Recentemente foi noticiada na mídia a criação de uma medida que veio a nominar-se como “toque de acolher”, fazendo clara alusão ao termo “toque de recolher”, normalmente ligado a práticas marciais com restrição de direito de ir e vir, ou obrigação de permanecer na residência após determinado período do dia.
Em suma o “toque de acolher” se trataria de uma determinação voltada a crianças ou adolescentes de que após determinado horário, geralmente 22h, estas não poderiam permanecer fora de casa desacompanhadas, sob pena de serem levadas para casa por autoridades policias ou outras designadas para este fim e os país eventualmente responsabilizados. Aliás, verificou-se uma grande “aprovação popular” para a medida.
Inúmeras dúvidas pairam no ar. Inicialmente tratou-se do termo geralmente 22h, pois verifica-se que a medida “varia” de localidade para localidade, porém, pelo consenso comum de que 22h já é “noite”, aliado a outras idéias proibitivas do senso comum como após as 22h é proibido fazer barulho alto (sendo que a priori que qualquer barulho alto, independentemente, da hora do dia pode ser considerado perturbação...), normalmente verifica-se tal incidência.
Voltando aos questionamentos, o primeiro que surge é qual norma seria capaz de disciplinar tal matéria?
Pude verificar que ao menos nos municípios catarinenses que aderiram a prática, a regulamentação se deu através de uma Portaria do Juiz de Direito Titular da Comarca, ou da Vara da Infância e Juventude.
Surge ai a pergunta, seria o Juiz de Direito competente para editar tal portaria? Não se olvida da legitimidade para que ele possa editar portarias referentes aos temas que lhe são de sua competência, no entanto quanto ao conteúdo desta, de proibir circulação de menores após determinado momento, está tendo caráter de norma geral, impondo obrigação de lei a todos? Estaria o Ilustre membro do Poder Judiciário legislando?
Pode-se lembrar aqui das chamadas proibições que ocorrem em períodos eleitorais conhecidos como “lei seca” onde o Juiz Eleitoral edita uma portaria ou resolução que proíbe o comércio de bebidas alcoólicas ou funcionamento de casas noturnas em estas épocas.
Ocorre que tal edição se dá com respaldo no próprio Código Eleitoral que incumbe ao Juiz Eleitoral a tomar as medidas que entenda necessário para o bom andamento das eleições, portanto, há uma lei autorizando o Juiz Eleitoral a tomar tais medidas, o que também existe a possibilidade de questionar sua constitucionalidade, no entanto, não é este o cerne do presente trabalho.
Retornando ao ponto, poderia-se alegar que o Juiz de Direito que edita-se a portaria do “toque de acolher” estaria embasando-se no Estatuto da Criança e Adolescente e todo protecionismo que traz tais normas.
Dentro deste ponto, utilizando a lógica de que admissível a edição de portaria pelo Juiz Eleitoral proibindo determinadas condutas em época eleitoral, logo estaria autorizado o Juiz de Direito a editar uma portaria proibindo determinadas condutas por parte de menores, correto?
Em tese sim, no entanto, adentra-se a questão crucial, a constitucionalidade da medida.
É notório que o rol de direitos e garantias individuais trazidos no art. 5° de nossa Constituição não se restringe apenas a “adultos” ou “civilmente capazes”, mas sim a qualquer pessoa humana, até mesmo porque, condutas como o aborto é considerado crime em face a proteção a vida do nascituro e sua dignidade, que se dirá das crianças.
É também claro que os direitos individuais servem como garantia ao cidadão, ou seja, dentro de um Estado de Direito que é o qual vivemos, em que a lei que vale para o cidadão vale para o Estado, devendo este seguir pela legalidade, e a Constituição da República Federativa do Brasil, norma máxima no ordenamento jurídico pátrio, diz que são garantias do cidadão, dentre outras, aquelas taxadas no art. 5°, o Estado não pode contrariá-las sob pena de inconstitucionalidade e logo invalidade.
Dentre estes direitos fundamentais há o direito de liberdade de ir e vir ou direito a livre locomoção, regido pelo art. 5°, XV, da CRFB/88.
Agora pergunta-se, sendo um direito garantido pela Constituição ao individuo, compreendido qualquer pessoa do gênero humano, seja criança ou adulto, poderia o Juiz de Direito editar uma portaria para impedir a circulação de crianças?
Obviamente que não. Salvo melhor juízo, mesmo que se suponha que o ECA admite tal possibilidade, trata-se de norma infra-constitucional, portanto não pode ir contra preceito da Constituição, o que faz com que a adoção de tal medida seja incabida.
Mesmo fundamento vale para criação de lei, seja municipal ou federal sobre o tema, é manifestamente inconstitucional, pois em nosso ordenamento não é admissível que uma lei vá contra preceito constitucional, ainda mais, os do art. 5° consagrado como as “sagradas” garantias individuais.
Cita-se ainda que só é admissível a restrição do direito a livre locomoção em casos extremos, previstos na própria constituição, no estado de sítio, motivado por guerra ou ataque de agente externo ao país. Ou seja somente.
Poderia-se argumentar de que é a melhor saída para combater problemas como alcoolismo na adolescência, criminalidade e outros problemas que decorrem do menor ficar na rua até altas horas da noite.
Não se olvida que tais práticas não são na sua maioria boas ao caráter do menor e que de fato a portaria poderia, em tese, melhor esses quesitos, no entanto não podemos admitir tal possibilidade por se tratar de uma barbárie ao ordenamento jurídico do país! Seria o mesmo que admitir pena de morte em determinados crimes. Não julga-se aqui se deveria ou não haver pena de morte, mas sim de que não há possibilidade de haver tal norma, ao menos em quanto estiver em vigência essa Constituição.
E por estar no rol do art. 5°, trata-se de cláusula pétrea, logo imutável até mesmo por posterior emenda constitucional!
Assim, em que pese a intenção em proteger nossas crianças e adolescentes seja louvável, não se pode admitir que em nome de determinadas boas intenções se cometa atitudes que vá contra a lei, pois admitir isso, seria admitir que a lei não teria o seu poder de imposição que possui e destruir a segurança jurídica que todos nos possuímos.
Há outras medidas que precisam e devem ser feitas para auxiliar cada vez mais nossos menores, porém devemos nos pautar pela legalidade, se não estaremos admitidos a tomada de atitudes arbitrárias, que hoje são em face de intenções “boas”, mas que podem facilmente ser manipuladas para no futuro hajam medidas drásticas, como o próprio “toque de recolher”, com alegativas de necessidade por segurança e etcs.
É admitir palheativos com normas recriminadoras quando o essencial que é uma boa educação, investimento em escolas, saúde, pesquisa e segurança pública são negligenciados ... espero sinceramente que não estejamos caminhando para tal caminho em que a inconstitucionalidade seja aplaudida de pé por aqueles de menor instrução.
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