Antes de passar ao estudo dos movimentos de política criminal, cremos ser obrigatória a definição do que vem a ser tal assunto, assim o magistério da professora Maria Helena Diniz:
POLÍTICA CRIMINAL. Direito Penal. Política que tem por objetivo traçar normas relativas à luta contra o crime, impondo condutas ao legislador, ao órgão judicante e aos estabelecimentos prisionais, estipulando penas e medidas afins para combater as causas da criminalidade, promovendo condições ou meios ambientais desfavoráveis à perpetração da ação ou omissão criminosas, diminuindo a delinqüência e estudando, cientificamente, o crime como fato social, sob todos os aspectos[1]
Ampliando tal conceituação, o professor Nilo Batista diz que
Do incessante processo de mudança social, dos resultados que apresentem novas ou antigas propostas ao Direito Penal, das revelações empíricas propiciadas pelo desempenho das instituições que integram o sistema penal, dos avanços e descobertas da criminologia, surgem princípios e recomendações para a reforma ou transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação. A esse conjunto de princípios e recomendações denomina-se política criminal. Segundo a atenção se concentre em cada etapa do sistema penal, poderemos falar em política de segurança pública (ênfase na instituição policial), política judiciária (ênfase na instituição judiciária) e política penitenciária (ênfase na instituição prisional), todas integrantes da política criminal[2]
Em tempo, trazemos o conceito do Ministro da Suprema Corte Argentina, Raul Zaffaroni acerca da definição de Política Criminal:
Se por política se entende a ciência ou arte de governo, por política criminal pode-se entender a política relativa ao fenômeno criminal, o que não seria mais que um capítulo da política geral. Política Criminal seria a arte ou a ciência de governo, com respeito ao fenômeno criminal.
A Política Criminal guia as decisões tomadas pelo poder político ou proporciona os argumentos para criticar estas decisões. Cumpre, portanto, uma função de guia e de crítica.
Podemos afirmar que a Política Criminal é a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos), que devem ser tutelados jurídica e penalmente, e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos[3]
Superada esta fase, passamos à exposição dos mais relevantes Movimentos de Política Criminal, dos quais faremos menção ao: Minimalismo Penal, Abolicionismo Penal, Garantismo Penal e, por derradeiro, trataremos da chamada Política da “Tolerância Zero” ou como tem sido nomeada ultimamente, o chamado Direito Penal do Inimigo.
Movimentos Deslegitimadores
Em franca oposição aos modelos de Teorias da Pena apresentados até aqui, surgiram nos Estados Unidos da América, em meados dos anos 60 e 70, os chamados Movimentos de Política Criminal da nova criminologia, ou, como ficou conhecida posteriormente, Criminologia Crítica, que passaram a questionar veementemente os fins perseguidos pela reprimenda estatal ao indivíduo delinqüente.
Dos estudos e pesquisas que procuraram fomentar a base destes Movimentos, destacamos aqueles que foram enfaticamente trabalhados pelos defensores desta nova Escola Criminológica e que encontram síntese precisa no trabalho do professor Gamil Föppel el Hireche[4], in verbis:
1. O cárcere não educa – O encarceramento das pessoas, ao contrário do que deveria fazer, embrutece, dessocializa. Não há aprendizado, exercício de atividade laborativa, enfim, não há um processo gradual de reinserção no grupo social. Presos, milhares internos amontoam-se em condições subumanas, lembrando um inferno dantesco. Ao sair do presídio, na maioria das vezes, o indivíduo sai demente, impossibilitado de retornar à normalidade, ou sai revoltado, disposto a ‘retribuir’à sociedade os seus anos de martírio;
2. Custo de manutenção dos presídios - Com o que se gasta para sancionar condutas, poder-se-ia investir na formação das pessoas e evitar que estas enveredassem pelo mundo da marginalidade (em conformidade, assim, com o modelo de prevenção primária);
3. Seletividade – O sistema penal seleciona suas vítimas nas classes mais humildes da sociedade. Estas, originariamente, possuem problemas familiares, financeiros e, ainda que se afastando do determinismo mesológico de Hipolit Taine, estão mais propensas a delinqüir;
4. As Cifras ocultas – Este pensamento revela que, de todos os ilícitos cometidos, pouco chegam a ser sancionados. Há muitos inquéritos que não seguem adiante, muitas denúncias que não são oferecidas e muitos processos que chegam, ao final, a sentenças absolutórias. Os poucos condenados seriam os ‘escolhidos’;
5. Estigmatizante – O egresso carregará, para o resto de sua vida, as marcas de ter sido preso. Sua vivência social será sempre prejudicada, para ele será muito mais difícil conseguir um emprego, retornar à escola, enfim retornar a sua vida normalmente. Cria-se nas pessoas a falsa idéia de que o egresso significa um perigo constante, que a qualquer momento poderá voltar a delinqüir;
6. Violação dos direitos humanos – Em nome do Direito Penal, tortura-se, humilha-se, mata-se. É uma violência institucionalizada e ‘legitimada’, por todos aqueles que compõe a classe mais abastada da sociedade e pretendem ver eternizada sua dominação;
7. Consequêncialidade – O Direito Penal age nas conseqüências e não nas causas do problema;
Tomando como base para o seu discurso os pressupostos alinhados acima é que surgiram os chamados Movimentos Deslegitimantes da pena, os quais passaremos a tratar a partir de agora.
Minimalismo Penal
Apregoam os adeptos desta corrente que o Direito Penal deveria sofrer uma diminuição em seu campo de atuação, isto é, que o Direito penal passasse a cuidar tão somente das lesões mais sérias aos bens especialmente tutelados pelo Direito, como a vida, por exemplo, e que crimes como a calúnia ou difamação, poderiam e deveriam ser atacados pela via cível ou ainda administrativa, a depender do caso concreto.
A professora Alice Bianchini esclarece que
Há consenso de que apenas bens de elevada valia devam ser tutelados pelo Direito Penal. Isto porque a utilização de recurso tão danoso à liberdade individual somente se justifica em face do grau de importância que o bem tutelado assume. Aqui surge a preocupação com a dignidade do bem jurídico, dado que o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens, além da verificação a respeito do grau de importância do bem – sua dignidade, deve ser analisado se a ofensa irrogada causou um abalo social e se foi de tal proporção que justifique a intervenção penal. Assim, somente podem ser erigidas à categoria de crime condutas que, efetivamente, obstruam o satisfatório conviver em sociedade. Portanto, incomodações de pequena monta, ou que causem diminutos dissabores, são considerados como desprovidas de relevância penal, ficando, em razão disso, a sua resolução relegada a outros mecanismos formais ou informais de controle social[5]
Ainda como pressuposto de sua validade, esta Teoria procura demonstrar que nas chamadas condutas não lesivas aos bens mais importantes e realmente carecedores de uma tutela penal, existem outras formas de inibição e/ou controle do indivíduo, como a família, a Igreja, a comunidade local e a Escola, não sendo, portanto, necessária a intervenção do Direito Penal nesses casos.
Em virtude das discussões iniciadas a partir do estudo da corrente teórica mencionada, é necessário aclarar acerca de três conceitos de fundamental importância para este trabalho, a saber: Descriminalização, Despenalização e Diversificação.
Sobre os conceitos anotados acima, trazemos o ensinamento de Raul Cervini, in verbis:
Descriminalização – É sinônimo de retirar formalmente ou de fato do âmbito do Direito Penal certas condutas, não graves, que deixam de ser delitivas.
Em seu informe sobre o tema, o Comitê do Conselho da Europa diz que ‘se entende por descriminalização os processos pelos quais a competência do sistema penal para aplicar sanções como uma reação diante de certas formas de conduta é anulada a respeito dessa conduta específica’.
O mencionado autor ensina que os processos de descriminalização podem se apresentar de três formas, in verbis:
Descriminalização formal, de jure, ou em sentido estrito, que em alguns casos sinaliza o desejo de outorgar um total reconhecimento legal e social ao comportamento descriminalizado, como por exemplo, no caso da relação homossexual entre adultos, do aborto consentido e do adultério. Outras vezes esse tipo de descriminalização responde a uma ‘apreciação que difere do papel do Estado em determinadas áreas’, ou a uma valoração diferente dos Direitos Humanos que levam o Estado a abster-se de intervir, deixando em muitos casos a resolução desse fato em si mesmo indesejável às pessoas interessadas (autocomposição).
Descriminalização substitutiva, casos nos quais as penas são substituídas por sanções de outra natureza, como por exemplo, a transformação de delitos de pouca importância em infrações administrativas ou fiscais punidas com multas de caráter disciplinar.
Observamos que tanto na descriminalização stricto sensu como na que chamamos de substitutiva, a conduta deixa de constituir um ilícito penal, mas na primeira variável a solução é mais radical porque significa a eliminação de toda ilicitude, enquanto que na última hipótese (a substituição), embora o comportamento perca a antijuridicidade penal, não fica legalizado nem deixa de ser qualificado como antijurídico e indesejável.
Descriminalização de fato, (...) existe quando o sistema penal deixa de funcionar sem que formalmente tenha perdido competência para tal, quer dizer, do ponto de vista técnico-jurídico, nesses casos, permanece ileso o caráter de ilícito penal, eliminando-se somente a aplicação efetiva da pena.
Despenalização – Por despenalização entendemos o ato de diminuir a pena de um delito sem descriminalizá-lo, quer dizer, sem tirar do fato o caráter de ilícito penal.
Segundo o Conselho Europeu, este conceito inclui toda a gama de possíveis formas de atenuação e alternativas penais: prisão de fim de semana, prestação de serviços de utilidade pública, multa reparatória, indenização à vítima, semidetenção, sistemas de controle de condutas em liberdade, prisão domiciliar, inabilitação, diminuição do salário e todas as medidas reeducativas dos sistemas penais.
Diversificação – O conceito de diversificação significa a suspensão dos procedimentos criminais em casos em que o sistema de justiça penal mantém formalmente sua competência.
Implicará, em certas situações, remeter o problema às partes diretamente afetadas, para que o resolvam com ou sem a ajuda de um organismo externo. Outras vezes enfatiza-se mais a atuação de um organismo externo ad hoc que não pertence aos sistemas penais ordinários.
Este é precisamente o sistema que se aplica para resolver os casos de maus-tratos de menores nos países nórdicos ou no Canadá, onde, salvo em casos extremos, são abordados à margem do sistema penal, outorgando curador ao menor perante os Tribunais especiais[6]
Em derradeira análise sobre o assunto, trazemos à tona Paulo de Souza Queiroz, citado pelo professor Rogério Greco, in verbis:
Reduzir, pois, tanto quanto seja possível, o marco de intervenção do sistema penal, é uma exigência de racionalidade. Mas é também [...] um imperativo de justiça social. Sim, porque um Estado que se define Democrático de Direito (CF, art 1), que declara, como seus fundamentos, a ‘dignidade da pessoa humana’, a ‘cidadania’, os ‘valores sociais do trabalho’, e proclama, como seus objetivos fundamentais, ‘construir uma sociedade livre, justa e solidária’, que promete ‘erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais’, ‘promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação’ (art. 3), e assume, assim declaradamente, missão superior em que lhe agigantam as responsabilidades, não pode, nem deve, pretender lançar sobre seus jurisdicionados, prematuramente, esse sistema institucional de violência seletiva, que é o sistema penal, máxime quando é esse Estado, sabidamente, por ação e/ou omissão, em grande parte co-responsável pelas gravíssimas disfunções sociais que sob seu cetro vicejam e pelos dramáticos conflitos que daí derivam[7]
Abolicionismo Penal
A mais extremada das Teorias Deslegitimantes, sem dúvida, é o abolicionismo penal, pois propõe a total extinção do Direito Penal, por servir, tão somente, como uma ferramenta da classe dominante para perpetrar seu domínio, em detrimento dos menos abastados.
Não bastasse a ousada proposta apresentada pelos defensores desta corrente de retirar o Direito Penal da seara jurídica definitivamente, propõe, ainda, a total extinção das prisões, uma vez que não existiria nenhuma espécie de mecanismo capaz de legitimar o encarceramento de alguém ou mesmo sentenciá-lo a algum tipo de crime, uma vez que nada mais restaria penalmente típico.
Sobre o assunto manifesta-se o Membro do Ministério Público do Estado do Paraná, Dr. Rogério Greco:
A crítica abolicionista é construída desde o momento em que surge a lei penal, proibindo ou impondo determinado comportamento sob a ameaça de sanção, questionando os critérios, bem como a necessidade do tipo penal incriminador, passando pela escolha das pessoas que, efetivamente, sofrerão os rigores da lei penal, pois que, como é do conhecimento de todos, a ‘clientela’ do Direito Penal é constituída pelos pobres, miseráveis, desempregados, estigmatizados por questões raciais, relegados a segundo plano pelo Estado, que deles somente se lembra no momento crucial de exercitar a sua força como forma de contenção das massas, em benefício de uma outra classe, considerada superior, que necessita desse ‘muro divisório’ para que tenha paz e tranqüilidade, a fim de que possa ‘produzir e fazer prosperar a nação’[8]
Os teóricos desta corrente valem-se bastante do conceito de “cifras negras” para fundamentarem seus argumentos, pois preceituam que se a sociedade convive em um clima de estabilidade mesmo com a existência de muitos crimes que nunca serão levados a julgamento ante os nossos tribunais, logo, poderia suportar o banimento das prisões e do Direito Penal, em uma relação causa efeito absolutamente assustadora, a nosso sentir.
Acerca de um conceito do que vêm a ser as chamadas “cifras negras” da criminalidade, é pontual o magistério de Aniyar Castro:
É a diferença existente entre a criminalidade real (quantidade de delitos que cometidos num tempo e lugar determinados) e a criminalidade aparente (criminalidade conhecida pelos órgãos de controle), que indica, comprovadamente, acerca de alguns delitos, um percentual substancial, em que não é aplicado o sistema penal e que, em alguns casos, é praticamente absoluto, circunstância que debilita a sua própria credibilidade, ou seja, a credibilidade de todo o sistema penal[9]
Por derradeiro, trazemos a lume a lição do festejado doutrinador alemão Claus Roxin sobre o tema abordado:
O movimento abolicionista, que possui vários adeptos entre os criminólogos – não tantos entre os juristas – europeus, considera que as expostas desvantagens do direito penal estatal pesam mais que seus benefícios. Eles partem da idéia de que através de um aparelho de justiça voltado para o combate ao crime não se consegue nada que não se possa obter de modo igual ou melhor através de um combate às causas sociais da delinqüência e, se for o caso, de medidas conciliatórias extra-estatais, indenizações reparatórias e similares.
Se tais suposições são realistas, o futuro do direito penal só pode consistir em sua abolição. Mas, infelizmente, a inspiração social-romântica de tais idéias é acentuada demais para que elas possam ser seguidas. Uma sociedade livre do direito penal pressuporia, antes de mais nada, que através de um controle de natalidade, de mercados comuns e de uma utilização racional dos recursos de nosso mundo se pudesse criar uma sociedade que eliminasse as causas do crime, reduzindo, portanto, drasticamente aquilo que hoje chamamos de delinqüência.
Mesmo, este pressuposto baseia-se, segundo penso, em considerações errôneas. A Alemanha vem gozando, desde a época do pós-guerra (depois de 1950) até a reunificação, de um nível de bem-estar cada vez maior, com uma população sempre decrescente – mas a criminalidade aumentou de modo considerável. Não corresponde, portanto, à experiência que a criminalidade se deixe eliminar através de reformas sociais. É mais realista a hipótese de que a criminalidade, como espécie do que os sociólogos chamam de ‘comportamento desviante’, se encontre dentro do leque das formas típicas de ação humana, e que vá existir para sempre. As circunstâncias sociais determinam mais o ‘como’ do que o ‘se’ da criminalidade: quando camadas inteiras da sociedade passam fome, surge uma grande criminalidade de pobreza; quando a maioria vive em boas condições econômicas , desenvolve-se a criminalidade de bem-estar, relacionada ao desejo de sempre aumentar as posses e, através disso, destacar-se na sociedade. Isto não implica que não devamos esforçar-nos por um aumento do bem-estar geral. Mas não espere daí uma eficaz diminuição da criminalidade.
Independentemente disso, a situação do delinqüente não melhoraria se o controle do crime fosse transferido para uma instituição arbitral independente do Estado. Pois quem deveria compor e fiscalizar essas instâncias de controle? Quem garantiria a segurança jurídica e evitaria o arbítrio? E, principalmente: como se pode evitar que não sejam pessoas justas e que pensem socialmente, mas sim os poderosos a obter o controle, oprimindo e estigmatizando os fracos? A discriminação social pode ser pior que a estatal. Liberar o controle do crime de parâmetros garantidos estatalmente e exercidos através de órgão judiciário iria nublar as fronteiras do entre o lícito e o ilícito, levar à justiça pelas próprias mãos, com isso destruindo-se a paz social. Por fim, não se vislumbra como, sem um direito penal estatal, se poderá reagir de modo eficiente a delitos contra a coletividade[10]
Garantismo Penal
O chamado movimento garantista tem suas origens nos escritos do Marquês de Beccaria. Algumas das principais idéias do genebrino foram narradas ao longo deste trabalho, as quais prestam honra ao grande idealizador desta corrente ideológica que procurou, em linhas gerais, restringir o poder do Estado contra abusos do poder punitivo, bem como garantir aos indivíduos uma maior monta de direitos.
A partir das idéias liberais de Beccaria e de outros pensadores iluministas, como por exemplo, Carrara, é que surge a nova idéia de garantismo penal trazida a lume por Luigi Ferrajoli, em 1989, em sua obra Direito e Razão, trabalho este mundialmente conhecido e fonte de leitura obrigatória para a compreensão adequada dos movimentos de Política Criminal, em especial no que diz respeito ao garantismo penal, hoje tratado academicamente como de Direito Penal de Segunda Geração ou no magistério de Jesús-María Silva Sanches, Direito Penal de segunda velocidade.
Assim, em linhas gerais esta corrente defendida por Ferrajoli na mesma linha de orientação dos iluministas de outrora, também procura estabelecer um conjunto de conceitos, princípios e normas capazes de fundamentar a legitimação do poder punitivo do Estado sob uma perspectiva de se atribuir uma primazia absoluta ao indivíduo. Em termos gerais, pode-se dizer que enquanto os autores clássicos colocavam sua ênfase na limitação do poder repressor estatal, na lei, a partir do autor italiano em comento, estabeleceu-se uma estrutura muito mais complexa, em que faz-se necessário um fortalecimento do dito Estado de Direito, no qual, não somente a Lei limita o poder punitivo do Estado, mas o próprio legislador está limitado substancialmente pelo projeto político desenhado nos textos constitucionais modernos, em especial nos famosos capítulos dedicados aos Direitos e Garantias Fundamentais.
Logo, desponta como objeto de estudo do garantismo penal a proteção aos direitos subjetivos de cada indivíduo, proteção esta advinda das chamadas “garantias” ou instrumentos jurídicos que possibilitam a defesa dos direitos e prerrogativas do homem, uma vez que, adotamos a ficção jurídica de que o Estado surgiu a partir de uma reunião de vontades da qual cada indivíduo da sociedade, cedeu livre e espontaneamente uma parcela de sua autonomia, em favor deste novo ser, fruto deste acordo de vontade, a fim de que ele providenciasse para todos segurança, saúde, lazer etc. Desta feita, há a real necessidade de instrumentos capazes de coibir um possível ímpeto estatal no sentido de suprimir as garantias dos indivíduos, exercendo as proteções constitucionais (habeas corpus, nenhuma lesão ou ameaça a direito será excluída da apreciação do Poder Judiciário), penais (taxatividade, materialidade, estrita legalidade, princípio da ultima ratioin dúbio pro reo, ônus da prova, juiz natural etc) papel preponderante em evitar a violência do “Soberano” contra todos. etc) e processuais (presunção de inocência, contraditório,
Portanto, pode pontuar-se que o Garantismo Penal move-se basicamente pelas seguintes relações:
1. Não há pena sem crime;
2. Não há crime sem Lei;
3. Não há Lei Penal sem necessidade;
4. Não há necessidade sem ofensa a direitos e garantias;
5. Não há ofensa sem ação;
6. Não há ação delituosa sem culpabilidade;
7. Não há culpabilidade sem juízo;
8. Não há juízo sem acusação;
9. Não há acusação sem provas;
10. Não há prova sem defesa.
Finalmente, o magistério de Jesús-María Silva Sanches acerca do garantismo penal:
O conflito entre um Direito Penal amplo e flexível (convertido em um indesejável soft law) e um Direito Penal Mínimo e rígido – certamente impossível – deve achar assim uma solução no ‘ponto médio’ da configuração dualista. Com efeito, não parece que a sociedade atual esteja disposta a admitir um Direito Penal orientado ao paradigma do ‘Direito Penal Mínimo’. Mas isso não significa que a situação nos conduza a um modelo de Direito Penal Máximo. A função racionalizadora do Estado sobre a demanda social de punição pode dar lugar a um produto que seja, por um lado, funcional e, por outro lado, suficientemente garantista. Assim, trata-se de salvaguardar o modelo clássico de imputação e de princípios para o núcleo intangível dos delitos, aos quais se assinala uma pena de prisão[11]
Direito Penal do Inimigo
De todas as teorias de Política Criminal idealizadas até os dias atuais nenhuma recebeu maior quantidade de críticas quanto a que iremos enfatizar nos próximos parágrafos. Trata-se do chamado Direito Penal do Inimigo que encontra no alemão Günter Jakobs seu grande idealizador e sistematizador.
Antes, porém, de prosseguir no deslinde da referida teoria, cremos ser de suma importância citar o posicionamento de Jésus-María Silva Sanches, acerca do que vem a ser e o que podemos esperar do futuro, no que tange a este modelo de Política Criminal:
Uma primeira velocidade, representada pelo Direito Penal “da prisão”, na qual haver-se-iam de manter rigidamente os princípios político-criminais clássicos, as regras de imputação e os princípios processuais; e uma segunda velocidade, para os casos em que, por não tratar-se já de prisão, senão de penas de privação de direitos ou pecuniárias, aqueles princípios e regras poderiam experimentar uma flexibilização proporcional a menor intensidade da sansão. A pergunta que há que elaborar , enfim, é se é possível admitir uma ‘terceira velocidade’do Direito Penal, na qual o Direito Penal da pena de prisão concorra com uma ampla relativização de garantias político-criminais, regras de imputação e critérios processuais.
(...) E, como se pode também se extrair do que foi aludido anteriormente, meu ponto de vista é que, nesse caso, seu âmbito deve ser reconduzido ou à primeira , ou à segunda velocidade mencionadas. Mas, vejamos, significa isso que não deve sobrar espaço algum para um Direito Penal de terceira velocidade? Isso já é mais discutível, se levamos em conta a existência, para não dizer mais, de fenômenos como a delinqüência patrimonial profissional, a delinqüência sexual violenta e reiterada, ou fenômenos como a criminalidade organizada e o terrorismo, que ameaçam solapar os fundamentos últimos da sociedade constituída na forma de Estado. Sem negar que a ‘terceira velocidade’do Direito Penal descreve seu âmbito que se deveria aspirar a reduzir a mínima expressão, aqui se acolhera com reservas a opinião de que a existência de um espaço de Direito Penal de privação de liberdade com regras de imputação e processuais menos estritas que as do Direito Penal da primeira velocidade, com certeza, é, em alguns âmbitos excepcionais, e por tempo limitado, inevitável.
(...) Mas remanesce a questão conceitual se, então, o Direito Penal do Inimigo persiste sendo ‘Direito’ ou se é já, ao contrário, um ‘não-Direito’, uma pura reação defensiva de fato perante sujeitos ‘excluídos’. Tratando-se de reações ajustadas ao estritamente necessário para fazer frente a fenômenos excepcionalmente graves, que possam justificar-se em termos de proporcionalidade e que não ofereçam perigo de contaminação do Direito Penal da ‘normalidade’, seria certamente o caso de admitir que, mesmo considerando o Direito Penal da terceira velocidade um ‘mal’, este se configura como o ‘mal menor’. Mas é evidente que essa justificativa obriga uma revisão permanente e especialmente intensa da concorrência dos pressupostos de regulações dessa índole. Pois bem, em minha opinião isso não está se verificando, senão que os Estados, ao contrário, vêm gradativamente acolhendo comodamente a lógica, que Moccia criticara com agudeza, da perenne emergencia. À vista de tal tendência, não creio que seja temerário prognosticar que o círculo do Direito Penal dos ‘inimigos’ tenderá, ilegitimamente, a estabilizar-se e a crescer[12]
Após os comentários do professor Jesús-María Silva Sanches, colacionamos como análise primeva sobre o assunto em comento parte do prólogo da obra Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas, de autoria de Günter Jakobs em parceria com o não menos festejado pesquisador da Universidade Autônoma de Madrid, Espanha, professor Manuel Cancio Meliá, in verbis:
De acordo com uma cômoda ilusão, todos os seres humanos, enquanto pessoas, estão vinculados entre si por meio do direito. Esta suposição é cômoda porque exime da necessidade de iniciar a comprovar em que casos se trata, na realidade, de uma relação jurídica e em que outros de uma situação não jurídica; de certo modo, como jurista, nunca se corre o risco de topar com seus limites. É ilusória porque um vínculo jurídico, quando se pretende que concorra não só conceitualmente, senão na realidade, há de constituir a configuração social; não basta o mero postulado de que tal constituição deve ser. Quando um esquema normativo, por mais justificado que esteja, não dirige a conduta das pessoas, carece de realidade social. Dito com um exemplo: bem antes da chamada liberalização das distintas regulamentações do aborto, estas rígidas proibições já não eram um verdadeiro Direito (e isso, independentemente do que se pense sobre sua possível justificação).
Idêntica à situação a respeito do Direito em si mesmo é a das instituições que cria e, especialmente, da pessoa: se já não existe a expectativa séria, que tem efeitos permanentes de direção da conduta, de um comportamento pessoal – determinado por direitos e deveres -, a pessoa degenera até converter-se em um mero postulado, e em seu lugar aparece o indivíduo interpretado cognitivamente. Isso significa, para o caso da conduta cognitiva, o aparecimento do indivíduo perigoso, o inimigo. Novamente, dito com um exemplo: aquele que pratica algum delito de bagatela é impedido, sendo um indivíduo perigoso (aparte da imposição de uma pena), de cometer ulteriores fatos, concretamente, através da medida de segurança. Falando em termos kantianos, deve ser separado daqueles que não admitem ser incluídos sob uma constituição civil.
A respeito desse diagnóstico, submetido à discussão há anos, existem diversos posicionamentos (...), raras vezes afirmativos, na maioria das ocasiões críticos, chegando à concepção, surpreendente no âmbito da ciência, de que o diagnóstico dá medo e que sua formulação é indecorosa: certamente, o mundo pode dar medo, e de acordo com um velho costume, mata-se o mensageiro que traz uma má notícia, em face da mensagem indecorosa[13]
Logo, abordar este assunto, em especial, na América do Sul, tornou-se uma espécie de heresia das mais malévolas que alguém pode realizar, mesmo na seara acadêmica, em que se espera uma maior independência científica, percebe-se um desejo manifesto por parte da doutrina e seus pesquisadores de solapar toda e qualquer forma de discussão a respeito desta Teoria.
Assim, em sentido contrário à orientação dominante no meio acadêmico sulamericano, passamos a aclarar os pontos fundamentais desta corrente doutrinária, no anseio de quiçá, no futuro, poder presenciar discussões na Academia e em outras esferas de reuniões sociais ou políticas sobre os fundamentos e possibilidades de aplicação desta corrente teórica.
Cremos oportuno iniciarmos tal mister com o comentário do professor Damásio de Jesus acerca das “velocidades do Direito Penal”, para que possamos, desde já, delinearmos alguns pressupostos de equivalência entre as chamadas “velocidades do Direito Penal”:
Direito Penal de primeira velocidade: trata-se do modelo de Direito Penal liberal-clássico, que se utiliza preferencialmente da pena privativa de liberdade, mas se funda em garantias individuais inarredáveis (corresponde ao modelo vigente em nosso País desde o Código Criminal de 1830 até o Código Penal de 1940, antes da reforma de 1984).
Direito Penal de segunda velocidade: cuida-se do modelo que incorpora duas tendências (aparentemente antagônicas), a saber, a flexibilização proporcional de determinadas garantias penais e processuais aliada à adoção das medidas alternativas à prisão (penas restritivas de direito, pecuniárias etc). No Brasil, começou a ser introduzido com a Reforma Penal de 1984 e se consolidou com a edição da Lei dos Juizados Especiais (Lei n.º 9.099, de 1995).
Direito Penal de terceira velocidade: refere-se a uma mescla entre as características acima, vale dizer, utiliza-se da pena privativa de liberdade (como faz o Direito Penal de primeira velocidade), mas permite a flexibilização de garantias materiais e processuais ( o que ocorre no âmbito do Direito Penal de segunda velocidade). Essa tendência pode ser vista em algumas recentes leis brasileiras, como a Lei dos Crimes Hediondos, Lei n.º 8.072, de 1990, que, por exemplo, aumentou consideravelmente a pena de vários delitos, estabeleceu o cumprimento da pena em regime integralmente fechado e suprimiu, ou tentou suprimir, algumas prerrogativas processuais (exemplo: a liberdade provisória), e a Lei do Crime Organizado (Lei n.º 9.034, de 1995), entre outras.[14]
O Direito Penal do Inimigo idealizado por Jakobs foi apresentado pela primeira vez à sociedade acadêmica em 1985, trazendo desde logo a contraposição que o tornou objeto das primeiras críticas, a saber, a possibilidade e viabilidade da existência de um Direito Penal do Cidadão em oposição ao chamado Direito Penal do Inimigo. Neste sentido, o magistério do referido autor:
Quando no presente texto se faz referência ao Direito Penal do Cidadão e ao Direito Penal do Inimigo, isso no sentido de dois tipos ideais que dificilmente aparecerão transladados à realidade de modo puro: inclusive no processamento de um fato delitivo cotidiano que provoca um pouco mais de tédio – Direito Penal do Cidadão – se misturará ao menos uma leve defesa frente a riscos futuros – Direito Penal do Inimigo -, e inclusive o terrorista mais afastado da esfera cidadã é tratado, ao menos formalmente, como pessoa, ao lhe ser concedido no processo penal os direitos de um acusado cidadão. Por conseguinte, não se trata de contrapor duas esferas isoladas do Direito Penal, mas descrever dois pólos de um só mundo ou de mostrar duas tendências opostas em um só contexto jurídico-penal. Tal descrição revela que é perfeitamente possível que estas tendências se sobreponham, isto é, que se ocultem aquelas que tratam o autor como pessoa e aquelas que tratam o autor como pessoa e aquelas outras que o tratam o autor como fonte de perigo ou como meio para intimidar aos demais. Que isto fique dito como primeira consideração[15]
Sobre o tema o comentário do professor Luis Gracia Martín, da Universidad de Zaragoza:
El Derecho penal del ciudadano define y sanciona delitos, o infraciones de normas, que llevan a cabo los ciudadanos de un modo incidental y que normalmente son la simple expresión de un abuso por los mismos de las relaciones sociales que participan desde su status de ciudadanos, es decir, en su condición de sujetos vinculados a y por el Derecho. El delito de un ciudadano, ‘no aparece como principio del fin de la comunidad ordenada, sino sólo como irritación de ésta, como desliz reparable, y por ello, concluye Jakobs, ‘el Estado moderno ve en el autor de un hecho – de nuevo, uso esta palavra poco exacta – normal, no a un enemigo al que ha de destruirse, sino a ciudadano, una persona que mediante su conducta ha dañado la vigencia de la norma y que por ello es llamado – de modo coactivo, pero en cuanto ciudadano ( y no como enemigo – a equilibrar el daño en la vigencia de la norma). Esto es asi cuando el autor, apesar de su hecho, ofrece garantias de que se conducirá a grandes rasgos como ciudadano, es decir, ‘como persona que actúa en fidelidad al ordenamiento juridico. Por ello, en principio, ‘un ordenamiento juridico debe mantener dentro del Derecho también al criminal’, pues éste, por un lado, ‘tiene derecho a volver arreglarse con la sociedad, y para ello debe mantener su status como persona, como ciudadano’, y por otro lado, ‘tiene el deber de proceder a la reparación, y tambiém los deberes tienen como presupuesto la existencia de personalidad.
Diferente de los ciudadanos son los enemigos que han cometido un hecho delictivo. Estos son individuos que en su actitud, en su vida economica o mediante su incorporación a una organización, se han apartado del Derecho presumiblemente de un modo duradeiro y no sólo de manera incidental, y por ello, no garantizan la mínima seguridad cognitiva de un comportamiento personal y demuenstran este déficit por medio de su comportamiento .Las actividades y la ocupación profesional de tales individuos no tienen lugar en el ámbito de relaciones sociales reconocidas como legítimas, sino que aquéllas son más bien la expressión y el exponente de la vinculación de tales individuos a una organización estructurada que opera al margen del Derecho y que está dedicada a actividades inequivocamente ‘delictivas’. Este es el caso, por ejemplo, de los individuuos que pertenecen a organizaciones terroristas, de narcotráfico, de tráfico de personas, etc. y, en general, de quienes llevan a cabo actividades típicas de la llamada criminalidad organizada[16]
Assim, na primeira “aparição” do Direito Penal do Inimigo, Jakobs buscou apresentá-lo de uma forma muito mais ampla, procurando justificar sua necessidade, por exemplo, nos crimes cometidos dentro da ordem econômica. No entanto, a partir de 1999, surge uma nova fase desta corrente doutrinária, desta feita, muito mais abrangente e que agora busca alcançar os “crimes graves” cometidos contra bens individuais, juridicamente tutelados, com especial relevo na busca pela tipificação e enquadramento dos crimes de terrorismo e os de lesa-humanidade.
Quanto aos fundamentos filosóficos da referida Política Criminal colacionamos as palavras do autor:
Denomina-se ‘Direito’ o vínculo entre pessoas que são titulares de direitos e deveres, ao passo que a relação com um inimigo não se determina pelo Direito, mas pela coação. No entanto, todo Direito se encontra vinculado à autorização para empregar coação, e a coação mais intensa é a do Direito Penal. Em conseqüência, poder-se-ia argumentar que qualquer pena, ou, inclusive, qualquer legítima defesa se dirige contra um inimigo. Tal argumentação em absoluto é nova, mas conta com destacados precursores filosóficos.
São especialmente aqueles autores que fundamentam o Estado de modo estrito, mediante um contrato, entendem o delito no sentido de que o delinqüente infringe o contrato, de maneira que já não participa dos benefícios deste: a partir desse momento, já não vive com os demais dentro de uma relação jurídica. Em correspondência com isso, afirma Rousseau que qualquer ‘malfeitor’ que ataque o ‘direito social’ deixa de ser ‘membro’ do Estado, posto que se encontra em guerra com este, como demonstra a pena pronunciada contra o malfeitor. A conseqüência diz assim: ‘ao culpado se lhe faz morrer mais como inimigo que como cidadão’. De modo similar argumenta Fichte: ‘quem abandona o contrato cidadão em um ponto em que no contrato se contava com sua prudência, seja de modo voluntário ou por imprevisão, em sentido estrito perde todos os seus direitos como cidadão e como ser humano, e passa a um estado de ausência completa de direitos’. [17]
É evidente que aos nomes citados acima (Rousseau e Fichte) acrescentam-se outros de renome inquestionáveis, quer pelo alcance das idéias elaboradas, quer pela atualidade de seus pronunciamentos, a saber: Hobbes, Hegel e, é claro, aquele que parece deixar uma influência mais marcante na Teoria ora objeto de nosso estudo, o jusfilósofo Emmanuel Kant.
Na seara filosófica em que se estabelecem os pressupostos básicos de toda e qualquer teoria, Jakobs esbarra em um novo problema: diferenciar, se é que é possível, o cidadão/pessoa do inimigo. Enfrentando tal questionamento argumenta o autor:
Ser pessoa significa ter de representar um papel. Pessoa é a máscara, vale dizer, precisamente não é a expressão da subjetividade de seu portador, ao contrário é a representação de uma competência socialmente compreensível. Toda sociedade começa com a criação de um mundo objetivo, inclusive uma realização amorosa, se é sociedade. Os participantes dessa sociedade, vale dizer, os indivíduos representados comunicativamente como relevantes, definem-se pelo fato de que para eles é válido o mundo objetivo, vale dizer ao menos uma norma[18]
Assim, ao buscar definir o conceito de pessoa, o catedrático de Bonn nos remete a um instigante questionamento: Qual o significado dos atos de uma pessoa? Para tal questionamento apresenta a seguinte resposta:
Existe sociedade quando e na medida em que existem normas reais, é dizer, quando e na medida em que o discurso da comunicação se determina em atenção às normas. Essa comunicação não tem lugar entre indivíduos que se regem conforme a um esquema de satisfação/insatisfação, e que nesse contexto possivelmente também obedeçam à ordem de um senhor, mas é a conduta de pessoas que se definem pelo fato de que seguem normas; pessoa é, portanto, a quem se descreve a função de um cidadão respeitoso do Direito. A pessoa não atua conforme ao esquema invidual de satisfação e insatisfação, mas conforme a um esquema de dever e espaço de liberdade.
A infração de uma norma cria uma situação ambígua: formalmente, trata-se de sociedade, porém os limites desta são traçados de novo; ali onde conforme ao esquema social trata-se de dever, o sujeito que exige um espaço de liberdade. Dizendo de outro modo: o comportamento se interpreta como conduta com sentido, porém o conteúdo desse sentido está em discussão: sentido formal. O comportamento contrário à norma, portanto, perturba a orientação, posto que põe em dúvida o caráter real da sociedade: trata-se de um dever ou de um espaço de liberdade?[19]
Esta corrente teórica ganhou bastante destaque atualmente, em virtude do chamado movimento de “Tolerância Zero”, levado a termo na Cidade de Nova Yorque, nos Estados Unidos da América, pelo então Chefe do Executivo Municipal Sr. Rudolph Giuliani.
É necessário destacar que esta Política Criminal (Tolerância Zero) foi orientada pelos estudos de dois criminólogos da Universidade de Harvard, James Wilson e George Kelling, que publicaram a teoria das "janelas quebradas", em março de 1982. A teoria baseia-se num experimento realizado por Philip Zimbardo, psicólogo da Universidade de Stanford, com um automóvel deixado em um bairro de classe alta de Palo Alto (Califórnia). Durante a primeira semana de teste, o carro não foi danificado. Porém, após o pesquisador quebrar uma das janelas, o carro foi completamente destroçado e roubado por grupos de vândalos, em poucas horas.
De acordo com os pesquisadores, caso se quebre uma janela de um edifício e não haja imediato reparo, logo toda a obra será depredada. Algo semelhante ocorria com a delinqüência, isto é, se o Estado se mostra ineficiente no reprimir do crime, logo, este dominaria todo o Estado.
A mencionada teoria começou a ser aplicada em Boston, onde Kelling, assessor da polícia local, recebeu a incumbência de reduzir o índice de criminalidade no metrô, um problema que afastava muitos passageiros, gerando um prejuízo de milhões de dólares para as empresas do setor de transporte e via reflexa ocasionava um caos no transporte municipal. Contudo, o programa não chegou a ser concluído por causa de uma redução orçamentária.
Em 1990, George Kelling e James Wilson foram destinados a Nova Iorque e começaram a trabalhar novamente. O metrô foi o primeiro laboratório para provar que, se "arrumassem as janelas quebradas", a delinqüencia seria reduzida. A polícia começou a combater os delitos menores. Aqueles que entravam sem pagar, outros que urinavam ou ingeriam bebidas alcoólicas em público, mendigavam de forma agressiva ou que pichavam as paredes e trens, eram detidos, fichados e interrogados. As pichações eram apagadas na hora, e os "artistas" não podiam admirá-las por muito tempo.
Após vários meses de campanha, a delinqüência no metrô foi reduzida em 75% e continuou caindo de ano para ano. Após o sucesso no metrô e nos parques, foram aplicados os mesmos princípios em outros lugares e em outras cidades.
CONCLUSÃO
Assim sendo, percebemos que é de primordial importância para o futuro da Ciência Penal Brasileira uma urgente definição de uma Política Criminal Pátria, uma vez que esta representa e define os objetivos e intenções do Estado no que tange à implementação de medidas tendentes a coibir ou reprimir condutas penalmente tipificadas: algo que não possuímos claramente definido hoje no Brasil, restando-nos, tão somente, buscar implementar Leis Penais a cada novo crime e de acordo com a pressão popular ou midiática.
Outrossim, defendemos a necessidade de uma ampla discussão na Academia acerca de todas as teorias de Política Criminal hoje existentes, e das que por ventura venham a desenvolver-se, a fim de que se possa fomentar debates científicos relacionados ao tema, e não mais ficarmos criando tabus quase que sobrenaturais a respeito do assunto, como os existentes atualmente.
De outra sorte, percebemos na sociedade brasileira um desalento cada vez maior para com as Instituições e um desprestígio crescente com a Lei, em especial para com a Lei Penal. Este processo, de acordo com nossa forma de perceber a realidade, está chegando ao limite máximo de suportabilidade da sociedade, isto é, a coletividade não mais confia que o Estado fará justiça ou punirá o réu, portanto, parte ela mesmo para a ação. Prova disso podemos visualizar no crescente número de tentativas de linchamentos de marginais pela população, restando por evidente a preocupação de que não retornemos a fase da vingança privada.
Pontuamos que todas as correntes aqui expostas possuem seus prós e contras, umas mais outras menos, no entanto, nenhuma delas pode ser aplicada exclusivamente aqui no Brasil, bem como em nenhum outro lugar do mundo, pois que vivemos realidades antagônicas.
Logo, uma vez mais, defendemos o debate acerca do tema para que possamos, no futuro ter uma linha mestra de orientação a seguir e não mais ficarmos à mercê de teorias desenvolvidas em outros países, continentes e até mesmo dentro de um escritório ou biblioteca absolutamente dissociada da realidade social.
Por derradeiro, aclaramos que já vivemos épocas em que se temia o Estado, pois ele era o Grande Leviatã, todo poderoso. Hoje, porém, este Estado de outrora, tornou-se uma “criancinha” que sequer é capaz de oferecer o mínimo de proteção aos seus nacionais. Deste modo, cremos na necessidade de um Estado adulto que possa oferecer aos seus cidadãos uma condição mínima de segurança, sob pena de cada um declarar guerra uns aos outros.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
AZEVEDO, Mônica Louise de. Penas Alternativas à prisão: Os substitutivos penais no Sistema Penal Brasileiro. Curitiba: Juruá, 2005.
BACIGALUPO, Enrique. Manual de Derecho Penal: Parte General. Santa Fé de Bogotá: Temis, 1994.
BARROS, Flávio Augusto Monteiro de Barros. Direito Penal: Parte Geral. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004.
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1990.
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Tradução Torrieri Guimarães. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral, volume I (arts. 1º a 120). 7. ed. ver. e atual. de acordo com as Leis n.º 10741/2003, 10763/2003 e 10826/2003. São Paulo: Editora Saraiva, 2004.
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. Tradução Eliana Granja. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995.
CODESIDO, Edurado A. El concepto de pena y sus implicâncias jurídicas en Santo Tomás de Aquino. Buenos Aires: Universitas, 2005.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 24. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2003.
DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. Volume 3. São Paulo: Saraiva, 1998.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Vários tradutores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
FRAGOSO, Heleno Claúdio. Lições de Direito Penal: parte geral. 16. ed. ver. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
GOMES, Luis Flávio. Prisão dos poderosos e direito penal do inimigo. São Paulo: Instituto de Ensino Luis Flávio Gomes, julho. 2005. Disponível em: <www.lfg.com.br>
GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. O Direito Penal na era da Globalização. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
GOULART, Henny. Penologia I. São Paulo: Editora Brasileira de Direito LTDA, 1972.
GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio: Uma visão minimalista do Direito Penal. 2. ed. rev. atual. Niterói, RJ: Impetus, 2006.
HIRECHE, Gamil Föppel el. A função da pena na visão de Claus Roxin. Ri de Janeiro: Forense, 2004.
JAKOBS, Günter. Ciência do Direito e Ciência do Direito Penal. Traduzido por Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003.
JAKOBS, Günter; MELIA, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. Tradução André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
JAKOBS, Günter. Sociedade, Norma e Pessoa. Traduzido por Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003.
JAKOBS, Günter. Teoria da Pena e Suicídio e Homicídio a pedido. Traduzido por Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003.
JESUS, Damásio E. Curso de. Direito Penal. 1º volume – Parte Geral. 26. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2003.
JESUS, Damásio de. Direito Penal do Inimigo: breves considerações. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, jul. 2006. Disponível em: <www.damasio.com.br>.
JÚNIOR, Alceu Correa; SHECARIA, Sérgio Salomão. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de direito criminal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Finalidades da Pena. Barueri: Manole, 2004.
LESCH, Heiko H. La función de la pena. Bogotá: Universidad Externando de Colombia, 1999.
MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 20. ed. ver. atual. pelo Prof. Miguel Afredo Maluf Neto. São Paulo: Editora Saraiva, 1990.
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Volume III. Campinas: Millenium, 2002.
MARTIN, Luis Gracia. Consideraciones críticas sobre el actualmente denominado Derecho Penal del Enemigo. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, Publicación 11 enero 2005. Disponível em <www.criminet.ugr.es/recpc>
MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. 20. ed. São Paulo, 2003.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 4..ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: Parte Geral: Parte Especial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002.
ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Traduzido por Luis Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
SANTOS, Gérson Pereira dos. Do passado ao futuro em Direito Penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999.
SHECAIRA, Sérgio Salomão; JUNIOR, Alceu Corrêa. Teoria da Pena: Finalidades, Direito Positivo, Jurisprudência e outros estudos de Ciência Criminal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
SICA, Leonardo. Direito Penal de Emergência e Alternativas à Prisão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
SILVA SÁNCHES, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradutor Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
SIRVINSKAS, Luís Paulo. Introdução ao Estudo do Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2003.
ZAFFARONI, Raul Eugênio; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: 4. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
[1] DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. Volume 3. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 628.
[2] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1996. p. 34.
[3] ZAFFARONI, op. cit., p. 132.
[4] HIRECHE, op. cit. p. 116 ss.
[5] BIANCHINI, Alice. A concepção minimalista do Direito Penal. Disponível em http://www.direitocriminal.com.br > Acesso em: 03 mar.2007.
[6] CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização. Tradução Eliana Granja. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1995. p. 75.
[7] QUEIROZ apud GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio: Uma visão minimalista do Direito
Penal. 2. ed. rev. atual. Niterói, RJ: Impetus, 2006. p. 35
[8] GRECO, op. cit., p. 12.
[9] CASTRO apud CERVINI, op. cit., p. 162.
[10] ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 3.
[11] SILVA SÁNCHES, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: Aspectos da política criminal nas
sociedades pós-industriais. Tradutor Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: EditoraRevista dos
Tribunais, 2002. p. 145.
[12] SILVA SÁNCHES,. op. cit., p. 148-149.
[13] JAKOBS, Günter; MELIA, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. Tradução André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 9.
[14] JESUS, Damásio de. Direito Penal do Inimigo: breves considerações. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, jul. 2006. Disponível em: <www.damasio.com.br>.
[15] JAKOBS, op. cit., p.21.
[16] MARTIN, Luis Gracia. Consideraciones críticas sobre el actualmente denominado Derecho Penal del Enemigo. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, Publicación 11 enero 2005. Disponível em <www.criminet.ugr.es/recpc>
[17] Idem, p. 26.
[18] JAKOBS, Günter. Sociedade, Norma e Pessoa: Teoria de um direito penal funcional. Tradução Maurício Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003. p. 30.
[19] JAKOBS, Günter. Teoria da pena e suicídio e homicídio a pedido. Tradução Maurício Antonio Ribeiro. Lopes. Barueri: Manole, 2003. p. 11
Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Assessor Jurídico MP/RR<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Alcenir Gomes De. Os modernos movimentos de Política Criminal e sua relação com as Teorias da Pena Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jan 2010, 12:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/19116/os-modernos-movimentos-de-politica-criminal-e-sua-relacao-com-as-teorias-da-pena. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: LEONARDO DE SOUZA MARTINS
Por: Willian Douglas de Faria
Por: BRUNA RAPOSO JORGE
Por: IGOR DANIEL BORDINI MARTINENA
Por: PAULO BARBOSA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO
Precisa estar logado para fazer comentários.