Mas com certeza, tal laudo nunca será apto a enquadrar o ébrio que for encontrado com uma garrafa de cerveja ou conhaque como incurso no art. 290 do CPM, pelo simples fato das bebidas poderem ser enquadradas, em uma interpretação extensiva derivada do exagero da conjunção “ou”, em toda e qualquer substância de efeito similar ao entorpecente, vale dizer, que determine dependência física ou psíquica.
Finalizando, e retomando ao título deste pequeno e despretensioso ensaio, reafirmo, com a devida vênia, criminalizar o tolueno não cola!
[1] Foram vencidos os Ministros Maria Elisabeth Guimarães Teixeira Rocha e Renaldo Quintas Magioli.
[2] Relator o Ministro Marco Aurélio.
[3] Distribuído, por dependência ao Ministro Marco Aurélio, estando concluso ao Relator, com parecer favorável do MPF, pelo seu provimento.
[4] APF nº 41/03, onde um recruta foi autuado em flagrante por ter sido encontrado inalando cola de sapateiro, em data de 12.09.2003, no interior do 13º GAC, sediado em Cachoeira do Sul/RS e; APF nº 42/07, onde um recruta foi flagrado em idêntica situação, em data de 21.08.2007, no interior do Colégio Militar de Santa Maria/RS.
[5] ASSIS, Jorge Cesar de. Estatuto da Criança e do Adolescente em Perguntas e Respostas. Curitiba: Editora Juruá, 2000, p.20.
[6] Convencionei tratar dessa forma os que se encontram entre os 18 a 21 anos de idade, que é a idade em que ainda estão submetidos ao caráter protetivo do diploma infanto-juvenil (ECA, art. 2º, parágrafo único).
[7] ASSIS, Jorge Cesar de. Aplicabilidade efetiva do artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Revista Igualdade, livro 4. Curitiba: Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente, Ministério Público do Paraná, julho-setembro de 1994, pp.38-39.
[8] GRILO, Valéria Teixeira de Meiroz. A cola de sapateiro e os solventes químicos frente ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Revista Igualdade, livro 3. Curitiba: Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente, Ministério Público do Paraná, abril-junho de 1994, p.12.
[9] ASSIS, Jorge Cesar de. Comentários ao Código Penal Militar, 6ª edição. Curitiba: Editora Juruá, 2007, p. 631.
[10] ARPINI, Soel. apud Parecer do Ministério Público Militar nos autos de prisão em flagrante nº 42/07, em curso na 3ª Auditoria da 3ª CJM, culminando por requerer o arquivamento do feito, o que foi deferido pelo Magistrado. Santa Maria: Procuradoria da Justiça Militar, 27.08.2007.
[11] ASSIS, Jorge Cesar de. Apud Aplicabilidade efetiva do artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Revista Igualdade, livro 4......................................................pp. 39-40.
[12] ECA, art. 6º: Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos e, a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
Membro do Ministério Público da União. Promotor da Justiça Militar, exercendo suas atividades na Procuradoria da Justiça Militar em Santa Maria/RS. Oficial da reserva não remunerada da Polícia Militar do Estado do Paraná, lecionou na Academia Policial Militar do Guatupê e no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças. Foi também Promotor de Justiça do Paraná, entre os anos de 1995 a 1999. Sócio fundador da Associação Internacional das Justiças Militares e membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar. Articulista assíduo em várias revistas jurídicas e Palestrante do Direito Militar, em inúmeros eventos, destacando-se o 1º Encontro Internacional de Direitos Humanos, Direito Penal e Direito Militar, realizado em Brasília/DF, em novembro de 2000, e o II Encontro Internacional de Direito Humanitário e Direito Militar, realizado em Florianópolis/SC, em dezembro de 2003. Semana de Reflexão sobre a Justiça Militar, realizado na cidade de Praia, República de Cabo Verde, em março de 2008, aonde palestrou a convite do Chefe do Estado Maior das Forças Armadas daquele país, e o 3º Encontro de Direito Humanitário e Direito Militar, realizado pela Associação Internacional das Justiças Militares-AIJM, na cidade de Santiago, Chile, em maio de 2008, onde atuou na condição de Secretário Geral - Ad Hoc, da AIJM. Autor de livros relacionados a área militar. Site: www.jusmilitaris.com.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ASSIS, Jorge Cesar de. Com a devida vênia, criminalizar o Tolueno não cola! Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 out 2009, 07:41. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/18596/com-a-devida-venia-criminalizar-o-tolueno-nao-cola. Acesso em: 22 nov 2024.
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