A antiga redação do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro dispunha que constituía crime “conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem.”
Com a entrada em vigor da Lei n° 11.705/2008, o referido dispositivo passou considerar crime a mera conduta de dirigir veiculo automotor, na via publica, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas.”
Inicialmente, duas alterações chamam a atenção na nova redação da norma: passou-se a exigir do agente a prova de que a concentração de álcool por litro de sangue encontra-se igual ou superior a 6 decigramas; ao mesmo tempo que retirou-se do texto legal a expressão “expondo a dano potencial”.
Quanto à primeira alteração, não restam dúvidas de que se está diante de uma novatio legis in mellius, pois a lei passou a exigir uma quantidade mínima de álcool por litro de sangue do agente para caracterização do delito de trânsito.
Todavia, a segunda alteração ou, no caso, a omissão do termo “expondo a dano potencial” vem gerando inquietude e insegurança no meio jurídico quanto ao real alcance da norma. Afinal, a Lei n° 11.705/2008 conferiu ao art. 306, do CTB, o “status” de crime de perigo abstrato?
Entendemos que não, pois mesmo que a expressão “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem” tenha sido retirada do texto da norma penal é certo que a alteração legislativa não criou um crime que prescinde de uma ofensa a um bem jurídico determinado.
Isso porque, o Código de Trânsito Brasileiro, ao punir a embriaguez ao volante, tem como objetivo a tutela da segurança viária e, nos dizeres do eminente Desembargador do TJDFT, Mário Machado, só há crime nos casos em que esta é afetada ou exposta a perigo, ainda que potencial.
Aliás, como bem leciona o saudoso Ministro Francisco de Assis Toledo e o brilhante professor Paulo Queiroz, outro não poderia ser o entendimento, diante da proibição imposta ao legislador de criminalizar condutas inofensivas ou incapazes de ferir um bem jurídico protegido.
Portanto, só haverá o crime de embriaguez ao volante quando o motorista dirigir em via pública, sob influência de álcool e com concentração deste por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, gerando perigo para a segurança viária, ainda que indeterminado.
Todavia, há uma corrente defensora da existência, sim, de um crime de perigo abstrato, ou seja, para estes, basta que o motorista esteja com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, que estará consumado o delito do art. 306 do CTB. Para tanto, os defensores desta corrente argumentam que hodiernamente tem-se permitido ao legislador, em nome do interesse público, editar normas penais criando crimes de perigo abstrato, tal qual feito no porte de armas (art. 14 da Lei n° 10.826/2003) e na Lei de Tóxicos (art. 28).
Porém, para que se portar armas, legalmente, há que se submeter a um procedimento administrativo a fim de se obter a respectiva licença. Da mesma forma, a Lei n° 11.343/06, criminaliza a conduta de portar uma substância cuja venda é proibida pelo Estado. Por outro lado, a conduta criminalizada pelo art. 306 do CTB pressupõe o consumo de álcool, substância cuja venda é permitida e, muitas vezes, até estimulada. Assim, não há como comparar o dolo de perigo abstrato destes crimes com o elemento subjetivo inerente ao delito de trânsito em questão.
Outro argumento erigido pelos defensores desta última corrente é que o número de acidentes de trânsito caiu consideravelmente desde a entrada em vigor da Lei n° 11.705/08. Não obstante isto seja uma verdade, trata-se, contudo, de um argumento falacioso. Senão, vejamos.
Recente pesquisa feita com 54 mil pessoas pela Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), do Ministério da Saúde constatou aumento de 21% dos motoristas que admitem beber de forma abusiva e pegar o volante em seguida. Em junho de 2008, quando a referida lei entrou em vigor, 1,9% dos entrevistados admitiu ter dirigido sob o efeito do álcool. Em março deste ano, nove meses depois da lei, o percentual subiu para 2,3%.
Ora, porque este crescimento estatístico, se ainda vige a malgrada Lei Seca brasileira? Só há uma reposta: passada a pirotécnica dos primeiros meses dessa lei, a fiscalização reduziu e, por conseguinte, o número de acidentes aumentou.
Não há duvidas de que, ao contrário do espírito do legislador – que buscou dar uma resposta à sociedade saturada com violência no trânsito, às custas das garantias constitucionais – o mens legis voltou-se no sentido de ver reduzido o crescente número de acidentes nas vias de tráfego de veículos.
Da mesma forma não restam dúvidas de que esta vontade foi alcançada, reduzindo o número de mortes no trânsito. Todavia, esta redução deu-se não em razão da referida lei draconiana, mas sim em razão da rigorosa fiscalização feita pelos agentes de trânsito. Se esta fiscalização existisse desde a entrada em vigor do Código de Trânsito Brasileiro, por certo, esta discussão não existiria!
Note-se, ainda, que o rigor do art. 306 do CTB, atinge, atualmente, apenas aqueles cidadãos pegos pela fiscalização de trânsito e que se dispõem a produzir contra si a prova de que a concentração de álcool por litro de seu sangue encontra-se igual ou superior a 6 (seis) decigramas.
Tão logo os indivíduos se atentem ao seu direito constitucional de não produzir provas contra si, não mais soprarão o famigerado bafômetro e, por conseguinte, deixarão o Poder Judiciário brasileiro de mãos amarradas no combate a embriaguez no volante. O que fazer com aquele motorista que dirigi de forma anormal, nitidamente embriagado, mas que se recusa a fazer o teste do bafômetro? Não se sabe...
Frise-se: a “eficiência” da denominada Lei Seca brasileira tem prazo de validade para acabar!
Por fim, é importante destacar que, conforme preconiza o princípio da fragmentariedade, o ordenamento jurídico penal deve ser visto pelo legislador como a ultima ratio na composição de conflitos de caráter ético-moral, utilizado apenas quando se entende que outra opção não resta senão a criação de uma lei penal incriminadora.
Neste sentido, a punição administrativa prevista no art. 165 do CTB, se mostra suficiente àqueles motoristas que dirigem sob influencia de álcool, mas não colocam em perigo, sequer potencial, a segurança viária.
Deste modo, concluímos que o delito previsto no art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, não obstante a recente alteração de sua redação, permanece exigindo um dano potencial para a sua consumação, devendo a segurança viária – bem jurídico protegido – ser exposta a perigo, ainda que indeterminado.
Ademais, a fim de ver reduzido, de forma concreta e real, a violência no trânsito, filiamo-nos ao eminente Desembargador Mário Machado, apelando ao legislador e demais autoridades públicas: volte à redação anterior do art. 306 do CTB e permaneça, de maneira efetiva, com a fiscalização nas vias de tráfego brasileira!
Notas:
“Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Infração - gravíssima;
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