O meritíssimo juiz de direito da comarca de Varginha-MG, sob a alegação de falta de estrutura para o trabalho, grande número de processos sob sua responsabilidade, inclusive com pessoas presas aguardando julgamento, tomou a decisão de liberar cerca de quarenta custodiados, para que esperem decisão final dos respectivos processos em liberdade.
A conduta do juiz, polêmica por natureza, apesar de não constituir novidade no Judiciário de Minas, acendeu debate sobre o assunto na mídia, no meio universitário, na Polícia e nos demais organismos que compõem o Sistema de Justiça Criminal.
Não faltaram defensores do magistrado, a maioria de instâncias diversas do próprio judiciário, afirmando que o ato foi corajoso e baseado praticamente no que se constituiria em estado de necessidade administrativa, como solução única possível em face da impotência judicial diante de condições precárias de trabalho e excessivo número de casos a merecerem o seu veredicto.
Lado outro, diversas representações dos meios referidos não aprovaram a atitude, censurando-a com veemência lastreadas nos seguintes argumentos e indagações:
Quem são as pessoas liberadas? Claro que se tratam de criminosos que praticaram delitos de maior potencial ofensivo, já que os crimes de pequeno e médio potencial são tratados, hoje, corretamente, com medidas alternativas à prisão, restrição de direitos, suspensão condicional do processo, portanto despenalizantes e descarcerizantes, deduzindo-se, forçosamente, sobre a inquestionável periculosidade dos primeiros e gravidade de suas infrações.
Haveria, de fato, o estado de necessidade administrativa que permitisse a liberação intempestiva de dezenas de pessoas socialmente nocivas? Qualquer excludente de ilicitude, causa justificante, acontece como única alternativa possível na hipótese discutida. Não é o caso de Varginha. O próprio mutirão organizado, às pressas, pelo Tribunal de Justiça em socorro ao congestionamento processual daquela comarca vai, com certeza, solucionar ou amenizar a situação irregular descrita. Não poderia ter sido feita essa operação de emergência antes e para impedir a libertação precipitada dos presos?
Quem são os funcionários submetidos ao “constrangimento” do alegado trabalho excessivo naquele ambiente forense? Além do juiz, que não trabalha sozinho, existem tantos outros servidores, assessores, burocratas, que pertencem, hoje, a uma classe de trabalhadores públicos melhor remunerada no país, com mais de sessenta dias de férias/recessos anuais, com direitos estatutários de faltar ao trabalho, alguns dias por mês, sem necessidade de qualquer justificativa e que adotam a cultura não ortodoxa de emendar os chamados feriados prolongados em atitude pródiga na determinação dos chamados “pontos facultativos”. Muitos, evidentemente, operando em regime de meio-expediente. Não estariam, eles próprios, contribuindo, assim, com regime laboral tão permissivo, para acontecimento, manutenção ou incremento da demanda represada de tarefas? Não possuem o dever ético e legal, pelas razões expostas, de dedicarem o melhor de seus esforços e a mais qualificada energia no desempenho de suas funções, já que auferem contraprestação financeira dos mais elevados padrões?
O excesso de prazo na formação de culpa, previsto na legislação processual como possibilidade para relaxamento da prisão, foi apontado e requerido pela parte interessada? Foi pleiteado pela defensoria pública? Foi objeto de pedido pela defesa particular dos réus? Foi questionado por algum organismo de defesa dos direitos humanos? Foi decretado por iniciativa isolada do magistrado, talvez como oportunidade de se livrar de obrigação com tempo limitado?
Qual o papel e o compromisso do representante do Poder Judiciário, incumbido da prestação jurisdicional? Com certeza deve ter comprometimento com a Lei, com a vítima e seus familiares, com a Sociedade que espera dele conduta imparcial, equidade e celeridade na solução dos conflitos. Também deve haver preocupação com o réu, que pretende decisão a mais adequada e justa.
Acontece que a solução adotada pelo juiz foi direcionada exclusivamente para os interesses dos réus, perdendo, assim, a referência dos demais interessados num mesmo conflito, que não foram objeto de suas ponderações e considerações. Trata-se do resgate do livre arbítrio medieval onde o único fator de orientação das decisões judiciais se pauta pelo exclusivo ponto de vista pessoal do julgador, não importando as disposições legais que regulam a espécie?
A soltura em massa de presos, imprudente e inadequada, irá potencializar os níveis de violência daquela comarca? Vai reforçar a sensação de impunidade e falta de confiança da população em suas instituições? Estaremos diante de uma miopia funcional que não permite que se perceba um fato anti-social pelo amplo espectro dos inúmeros desdobramentos que ele comporta?
Poder-se-ia perguntar, em acréscimo, por onde andou, a esse tempo, o Ministério Público, com sua incumbência constitucional de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”?
O receio que se tem, logicamente, neste momento, é que decisões tresloucadas como essa venham sedimentar a idéia de falência do sistema de justiça, levando ao descrédito o contrato social, criação modelar de Jean Jacques Rousseau, apontando para a necessidade de retorno ao estado de anomia, onde cada indivíduo deverá se incumbir da solução de seus próprios conflitos, à sua maneira, com recursos particulares e uso de suas próprias forças.
Trata-se, infelizmente, de um estado de coisas profundamente lamentável em todos os sentidos!
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