Com o advento da Lei 12.015/09 foram acrescentadas duas novas causas de aumento de pena para o crime de estupro, nos termos da redação do artigo 234 – A, III e IV, CP. A primeira causa de aumento trata dos casos em que do estupro resulte gravidez, quando o acréscimo será de metade. Já a segunda causa de aumento refere-se à transmissão à vítima de doença sexualmente transmissível de que o agente sabe ou deveria saber ser portador, sendo o incremento da ordem de um sexto até a metade.
Neste trabalho será analisada especificamente a segunda figura acima mencionada, especialmente no que se refere à transmissão da AIDS como resultado de um crime de estupro.
Dentre as “doenças sexualmente transmissíveis” estão certamente as chamadas “doenças venéreas” (v.g. cancros, blenorragia etc.). No entanto, nem todas as “doenças sexualmente transmissíveis” são venéreas. A hanseníase se transmite pela via sexual, assim como a AIDS e nem uma nem outra são “doenças venéreas”. Portanto, serve para a configuração da causa de aumento do artigo 234 – A, IV, CP, tanto a transmissão de “doenças venéreas” como de outras “doenças sexualmente transmissíveis”, vez que as primeiras são apenas uma espécie das segundas.
Em geral a conduta do agente poderá ser dolosa na transmissão da doença, pois a lei prevê o caso em que o agente “sabe” que está contaminado. Também poderá ser preterdolosa, já que há previsão da expressão “deve saber”. Nessa situação o autor agiria com dolo no antecedente (estupro) e culpa no consequente (transmissão da doença).
Outra observação interessante é a de que a causa de aumento de pena, de acordo com a dicção legal e até por questão de bom senso, somente será aplicada quando a vítima do crime for contaminada. Caso ocorra contaminação do próprio autor do crime de estupro pela vítima por doença sexualmente transmissível, não será viável a aplicação do aumento de pena em estudo, isso porque a legislação é clara ao estabelecer a causa de aumento somente para situações em que “o agente transmite à vítima doença sexualmente transmissível”. Destaque - se que a solução legal é coerente, uma vez que a contaminação do autor ocorrida durante sua própria conduta criminosa já lhe pesa como uma espécie de pena natural, tornando a reação penal desnecessária e até irrazoável.
Resta agora analisar o caso da transmissão do vírus HIV pelo praticante do crime de estupro. Quando acima se afirmou que, conforme a dicção legal, a conduta que enseja a contaminação pode ser dolosa ou preterdolosa, tal orientação não tem aplicação para o caso da AIDS. Isso porque a AIDS é uma doença ainda letal, inobstante todos os consideráveis avanços em seu tratamento. Assim sendo, quem transmite dolosamente o vírus da AIDS a outrem atua com “animus necandi” ou “occidendi”, ou seja, quer matar a vítima. Se o agente estupra a vítima e lhe transmite dolosamente a AIDS, não se trata de um caso de estupro com aumento de pena, mas sim de concurso formal impróprio (artigo 70, “in fine”, CP) entre os crimes de estupro e de tentativa de homicídio. Nos demais casos que se referem a doenças venéreas ou outras enfermidades, mesmo que graves, o conflito entre o estupro com aumento de pena se dá com crimes de perigo (v.g. artigos 130 e 131, CP), razão pela qual, de acordo com o Princípio da Subsidiariedade, são estes afastados, prevalecendo o estupro majorado. Já no caso da tentativa de homicídio, se trata de crime de dano de suma gravidade, o qual não pode ser simplesmente afastado por subsidiariedade nem mesmo absorvido com base no Princípio da Consunção.
Efetivamente tem se assentado na doutrina e na jurisprudência que a transmissão dolosa do vírus da AIDS configura crime de tentativa de homicídio enquanto a vítima está viva e homicídio consumado quando ocorre o evento morte. Este é o pensamento, por exemplo, de Rogério Greco:
“Entendemos que, nessa hipótese, como não existe, ainda, a cura definitiva para os portadores de Aids, mesmo que o ‘coquetel de medicamentos’ permita, atualmente, considerável sobrevida, o fato deverá se amoldar ao art. 121 do Código Penal, consumado (se a vítima vier a falecer como consequência da síndrome adquirida) ou tentado (se, mesmo depois de contaminada, ainda não tiver morrido)”.
Diverso não tem sido o rumo das decisões jurisprudenciais sobre a matéria:
“Em havendo dolo de matar, a relação sexual forçada e dirigida à transmissão do vírus da AIDS é idônea para a caracterização da tentativa de homicídio” (HC 9378/ RS – 1999/0040314 – 2 – 6ª. Turma – Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. em 18.10.1999, DJ em 23.10.2000, p. 186).
A única hipótese em que a transmissão da AIDS em situação de estupro configurará normalmente a causa de aumento de pena e não concurso com tentativa de homicídio, será no caso de conduta preterdolosa do agente. Se o agente não tem em mira a transmissão do vírus letal porque, por exemplo, não se sabia infectado e o transmite com culpa, configura-se o estupro exasperado e afasta-se o crime de tentativa de homicídio por ausência do necessário elemento subjetivo deste último.
Frise-se que não será viável a aplicação da causa de aumento de pena concomitantemente com o crime de tentativa de homicídio nos casos de transmissão dolosa do vírus da AIDS porque em tal situação ocorreria “bis in idem”.
Finalmente é interessante salientar que poderá surgir entendimento de que nos casos de transmissão dolosa da AIDS, em se configurando a tentativa de homicídio, seria o crime de estupro absorvido como “crime – meio”. Afinal, o agente teria estuprado a vítima com o móvel de transmitir-lhe a doença letal e levá-la à morte. Mesmo ante essa possível argumentação, sustenta-se que a melhor solução será o concurso formal impróprio entre o estupro e a tentativa de homicídio. Em primeiro lugar porque haverá nessas situações a lesão de bens jurídicos diversos (dignidade sexual no estupro e vida no homicídio). Além disso, é fato que se o agente quisesse somente atingir o bem jurídico “vida” com sua conduta, poderia ter optado por transmitir a AIDS de outras formas à vítima, que não a via sexual. Como já se disse alhures, a AIDS não é doença venérea, é apenas sexualmente transmissível, mas pode haver contaminação por outras vias que não apenas o contato sexual (v.g. injeção de sangue contaminado etc.). Portanto, o agente, deliberadamente e com autonomia de desígnios, atinge bens jurídicos diversos, devendo responder pelos crimes respectivos em concurso formal impróprio e sendo apenado pela regra do cúmulo material.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume II. 4ª. ed. Niterói: Impetus, 2007.
LEAL, João José, LEAL, Rodrigo José. Novo tipo penal de estupro unificado. Considerações sobre as causas de aumento de pena e a ação penal. Disponível em www.jusnavigandi.com.br , acesso em 10.09.2009.
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