RESUMO: Este artigo pretende analisar o objeto da ação popular, no Brasil, considerando o fato de ser essa “ação” um autêntico instrumento processual de proteção aos direitos transindividuais. Isso implica na necessidade de estudá-la como elemento integrante de um microssistema processual de tutela coletivo, definitivamente consolidado, na ordem jurídica brasileira, por meio da edição do Código de Defesa do Consumidor em 1990. De fato, a existência de um conjunto de regras e princípios específicos à tutela jurisdicional de direitos transindividuais, bem como o status de direito fundamental atribuído aos interesses coletivos em sentido lato pela Constituição de 1988, impõem uma nova análise das normas que regem a ação popular, sobretudo no que toca ao elenco de interesses que através dela podem ser tutelados. O acesso à justiça para a proteção de tais interesses resta fortalecido com a ampliação daquele elenco, uma vez que possibilita ao cidadão, através do exercício de um direito político, defender de forma plena direitos que pertencem à coletividade.
Palavras-chaves: ação popular; direitos transindividuais; acesso à justiça.
A ação popular é um antigo instrumento jurídico destinado à proteção de bens pertencentes à coletividade. Esse estudo representa o interesse pelo aprimoramento das formas de participação do indivíduo na promoção de direitos pertencentes a uma coletividade da qual ele mesmo faz parte.
No Brasil, a pouca importância dada atualmente à ação popular é refletida no tratamento da matéria nos cursos de graduação em direito e, principalmente, na escassa produção doutrinária a ela referente. Ora, tudo isso também pode ser dito sobre tratamento dispensado aos direitos transindividuais e os mecanismos jurisdicionais voltados para a sua tutela. No entanto, parece que, entre todos os procedimentos existentes na atual ordem jurídica brasileira para o processamento de demandas que envolvam pretensões metaindividuais, o da ação popular é o que mais tem perdido espaço desde o reconhecimento de legitimidade de alguns entes para promover em juízo a defesa de interesses e direitos coletivos em sentido amplo.
Isso pode ser facilmente verificado através de uma leitura superficial dos poucos manuais existentes sobre o processo coletivo brasileiro, os quais provavelmente indicarão o processo decadência desse fundamental instrumento, tendo em vista as desvantagens do autor popular perante o poderio econômico e político do sujeito passivo da relação processual, o temor pela sua utilização meramente política, assim como a edição da ação civil pública, em 1985, ampliando o leque de legitimados para a autuação em juízo para de defesa de direitos transindividuais e dos interesses que por meio dela poderiam ser tutelados. Tal pesquisa provavelmente demonstrará que se contam nos dedos as ações populares propostas nas grandes comarcas brasileiras.
Todavia, a ordem constitucional brasileira, inaugurada pela Carta de 1988, consagrou como fundamentais os direitos e interesses transindividuais, garantindo-lhes proteção através da atuação do Poder Judiciário. A própria Constituição de 1988 trouxe a previsão de alguns mecanismos processuais para a tutela jurisdicional desses direitos, sendo a ação popular um deles.
Infraconstitucionalmente, o Código de Defesa do Consumidor consolidou a existência de um microssistema formado por diplomas relacionados à tutela de interesses transindividuais, rompendo com o individualismo imanente ao Código de Processo Civil.
A ação popular passa então a reclamar uma análise das possibilidades de sua aplicação em função dos influxos dos princípios e regras que informam esse microssistema. Enfim, a ação popular passa a ser abordada como um elemento desse microssistema, atuante no contexto de uma sociedade de massa, onde se verificam conflitos de massa.
O presente artigo buscou realizar uma breve incursão sobre a questão do acesso à justiça para a tutela de interesses e direitos transindividuais e buscará caracterizar o microssistema processual coletivo existente na atual ordem jurídica brasileira, dando-se especial atenção aos princípios a ele imanentes.
Além disso, será realizada uma breve análise do conceito e da classificação jurídico-processual da legitimação ativa da ação popular.
A idéia, como já mencionado, é de situar a ação popular como elemento daquele microssistema e identificar os limites de seu objeto.
2 O ACESSO À JUSTIÇA E OS DIREITOS OU INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
A proposta de analisar o espectro de incidência da ação popular, tal como descrita pela ordem constitucional brasileira, não prescinde da realização de alguns comentários acerca do acesso à justiça, sobretudo em se tratando das condições de viabilização de acesso à justiça para a realização de direitos ou interesses transindividuais.
Há que se ter em vista que não é só importante dispor de uma ordem jurídica que prevê uma série de direitos, mas também se revela de grande importância a previsão de mecanismos que os assegure.
Sendo assim, o conceito de acesso à justiça atravessa um momento de reformulação, que pode ser sentida no ensinamento e no estudo do processo civil. Os estados liberais burgueses, dos séculos XVIII e XIX, dispunham de mecanismos de solução de conflitos concebidos sob um forte vínculo com a filosofia individualista dos direitos. Por conseguinte, o direito ao acesso à justiça era garantido somente sob uma perspectiva formal, consubstanciada no direito do indivíduo propor e contestar determinada ação. Sendo somente um direito natural, ao Estado cabia apenas garantir que esse direito não fosse atingido por outro indivíduo. Fatores como as diferenças entre os litigantes em potencial quanto ao acesso prático ao sistema, assim como a disponibilidade de recursos para fazer frente aos gastos reclamados para o enfrentamento de um litígio não eram tratados com um problema, posto que os estudiosos do direito e o sistema judiciário encontravam-se bem distantes dos problemas concretos da população (CAPELLETTI e GARTH, 1988, p. 9-10).
Todavia, a sociedade aumentou de tamanho e de complexidade, e, por conseguinte, as relações entre os seus membros adquiriram um caráter cada vez mais coletivo que individual. Assim, as sociedades modernas passam a reconhecer reconhecidos certos direitos (por exemplo, o direito à saúde, direito à educação, direito ao trabalho), que dependem de uma autuação positiva do Estado para que sua efetividade seja garantida, ou seja, consagram uma série de direitos e deveres dos governos, das comunidades, das associações e dos indivíduos. Nesse movimento de reconhecimento de novos direitos e com a necessidade de se garantir a sua efetividade, avulta a importância a efetividade do direito ao acesso à justiça, como instrumento apto para reivindicação desses novos direitos:
[…] De fato, o direito de acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para a sua efetiva reivindicação. O acesso á justiça pode, portanto, ser encarado como requisito fundamental - o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos (CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p.11-12)
Para que as partes no processo tenham acesso á justiça é fundamental que seja garantido a cada uma delas o devido processo legal, bem como um julgamento imparcial, no qual a tutela jurisdicional seja prestada adequadamente. Em verdade, o direito ao acesso à justiça estaria relacionado ao princípio da igualdade, na medida em que busca garantir um processo justo, possibilitando que todos possam defender suas pretensões, malgrado as desigualdades fáticas que possam existir. (LANDIM, 2008, p. 18).
De acordo com Cintra, Grinover e Dinamarco (2006), a expressão acesso à justiça não se identifica simplesmente com a possibilidade de provocar a atuação estatal no exercício de sua função jurisdicional. Quando uma pretensão é levada ao Estado-Juiz, ela reclama que se faça justiça a ambos os participantes da relação processual, o que está a demonstrar que o significado dessa expressão, na atualidade, relaciona-se com a possibilidade de viabilizar o acesso daqueles participantes a uma ordem jurídica efetivamente justa.
Kazuo Watanabe, citado por Gregório Assagra de Almeida, identifica as condições elementares de acesso a uma ordem jurídica justa:
São suas condições elementares: a) direito à informação e perfeito conhecimento do direito substancial e à organização permanente a cargo de especialistas e orientada à aferição constante da adequação entre a ordem jurídica e a realidade sócio-econômica do país; b) direito de acesso à justiça organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; c) direito à preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos; e d) direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à justiça. (WATANABE, 1988 apud ALMEIDA, 2003, p. 61)
Saliente-se que não basta apenas o reconhecimento do direito ao acesso a uma ordem jurídica justa. É necessária, também, a identificação de certos obstáculos que dificultam a plena acessibilidade. Alguns deles foram identificados por Capelletti e Grath (1988). Assim, configuram como óbices ao efetivo acesso a uma ordem jurídica justa: as custas processuais, as desigualdades de fato entre as partes, assim como alguns problemas atinentes à representatividade dos direitos difusos.
No que tange aos direitos difusos, os obstáculos opostos estariam relacionados à questão da representatividade desses interesses, já que não possuem titulares determinados, mormente no que diz respeito aos direitos difusos, cuja titularidade está ligada a um conjunto de pessoas indeterminadas. Havia a urgência de se criar uma frente unitária capaz de defender os interesses dessa natureza contra as investidas de poderosos interesses econômicos e políticos.
Diante dessa situação, foi necessário que se repensasse o direito processual, a fim de que se tornasse possível a tutela jurisdicional dos direitos massificados, inseridos na categoria dos denominados direitos fundamentais de terceira geração.
Tornou-se necessária uma verdadeira revolução do direito processual, de forma a revisitar radicalmente institutos como a legitimidade ad causam, a citação, o litisconsórcio, a coisa julgada, liquidação de sentença, dentre outros, adequando-os às novas formas de tutela jurisdicionais voltadas para os conflitos massificados. Portanto, pelas transformações imperadas, não há mais como negar a existência de um direito processual coletivo como novo ramo do direito processual. (ALMEIDA, 2003, p. 79-81)
De tudo o que foi dito pode-se perceber que o acesso à justiça também corresponde a um movimento por mudanças do pensamento jurídico. Tais mudanças apontam para o progressivo rompimento com o paradigma individualista que serve de alicerce para as construções legislativas e doutrinárias acerca da tutela jurisdicional de direitos.
Sendo assim, o acesso à justiça corresponde ao atual ponto central da mudança no pensamento jurídico. Não se trata mais do acesso à justiça considerado somente sob o seu aspecto formal – conforme visto, no sentido de apenas garantir ao indivíduo a possibilidade de propor e contestar uma demanda –, mas de compreender o acesso à justiça estando sensível aos problemas sociais, afastando-se do enfoque dogmático-formalista. Trata-se de enxergar o direito não mais com um sistema fechado, autônomo, auto-suficiente, mas como parte integrante de um complexo ordenamento social. (ALMEIDA, 2003).
Esse novo pensar também se reflete no processo, uma vez que este passa a ser considerado como instrumento de transformação da realidade social:
[…] O direito processual deve ser concebido como um instrumento de transformação da realidade social. É necessário hoje, portanto, o seu enfoque dentro do contexto social; só assim será possível alcançar a sua legitimidade instrumental com observância dos valores principiológicos do Estado Democrático de Direito.
Portanto, falar em acesso à justiça como um método de pensamento pressupõe o rompimento com a neutralidade positivista, que impede a justiça de ser justiça, o direito de ser direito, a democracia de ser democracia. Impõe, assim, a concepção dinâmica, portanto aberta, do Direito, concepção essa que, transmudada para o direito processual, o torna um instrumento de realização de justiça por intermédio dos escopos jurisdicionais. (ALMEIDA, 2003, p, 68)
Destarte, se essa concepção dinâmica aplica-se ao Direito, é óbvio que o novo enfoque referente ao acesso à justiça também se aplica a ação popular, principalmente se for levada em conta a preocupação com a acessibilidade ao sistema jurídico para a proteção de interesses transindividuais. Assim como o Direito, também a ação popular precisa ser encarada como componente de um amplo ordenamento social, o qual mantém constante interação com outros tantos componentes.
Isso quer dizer que ação popular deve ser um instrumento que realmente esteja preparado para submeter ao Poder Judiciário uma variedade cada vez complexa de lesões a interesses transindividuais.
Assim, reconhecendo o Direito como elemento transformador da realidade social, afastando-se do enfoque dogmático-formalista, é preciso destacar que a representatividade dos direitos e interesses transindividuais não é o único obstáculo ao acesso à justiça para a sua proteção. É no mínimo ingênuo acreditar que questões ideológicas não constituem efetivos óbices ao reconhecimento e proteção desses interesses.
Um exemplo do que está se afirmando pode ser identificado na técnica de conceituação e na determinação de procedimentos específicos para a tutela jurisdicional de diversas categorias de interesses coletivos.
A tentativa de tipificar diversas categorias de interesses transindividuais também representa um relevante obstáculo ao acesso à justiça para a sua proteção. Segundo Venturi (2007), apesar do esforço empregado pela doutrina ao longo de décadas para a escolha de critérios científicos para a conceituação técnica dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, contribui, para a inefetividade do sistema de tutela coletiva, a incompreensão das categorias jurídicas idealizadas pelo legislador brasileiro no Código de Defesa do Consumidor. Na visão do autor em comento, a opção do legislador em criar categorias e procedimentos próprios dos direitos metaindividuais incorre numa grave contradição, pois ao mesmo tempo em que se estabelecem tipos e pressupostos de admissibilidade de tutela jurisdicional, é fácil a constatação de que o microssistema legal de tutela coletiva admite que se reúnam, numa mesma “ação”, pretensões de tutela de qualquer direito coletivo, independente da qualificação que a lei lhe atribua.
Ou seja, o que se pretende demonstrar é que, independente da qualificação do direito como difuso, coletivo ou individual homogêneo, a tutela jurisdicional de um acaba inevitavelmente importando na tutela do outro, em função do tratamento legalmente emprestado à coisa julgada em sede qualquer ação coletiva no Brasil, sendo extensíveis erga omnes os efeitos dos provimentos judiciais de procedência para o fim de beneficiar toda a comunidade (direitos difusos, todos os integrantes do grupo, classe ou categoria (direitos coletivos) ou vítimas e sucessores (direitos individuais homogêneos). (2007, p. 87-88)
Outra importante questão levantada, tendo grande relação com o acesso à justiça e os direitos transindividuais, é discutida por Gregório Assagra de Alemeida (2003, p. 94-95), e diz respeito à propagação da ideologia neoliberal e o processo de aniquilação de direitos – sobretudo os direitos sociais – que são o produto de conquistas alcançadas através de séculos de lutas. De acordo com aquele autor, os direitos coletivos relacionados principalmente com a saúde, educação e segurança pública são deixados em segundo plano, principalmente nos países de terceiro mundo. Ademais, a competitividade inerente ao mundo globalizado faz com que as sociedades empresárias (inclusive as chamadas empresas públicas, a exemplo da Petrobras) busquem o lucro em detrimento da questão da preservação do meio ambiente.
Novos obstáculos ao acesso a uma ordem jurídica justa são criados como reflexo da necessidade de países em desenvolvimento de seguir os dogmas da ideologia neoliberal. A limitação da abrangência territorial da coisa julgada na ação civil pública, através da Lei n° 9.494/1997, simboliza a existência dessa tendência no direito brasileiro. (ALMEIDA, 2003, p. 97).
O enfrentamento desses obstáculos, segundo Assagra de Almeida, passa pelo reconhecimento do direito processual coletivo como novo ramo do Direito:
Para enfrentar esses aniquilamentos aos interesses ou direitos coletivos e para fazer com que sejam respeitadas as garantias sociais fundamentais, constitucionalmente asseguradas, é imprescindível: de um lado, a consciência do Judiciário e dos legitimados ativos á tutela jurisdicional coletiva; de outro, a criação e o aperfeiçoamento de instrumental adequado e eficiente para dar respostas imediatas e urgentes à comunidade – para tanto, é fundamental o desenvolvimento da idéia do direito processual coletivo como um novo ramo do direito processual defendida nesse trabalho. (2003, p. 96)
Deve-se se chamar atenção, outrossim, para outro aspecto. O Neoconstitucionalismo (constitucionalismo pós-moderno ou pós-positivo) como um movimento doutrinário, desenvolvido a partir do início do século XXI, que atribui uma nova perspectiva ao constitucionalismo. Essa nova realidade procura atrelar o constitucionalismo não mais a idéia de limitação ao poder político, “mas, acima de tudo, buscar a eficácia da Constituição, deixando o texto de ter um caráter meramente retórico e passando a ser mais efetivo”, mormente no que diz respeito a concretização dos direitos fundamentais. (LENZA, 2009, p. 09)
Tem-se a ação popular como um remédio constitucional destinado à proteção de interesses e direitos coletivos fundamentais. Com efeito, não se pode perder de vista, no que toca à ação popular e todos os demais instrumentos processuais de tutela coletiva, essa forte aspiração por uma maior efetividade das normas constitucionais, o que logicamente passa pelo reconhecimento da fundamentalidade do princípio do acesso à justiça.
A propósito, pode-se trazer à lume a observação de Luís Roberto Barroso acerca do papel da novo direito constitucional brasileiro diante das perspectivas pós-positivistas:
O pós-positivismo identifica um conjunto de ideias difusas que ultrapassam o legalismo estrito do positivismo normativista, sem recorrer às categoriais da razão subjetiva do jusnaturalismo. Sua marca é a acensão de valores, o reconhecimento da normatividade dos princípios e a essencialidade dos direitos fundamentais. Com ele, a discussão ética volta ao direito. O pluralismo político e jurídico jurídico, a nova hermenêutica e a ponderação de interesses são componentes dessa reelaboração teórica, filosófica e prática que fez a travessia de um milênio para o outro.
O novo direito constitucional brasileiro, cujo o desenvolvimento coincide com o processo de redemocratização e reconstitucionalização do país, foi fruto de duas mudanças de paradigma: a) a busca da efetividade das normas constitucionais, fundada na premissa da força normativa da constituição […]. (2006a, p. 342-343)
Reconhece-se, portanto, que muitos avanços precisam ser feitos a fim se superar os obstáculos de acesso à justiça para a defesa de direitos ou interesses transindividuais. A existência de um microssistema processual coletivo na ordem jurídica brasileira representa um avanço importante. No entanto, outros passos precisam ser dados, sobretudo no sentido de se reconhecer na figura do cidadão maturidade suficiente para ir a juízo defender interesses de uma coletividade na qual ele próprio está inserido.
3 AÇÃO POPULAR: CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO JURÍDICO-PROCESSUAL DA LEGITIMIDADE ATIVA
Centro das atenções deste estudo, a ação popular é conceituada pela doutrina, muitas vezes sob diferentes enfoques. Portanto, reveladora pode ser a tarefa de estudar os conceitos de ação popular encontrados entre os doutrinadores, razão pela qual importa, nesse momento, realizar uma pequena análise de alguns desses conceitos.
A Constituição Federal de 1988, no inciso LXXIII do seu art. 5º dispõe que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isenta das custas judiciais e do ônus da sucumbência”. Percebe-se, a partir da leitura desse dispositivo, que o constituinte deixou ao cidadão a possibilidade de levar ao Judiciário, por meio da ação popular, a afirmação de lesão ou ameaça de lesão a certos interesses transindividuais.
Na doutrina brasileira é possível vislumbrar alguns conceitos que revelam certa adstrição a enumeração dos interesses elencados pelo legislador constituinte:
No direito positivo brasileiro contemporâneo deve-se considerar popular a ação que, intentada por qualquer do povo (mais a condição de ser cidadão eleitor, no caso da ação popular constitucional), objetive a tutela de um dos interesses metaindividuais previstos especificamente na norma de regência, a saber: a) a moralidade administrativa, o meio ambiente, o patrimônio público lato sensu (erário e valores artísticos, estéticos, históricos ou turísticos), no caso da ação popular constitucional como resulta da interpretação sistemática: CF, art. 5º, LXXIII; LAP, art. 1º, §1º, e art. 4º [...]. (MANCUSO, 2008, p. 78)
Por outro lado, pode-se observar uma concepção de ação popular vinculada ao seu fundamento de típico instrumento de exercício da democracia direta garantido pela Constituição Federal de 1988. Dessa maneira, José Afonso da Silva (2006, p. 464), após asseverar que a ação popular compreende o exercício de um poder de natureza essencialmente política, decorrente da soberania popular, conceitua a ação popular com o instrumento de processual civil, outorgado a qualquer cidadão para a proteção do interesses da coletividade, mediante a provocação do Poder Judiciário para que este exerça o controle corretivo de atos lesivos ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.
Trata-se, segundo Hely Lopes Meirelles, de um meio apto para obter a invalidação de atos ou contratos administrativos, quando estes são ilegais ou lesivos ao patrimônio federal, estadual ou municipal, ou de suas autarquias, entidades paraestatais e pessoas jurídicas subvencionadas pelo dinheiro público:
É um instrumento de defesa dos interesses da coletividade, utilizável por qualquer de seus membros. Por ela não se amparam direitos individuais próprios, mas sim interesses da comunidade. O beneficiário direto e imediato dessa ação não é o autor; é o povo, titular de direito subjetivo ao governo honesto. O cidadão promove em nome da coletividade, no uso de uma prerrogativa cívica que a Constituição da República lhe outorga. (2001, p. 118).
Observa-se, porém, a possibilidade de se encontrar a construção de um conceito de ação popular que vislumbra a sua propositura para a defesa de interesses ou interesses transindividuais que não aqueles expressamente consignados pelo constituinte no art. 5º, inciso LXXIII da Carta de 1988. É o que, por exemplo, pode ser visto no conceito formulado por Assagra de Almeida:
A ação popular, [...], pode ser conceituada como a espécie de ação coletiva de dignidade constitucional colocada à disposição do cidadão como decorrência do seu direito político de participação direta na fiscalização dos poderes públicos, para o controle jurisdicional dos atos ou omissões ilegais ou lesivos: ao erário, inclusive em relação ao patrimônio de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e cultural, sem exclusão da tutela de outros direitos com ela compatíveis (2003, p. 389)
Ainda seguindo a linha de reconhecimento da ação popular como instrumento de proteção de outros interesses além daqueles enumerados pelo legislador constituinte, Seabra Fagundes ressalta que o elemento essencial da ação popular consiste na repercussão supra-individual dos interesses por meio dela defendidos.
[...] “Não é o ser intentada contra pessoa jurídica de direito público, nem o dizer respeito a relações jurídicas de que o Estado, ou outra dessas pessoas, seja interessado ou parte, que lhe empresta caráter específico. Para que se lhe atribua sentido especial, é preciso que alguma coisa a peculiarize processualmente. E é à luz dessa orientação que se de conceituar a ação popular, que, sendo um remédio de direito processual, embora com aplicações a relações de direito administrativo, daquele, dos princípios que o regem, há de trazer os elementos específicos de sua classificação. E o elemento que permite lhe atribuir caráter formal peculiar é o interesse à propositura, que, aparecendo individualizado nas ações em geral (até mesmo nos casos de substituição processual, onde o autor, não sendo titular da relação de direito substancial, o é, entretanto, do direito de agir), nessa ação, que envolve direitos, bens ou interesses regidos pelo direito administrativo,se apresenta indeterminado, pelas repercussões impessoais da lide”. (FAGUNDES apud MANCUSO, 2008, p. 80)
Deve-se reconhecer na ação popular um legítimo instrumento de tutela de pretensões metaindividuais. “Toda ação popular consiste na possibilidade de qualquer membro da coletividade, com maior ou menor amplitude, invocar a tutela jurisdicional a interesses coletivos”. (SILVA, 2006, p. 462)
A idéia de outorgar ao cidadão meios processuais de levar a juízo pretensões transindividuais também parece ter inspirado a elaboração do anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, que estende a legitimação para a propositura da “ação coletiva ativa” para a pessoa física, desde que, após aferição do juiz, verifique-se a adequação de sua representatividade, tendo-se por parâmetros dados como: “a) credibilidade, capacidade e experiência do legitimado; b) seu histórico na proteção judicial e extrajudicial dos interesses difusos e coletivos; c) sua conduta em eventuais processos coletivos em que tenha atuado”. (MANCUSO, 2008, p. 80)
3.2 Classificação jurídico-processual da legitimidade ativa na ação popular
No que diz respeito à classificação jurídico-processual da legitimidade ativa na ação popular, há que se registrar que o tema não é pacífico, havendo quem entenda que se trata de legitimidade extraordinária (substituição processual), outros que concebem a legitimidade ativa na ação popular como ordinária, e ainda outros que apontam para a existência de uma legitimidade ativa autônoma nas demandas que visem à tutela de uma pretensão coletiva.
Encaram-na como substituição processual aqueles que a concebem o autor popular como alguém que vai a juízo defender interesse que não lhe pertence. Neste caso, a lei autorizaria ao cidadão que, em nome próprio, pleiteasse direito pertencente à coletividade, da qual ele próprio faz parte. Rodolfo de Camargo Mancuso refere-se, dentre outros, a Pedro da Silva Dinamarco como exemplo de defensor desse posicionamento:
[...] essa legitimidade de cada cidadão é extraordinária (ou substituição processual), do tipo autônoma, pois não depende da atuação conjunta de quem ordinariamente seria legitimada a agir; concorrente, pois não exclui a atuação do próprio ente estatal, ainda que outra via processual; e disjuntiva, pois vários cidadãos podem em litisconsórcio ou em demandas separadas – ainda que as demandas devam ser necessariamente reunidas para um julgamento conjunto (LAP, art. 5º, § 3º). Assim, o cidadão, no caso, é parte no processo apenas no sentido formal, pois no sentido material é parte o Poder Público e toda a coletividade substituída. (DINAMARCO, 2006 apud MANCUSO, 2008, p. 199)
Este também parece ser a visão de Mazzilli, que, embora tratando a Ação Civil Pública, estabelece as bases da legitimação ativa para a tutela de interesses transindividuais da seguinte maneira:
Ainda que proceda em parte essa argumentação, identificamos na ação civil pública ou coletiva a predominância do fenômeno da legitimação extraordinária ou da substituição processual, o que não ocorre nas hipóteses em que o titular da pretensão aja apenas na defesa dos próprios interesses. Na ação civil pública ou coletiva, embora em nome próprio, os legitimados ativos, ainda que ajam de forma autônoma e, às vezes, também defendam interesses próprios: zelam também por interesses transindividuais, de todo o grupo, classe ou categoria de pessoas, os quais não estariam legitimados a defender a não ser por expressa autorização legal. Daí porque esse fenômeno configura preponderantemente a legitimação extraordinária, ainda que, em parte, alguns legitimados ativos possam, na ação civil pública ou coletiva, também estar a defender interesse próprio. (2001, p.58).
Observe-se, pois, que os fundamentos que sustentam tal posicionamento vão de encontro à corrente que concebe o autor popular como alguém que age em defesa de direito próprio. De acordo com Alexandre de Morais, na ação popular o cidadão-eleitor atua com apoio no princípio da soberania popular, viabilizadora do exercício do poder fiscalizatórios das atividades desempenhadas pelo Poder Público e baseada “no princípio da legalidade dos atos administrativos no conceito de que a res pública (República) é patrimônio do povo.” (2002, p. 192)
Nessa esteira, José Afonso da Silva:
[...] Sob esse aspecto é uma garantia constitucional política. Revela-se como uma forma de participação do cidadão na vida pública, no exercício de uma função que lhe pertence primariamente. Ela dá a oportunidade de o cidadão exercer diretamente a função fiscalizadora, que, por regra, é feita por meio de seus representantes nas Casas Legislativas. Mas ela é também uma ação judicial porquanto consiste num meio de invocar a atividade jurisdicional visando a correção de nulidade de ato lesivo [...] (p. 463, 2006)
Revela-se, assim, como a posição mais acertada aquela que vê no autor popular um legitimado ordinário, vez que quando toma a iniciativa de propor uma ação popular o autor exerce, “enquanto cidadão no gozo de seus direitos políticos, sua quota-parte no direito geral a uma administração proba e eficaz, pautada nos princípios assegurados nos arts. 37, 170, 215 e outros da CF.” (MANCUSO, 2008, p. 204-205).
Finalmente, é preciso fazer referência à corrente que entende a legitimidade do autor popular como uma espécie autônoma, desvinculada dos esquemas tradicionais de classificação da legitimidade ativa em ordinária ou extraordinária. (NEREY JÚNIOR, 1991, p. 36)
4 O MICROSSISTEMA PROCESSUAL COLETIVO
4.1 O processo coletivo e o microssistema processual coletivo
A existência de interesses transindividuais confunde-se com a própria atuação do homem como ser social. Por outro lado, é recente a aspiração pela tutela jurisdicional para a resolução de conflitos relacionados àqueles interesses.
Tornou-se possível falar, no que toca o direito brasileiro, para fins didáticos, sobre a existência de um direito processual coletivo, gênero das espécies comum e especial. Dessa maneira, a jurisdição coletiva pode ser classificada como comum, quando “se ocupa com o exercício do poder para a resolução das lides coletivas ocorridas no plano da concretude e deduzidas em juízo”; e especial, quando o poder jurisdicional relacionada à tutela dos direitos transindividuais e exercido com atenção ao controle em abstrato de constitucionalidade, com o escopo de manter a “congruência do ordenamento jurídico, com a retirada dos comandos normativos com ele incompatíveis, principalmente aqueles que atentam contra os interesses massificados fundamentais”. (ALMEIDA, 2003, p. 530-531). Repita-se, trata-se de uma divisão efetuada para fins didáticos, haja vista que a jurisdição, como uma das facetas do poder estatal, é uma.
Didier e Zaneti assim definem o processo coletivo:
[...] conceitua-se processo coletivo como aquele instaurado por ou em face de um legitimado autônomo, em que se postula um direito coletivo lato sensu ou se afirma a existência de uma situação jurídica coletiva passiva, com o fito de obter um provimento jurisdicional que atingirá uma coletividade, um grupo ou um determinado número de pessoas. (2009, p. 43)
Tomando-se por base a divisão acima proposta, tem-se que a ação popular é um instrumento processual pertencente ao direito processual coletivo comum.
O direito processual coletivo possui suas regras e princípios sistematizados no ordenamento jurídico brasileiro. De acordo com Gregório Assagra de Almeida, o fundamento essencial da jurisdição coletiva no direito brasileiro encontra-se consignado no art. 5 º da CF (capítulo referente aos direitos e deveres individuais e coletivos); mais especificamente, no art. 5º, inciso XXXV da Lei Maior, que consagra o princípio da inafastabilidade do controlo jurisdicional a lesões ou ameaça de lesões a direitos. Parte da própria Constituição a idéia de que a jurisdição não se destina a apenas solucionar conflitos de ordem individual, estando o Poder Judiciário também incumbido de dar efetividade aos direitos primaciais da sociedade. (2003, p. 533-534).
Com a Constituição de 1988 o Poder Judiciário passa a ter de cumprir um importantíssimo papel, qual seja, o de dar efetividade ao Estado Democrático de Direito instituído através daquele texto. Necessário, para isso, a garantia do exercício da jurisdição coletiva que, no Brasil, instrumentaliza-se pela existência de um microssistema destinado à tutela dos interesses transindividuais.
Não existe Estado Democrático de Direito sem a efetivação dos direitos sociais fundamentais. Daí a importância do Poder Judiciário, que deve atuar firmemente no exercício da jurisdição coletiva comum valendo-se do instrumental processual coletivo próprio, já conquistado por nosso sistema jurídico, com a LAPC [Lei da Ação Civil Pública] e as disposições processuais do CDC [Código de Defesa do Consumidor], que se interagem, constituindo um microssistema próprio da tutela jurisdicional coletiva. (ALMEIDA, 2003, p. 534)
Nessa esteira, Ada Pelegrini Grinover destaca o fato de que esse microssistema possui regras e princípios próprios, o que, por conseguinte, o diferencia do sistema processual concebido pelo Código de Processo Civil, com características essencialmente individualista. (200-, p. 01)
Com apoio nas lições de Rodrigo Mazzei, (2006 apud Didier e Zaneti 2009, p. 52) explicam a dinâmica de funcionamento desse microssistema processual, demonstrando que os diplomas que o compõem intercambiantes entre si, representando uma ruptura com os modelos clássicos de codificação que exigiam a completude como requisito mínimo, “aderindo a uma intertextualidade intra-sistemática”. Ou seja, de acordo com aqueles autores, o microssistema processual coletivo representa uma tendência de criação de mecanismos legais incompletos para aumentar sua “flexibilidade e durabilidade em uma realidade pluralística, complexa e muito dinâmica”.
Didier e Zaneti (2009) atribuem ao Código de Defesa do Consumidor o papel de agente harmonizador dos demais diplomas voltados à tutela coletiva. Assim, consideram que, naquilo em que for compatível, à ação popular, à ação civil pública, à ação de improbidade administrativa e até ao mandado de segurança serão aplicadas as disposições contidas no Título III do CDC, que pode ser identificado como um verdadeiro “Código Brasileiro de Processos Coletivos”.
É fácil constatar que o Código de Defesa do Consumidor não possui todas as disposições relativas à tutela coletiva, sendo necessária a busca pela integração dos diversos diplomas que versam sobre a matéria. Essa integração deve ter como referência a Constituição Federal, como fundamento de validade de todas as normas, assim com a utilização residual das normas que compõem o Código de Processo Civil.
Dessa forma, tendo em vista ser a ação popular um componente do microssistema processual coletivo, insta realizar uma breve abordagem sobre os princípios a este aplicáveis, a fim de identificar aqueles que porventura possam justificar a ampliação da área de interesses protegidos por meio da ação popular.
4.2 Alguns princípios aplicáveis à tutela coletiva
Como visto, o microssistema de tutela coletiva presente na ordem jurídica brasileira possui um conjunto de regras e princípios específicos. Convém, neste momento, analisar resumidamente alguns desses princípios, além de outros que, embora também aplicáveis à relação jurídica processual tradicional, são aplicados à tutela coletiva com algumas adaptações.
José Afonso da Silva (2006, p.91-92) chama a atenção para o fato de que a a palavra princípio não apresenta uma acepção unívoca, podendo tanto significar o começo, o início de algo, como também pode significar a noção de mandamento nuclear do sistema. Para os fins propostos para o pressente tópico, importa a definição de princípios formulada por aquele autor, segundo a qual seriam “ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas”, são “núcleos de condensações nos quais confluem valores e bens constitucionais”; constituem-se em fundamentos de normas jurídicas, mas, ao mesmo tempo, podem ser “positivamente incorporados”, sendo, neste último caso, transformados em “normas-princípios”.
De acordo com Ada Pellegrini Grinover (200-, p. 02) destaca o princípio do acesso à justiça como princípio aplicável à tutela de interesses transindividuais, ressaltando que ele não indica apenas o direito de aceder ao tribunal, mas representa o direito de alcançar, “por meio de um processo cercado das garantias do devido processo legal a tutela efetiva dos direitos violados ou ameaçados. Registre-se que, segundo a autora supracitada, o princípio ganha nova conotação quando aplicado à tutela de direitos coletivos (tendo-se como parâmetro sua aplicação nos esquemas de proteção de direitos individuais), o que pode ser sentido, por exemplo, na maior flexibilidade observada nas estruturas da legitimação para agir nas ações coletivas.
O princípio do devido processo legal é aplicado ao processo coletivo com algumas adaptações, devendo-se destacar a necessidade de processo assumir uma vocação coletiva, reforçando a função do Poder Judiciário de efetivar os direitos individuais e sociais fundamentais. É do princípio do devido processo legal, com essa nova conformação, que derivam os demais princípios relativos ao processo coletivo comum (DIDIER e ZANETI, 2009, p. 112).
Grinover (200-, p. 02) ainda destaca a existência do princípio da universalidade da jurisdição coletiva, entendido este como a garantia de acesso à justiça a um número cada vez maior de pessoas, “amparando um número cada vez maior de causas”.
O Judiciário, no bojo do atual sistema constitucional, passou a ter a função de transformador da realidade social, não se resumindo ao papel de mero agente de solução de conflitos interindividuais. Sendo assim, o princípio do interesse jurisdicional no conhecimento do mérito do processo coletivo reflete essa tendência, consistindo na necessidade de se flexibilizar as exigências formais relacionadas à admissibilidade das ações coletivas. O princípio em comento encontra-se assim explicado por Gregório Assagra de Almeida:
Assim, como guardião dos direitos e garantias sociais fundamentais, o Poder judiciário, no Estado Democrático de Direito, tem interesse em enfrentar o mérito do processo coletivo, de forma que possa cumprir o seu mais importante escopo: o de pacificar com justiça, na busca da efetivação de valores democráticos. Com efeito, o Poder Judiciário deve flexibilizar os requisitos de admissibilidade processual, para enfrentar o mérito do processo coletivo e legitimar sua função social.
[…]
Não mais é admissível que o Poder Judiciário fique preso em questões formais, muitas delas colhidas em uma filosofia liberal individualista já supera e incompatível com um Estado Democrático de Direito, deixando de enfrentar o mérito, por exemplo, de uma ação coletiva cuja causa de pedir se fundamenta em improbidade administrativa ou em dano ao meio ambiente. (2003, p. 573)
Didier e Zaneti (2009, p. 118) ressaltam que o princípio em tela representa uma decorrência do princípio da instrumentalidade das formas, que, segundo Alexandre Câmara (2006, p. 252) representa a valorização do conteúdo dos atos processuais, em detrimento de sua forma.
O princípio da máxima prioridade jurisdicional da tutela coletiva, por seu turno, é tido por Almeida (2003, p. 573) como aquele que assegura a prioridade de tramitação e julgamento dos processos coletivos. Tem ele, de certa forma, relação direita com o princípio da economia processual, vez que a priorização da ação coletiva pode evitar o ajuizamento de várias ações individuais (é o que pode ocorrer, por exemplo, com uma ação coletiva que verse sobre interesses individuais homogêneos).
O princípio do microssistema sugere a aplicação integrada dos diplomas que compõem o microssistema processual coletivo do direito brasileiro para a proteção dos interesses e direitos transindividuais.
Os processos coletivos são regidos por normas e princípios próprios, através de normas integradas, que descrevem com mais precisão sua dupla finalidade de tutelar os novos direitos coletivos e efetivar a justiça nas sociedades de massa, eliminando os litígios repetitivos. Apenas residualmente se aplica o CPC (legislação individual), quando surgir um problema na aplicação da lei. Antes voltar os olhos para o sistema geral, o intérprete deverá examinar, no conjunto legislativo que constitui o microssistema, se não existe uma norma melhor e mais adequada a correta pacificação da justiça (DIDIER JR e ZANETI JR, 2009, p. 123).
Outro importante princípio específico da tutela coletiva é o da não-taxatividade da ação coletiva, segundo o qual qualquer tipo de direito transindividual poderá ser protegido pelas ações coletivas.
Portanto, pelo princípio da não-taxatividade da ação coletiva, qualquer tipo de direitos coletivo em sentido amplo poderá ser tutelado por intermédio das ações coletivas. Essa assertiva também é reforçada pelo princípio da máxima amplitude da tutela jurisdicional coletiva, prevista no art. 83 do CDC, e aplicável a todo direito processual coletivo, por força do art. 21 da LAPC.
Limitações levadas a efeito pela jurisprudência e pela legislação infraconstitucional são inconstitucionais […]. (ALMEIDA, 2003, p. 575)
Sobre o princípio da não-taxatividade, convém também fazer menção às lições de Didier e Zaneti:
Além disto, também o “nome” dado a ação coletiva não importa para fins de sua admissibilidade em juízo. O que importa é a “substância” da ação.[...]
O principal: para fins de admissibilidade da demanda o nome é desimportante.
Também é a aplicação desse princípio a interpretação e que o mandado de segurança coletivo pode ter por objeto qualquer direito coletivo (em sentido amplo). Já que todo procedimento pode servir à tutela coletiva (art. 83 do CDC), por que logo o mandado de segurança não seria permitido (2009, p.127)
Finalmente, há que se fazer referência ao princípio da máxima efetividade do processo coletivo. Por esse princípio busca-se a efetividade real do processo coletivo, e não a meramente formal. “Assim, o processo coletivo deve revestir-se de todos os instrumentos necessários para que seja efetivo”. (ALMEIDA, 2003, p. 576).
De tudo o que foi exposto, é notória a necessidade de uma nova compreensão da ação popular no direito brasileiro. Essa nova compreensão deverá ter em conta a urgência de uma ordem constitucional efetiva, que consagra a posição do Poder Judiciário como agente transformador da realidade social e que revela a existência de um microssistema de tutela dos interesses fundamentais coletivos.
A evolução verificada nos estudos sobre os direitos coletivos em sentido amplo também se reflete na atual concepção da ação popular presente no direito brasileiro. Esta deve ser entendida como uma engrenagem componente de um microssistema processual que se desvincula dos tradicionais esquemas de proteção a posições jurídicas de vantagem (de índole individualista), justamente para tornar deveras efetiva a tutela de interesses transindividuais.
Definitivamente, não se coaduna com essa perspectiva o posicionamento da doutrina que limita o âmbito de incidência da ação popular à defesa dos interesses elencados em sua “norma de regência”.
Essa concepção restritiva do âmbito de incidência da ação popular vai de encontro com a busca por maior efetividade dos direitos fundamentais coletivos. E, nesse sentido, há que se ter em vista o conceito de efetividade formulado por Luis Roberto Barroso (2000, p. 84-85), para quem a efetividade (conceito distinto de eficácia jurídica, que corresponde à “possibilidade de aplicação da norma) do Direito representa a realização no plano fático dos preceitos legais, simbolizando a aproximação entre o mundo do dever-ser normativo e o mundo do ser da realidade social.
Aliás, registre-se que o neoconstitucionalismo, que surge a partir da segunda metade do século XX, como um conjunto de idéias ainda difusas resultantes da confluência entre o jusnaturalismo e do positivismo jurídico, trás à lume o reconhecimento da força normativa da Constituição e da constitucionalização do Direito, irradiando o conteúdo material e axiológico dos dispositivos constitucionais, com força normativa, para todo o ordenamento jurídico (BARROSO, 2006b). O papel do judiciário passa a ser o de um agente transformador da realidade social, não sendo mais apenas um órgão técnico. Além da limitação do poder político, a Constituição passa representar um texto que contém disposições efetivas, aspirando à concretização dos direitos fundamentais (LENZA, 2009).
Não se pode aceitar uma tese que claramente fere o princípio do acesso à justiça para a proteção de direitos transindividuais e inviabiliza o pleno exercício de um direito político. Como visto, o cidadão vai a juízo, por meio da ação popular, afirmando a lesão ou ameaça de lesão a interesse próprio (legitimidade ordinária). Não há dúvidas de que o rol desses interesses não se limitam àqueles enumerados expressamente na norma constitucional. É muito poderosa a capacidade que tem Administração Pública de lesar direitos transindividuais.
Não é à toa que é possível, por exemplo, ver em Mancuso (2006, p.80), defensor daquela concepção restritiva (IBDEM, p. 185), o reconhecimento de viabilidade de propositura da ação popular em demandas que envolvam relações de consumo. Por outro lado, também é possível verificar vozes a favor da viabilidade da ação popular para a defesa de interesses coletivos em sentido amplo das pessoas portadoras de deficiência, sob a o argumento da necessidade de concretização das normas que consagram direitos fundamentais (FAZOLI e RÍPOLI, 2008, p. 3486).
E nem se diga que os “corpos intermediários”, tais como as associações civis e o Ministério Público, cumprem a função de defensor dos interesses supraindividuais melhor do que o indivíduo, membro da coletividade cujo interesse fora lesado. Se há desvantagens evidentes na atuação do autor popular, e se há a necessidade de reconhecer a grande importância do MP, das associações civis e demais instituições incumbidas pela ordem jurídica brasileira de proteger os interesses em comento, não se pode deixar de destacar as investidas do Poder Público no sentido de limitar a atuação desses “corpos”.
O ideal de maior efetividade dos direitos transindividuais pode ser identificado através do reconhecimento recente da existência de microssistema processual coletivo, dotando de um regramento próprio e criando um arcabouço principiológico específico à tutela de interesses dessa natureza. Os princípios da não-taxatividade, o princípio do microssistema, assim como o principio da máxima efetividade do processo sugerem uma ampliação do âmbito de incidência da ação popular.
É preciso considerar o caráter instrumental do processo, no sentido de ser ele instrumento de atuação do direito material. Para isso, no que tange a tutela coletiva, é necessária a ampliação do objeto da ação popular, de maneira que a mesma possa ser proposta para a defesa de outros interesses além daqueles consignados no texto de regência.
Por ora, pode-se dizer, com base nos argumentos expostos ao longo do presente trabalho, que a ação popular pode muito mais do que aparentemente seu texto de regência afirma de maneira expressa, e que a atual ordem constitucional concebe o indivíduo como um importantíssimo personagem para a garantia de direitos pertencentes à coletividade.
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Acadêmico de Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana, UEFS, Salvador, Brasil.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAMALHO, Paulo Victor do Carmo. O objeto da ação popular constitucional brasileira e o microssitema processual coletivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 fev 2010, 09:43. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/19188/o-objeto-da-acao-popular-constitucional-brasileira-e-o-microssitema-processual-coletivo. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
Por: PRISCILA GOULART GARRASTAZU XAVIER
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