A Lei 12.234/10 surgiu no ordenamento brasileiro com um objetivo claro: por fim à extinção da punibilidade pela prescrição em função de delongas na fase inquisitorial da persecução penal.
A atuação legislativa terminou por decotar parte do período que era abarcado pela denominada prescrição punitiva in concreto retroativa, que antes possuía duas balizas temporais, quais sejam, da data do fato ao recebimento da denúncia e do recebimento da denúncia à condenação transitada em julgado para a acusação.
Claramente buscou o legislador, pressionado pela opinião pública, fulminar o primeiro intervalo temporal mencionado, evitando que a investigação penal desidiosa e mal conduzida causasse inúmeras extinções de punibilidade.
A questão que se coloca é: foi a Lei bem sucedida nesse intento?
Como é cediço, o art. 117, do CP dispõe acerca das causas interruptivas da prescrição:
"Art.117.O curso da prescrição interrompe-se:
I- pelo RECEBIMENTO da denúncia ou da queixa;"
Agora repare-se a nova redação do art. 110, § 1º, do CP,
"Art. 110. ...................................
§ 1º. A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa."
Salta aos olhos a falha do legislador.
Com efeito, como sói ocorrer com grande parte de nossas leis, a falta de apuro redacional dá ensejo ao surgimentos de múltiplas e conflitantes interpretações, colocando em cheque a segurança jurídica, garantia constitucional protetora de inúmeros direitos fundamentais, dentre eles a isonomia.
Ora, o marco inicial da prescrição é o recebimento da denúncia, como prevê o artigo 117, I, ou a própria denúncia, leia-se seu oferecimento, como quer fazer crer o novel § 1º do artigo 110, ambos do CP?
A falha legislativa não passou despercebida pela doutrina especializada, como demonstra Luiz Flávio Gomes, em artigo recentemente publicado no sítio eletrônico de seu curso, na internet:
“Ora, a reforma revogou o § 2º (que permitia contagem de tempo anterior ao recebimento da denúncia ou da queixa) e, para que não haja nenhuma dúvida, reiterou no § 1º que não se pode reconhecer prescrição que tenha por termo inicial data anterior à da denúncia (aliás mencionou errado, porque o marco é o recebimento da denúncia).”
Rogando as escusas de praxe ao insigne autor, não parece que a melhor forma de tratar a falha legislativa seja simplesmente considerar um equívoco redacional, um “erro de menção”, e sim averiguar, ainda que sucintamente, quais são os entendimentos poderão surgir, doutrinária e jurisprudencialmente, a partir do testo da Lei 12.234/10.
Por ser uma alteração legislativa ainda muito recente, não há ainda expressiva abordagem jurisprudencial e doutrinária sobre a questão, mas é possível vislumbrar as seguintes interpretações da referida norma penal:
1) Por meio de um método sistemático de hermenêutica, desconsiderar a literalidade da nova redação, entendendo-a como uma alusão ao marco interruptivo já existente, qual seja, o recebimento da inicial acusatória. Apesar de não adotar expressamente esse posicionamento em seu artigo, parece ser a posição de Luiz Flávio Gomes.
Essa interpretação definitivamente não parece a melhor.
Com efeito não se pode esquecer que, em matéria de Direito Penal, vige o princípio da legalidade estrita. Ora, ainda que passando ao largo da máxima que diz não conter a lei palavras inúteis, não se pode, sob o pretexto de realizar um interpretação sistemática, utilizar-se de analogia para, in malan parten, reduzir a baliza temporal na qual se verifica a ocorrência da prescrição.
Explique-se: a nova redação, ao prever o oferecimento da denúncia como marco interruptivo, e não o seu recebimento, amplia o lapso temporal da prescrição retroativa, que vai até a condenação transitada em julgado para a acusação.
Portanto, ignorar a letra da nova lei traduziria forma velada de analogia detrimentosa ao réu, de forma que a interpretação sistemática não pode conduzir a tal resultado.
2) Lei posterior revoga lei anterior. Teria ocorrido revogação tácita do artigo 117, I.
Da mesma forma, não deve ser o entendimento que vá prevalecer.
Para que ocorra a revogação tácita deve haver incompatibilidade entre a texto atual e o texto anterior, e se pretende demonstrar nesse trabalho que, definitivamente, não é esse o caso.
3) Ainda há dois marcos interruptivos na prescrição retroativa, quais sejam, do oferecimento ao recebimento da denúncia, e do recebimento até a condenação transitada em julgado para a acusação.
Essa interpretação pode parecer inútil à primeira vista.
Com efeito, normalmente o lapso temporal que se passa entre o oferecimento e o recebimento da denúncia é bastante reduzido, o que tornaria essa construção opaca e desprovida de qualquer interesse.
Não obstante, pode-se pensar em alguns casos nos quais esse entendimento pode ser útil, como naqueles procedimentos em que, entre o oferecimento e o recebimento da denúncia, há a apresentação de uma defesa prévia, como no rito da Lei de Drogas.
4) A Lei 12.234/10 não interferiu no marco interruptivo previsto no artigo 117, I, pois este refere-se a prescrição em abstrato; o que a novel legislação fez foi inserir uma nova causa de interrupção da prescrição, que, por especialidade, só se aplica à prescrição retroativa.
Essa interpretação parece ser a que mais se coaduna com o espírito da nova Lei.
É bastante simples o entendimento: enquanto estivéssemos no campo da prescrição pela pena abstrata, ainda sem condenação, o marco interruptivo inicial da prescrição é o recebimento da inicial. Porém, quando da passagem para a seara da prescrição pela pena concreta, especificamente da retroativa, o marco inicial do lapso que se estende até a condenação com trânsito em julgado para a acusação agora é o oferecimento, e não mais o recebimento da denúncia.
Percebe-se que esta interpretação, além de não ignorar o texto legal, põe em perfeita harmonia os dispositivos aparentemente conflitantes. Não olvida, tampouco, a conhecida e acertada frase do Ministro Eros, de que o Direito não se interpreta em tiras, pois o artigo 110, § 1º trata claramente da prescrição retroativa, de forma que se afigura de muito bom senso o entendimento de que o marco interruptivo ali previsto se refere àquela espécie de prescrição.
Por fim, é uma interpretação benéfica ao réu, pois aquela prevista na “terceira corrente” cria novos marcos interruptivos na prescrição, enquanto a que ora se adota (que apenas especifica tratar-se de prazos distintos), sobre adequar da melhor forma a confusão feita pelo legislador, não é prejudicial ao acusado.
É que o réu, desta forma, será beneficiado nas duas espécies de prescrição: em se tratando da abstrata, a interrupção se dá no recebimento, e não no oferecimento, o que amplia a baliza temporal na qual ela pode ocorrer. Já em se tratando da prescrição retroativa, o intervalo temporal também é ampliado, pois o marco é antecipado para o oferecimento da inicial acusatória, o que amplia o lapso que se estende até a condenação.
Por todo o exposto, apesar da recenticidade e da falta de parâmetros doutrinários e jurisprudenciais, esse é o entendimento adotado por este trabalho, e o que se espera que venha a vingar no meio jurídico.
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