Desde a sua entrada em vigor, a Lei nº 11.343/06 inseriu no ordenamento jurídico brasileiro propostas inovadoras no tratamento a ser aplicado aos usuários de drogas. Todavia, com o advento desse novo diploma, foram instaladas algumas celeumas entre os juristas que militam na esfera penal no que tange às polêmicas advindas das novas sanções cominadas aos usuários.
Ainda durante a vigência da Lei nº 6.368/76 já havia dissidência jurisprudencial e doutrinária acerca da tipificação legal para a conduta de “transportar” ou “guardar” drogas para consumo próprio, uma vez que o art. 16, que tratava do usuário, não abordava tais verbos em sua redação, sendo que o primeiro tipo estava inserto no art. 12, ao lado dos crimes associados ao tráfico e, por conta disso, consistia em um delito de maior gravidade.
Entretanto, mesmo antes do advento da nova Lei de Antidrogas, os tribunais brasileiros já vinham decidindo no sentido de interpretar o transporte ou depósito de acordo com o animus do agente, ou seja, caso a finalidade fosse o consumo próprio não haveria de se cogitar a hipótese de tráfico, mas sim de mero uso.
Nesse contexto, objetivando impedir a ocorrência de condenações a penas demasiadamente elevadas, o legislador achou por bem expressar a evolução jurisprudencial na legislação, inserindo no art. 28 da nova Lei Antidrogas condutas de transporte e depósito da droga, como configuradoras de crime de uso e não de tráfico.
Entretanto, permanece certa controvérsia a respeito de verbos que a nova lei inseriu no rol de condutas associadas ao tráfico, mas que ainda podem configurar hipótese de consumo pessoal. Tal problema pode ser dirimido, no entanto, ao se fazer o uso da analogia em favor do réu. Nesse sentido, Samuel Miranda Arruda leciona que[1]:
É de se reconhecer, contudo, a necessidade de ampliar o leque do art. 28, privilegiando-se a intenção do agente, o que pode ser feito sob o mesmo fundamento que conduziu a jurisprudência na vigência da Lei 6.368/1976 (analogia in bonam partem).
Portanto, cabendo mais de uma interpretação, deverá ser utilizada aquela que for a mais benéfica para o acusado, posto que o Direito Penal admite o uso da analogia in bonam partem, ou seja, interpretar o caso concreto em favor do réu.
Em relação à consumação do crime previsto no art. 28, depreende-se que estará configurada a infração na modalidade “adquirir” quando da simples obtenção da droga. Sobre esse tipo verbal, Abel Fernandes Gomes alerta que[2]:
Adquirir é obter a droga. Em regra, como anota GREGO FILHO, esta conduta é uma fase antecedente das demais. A aquisição se dá de forma instantânea. No caso em tela, dada a restrição dos núcleos desse tipo específico, a aquisição passa a ser qualquer modo de integração da coisa à órbita patrimonial do sujeito. Vale dizer, no caso de a aquisição se dar por meio oneroso, através de compra, a conduta será punida, simplesmente, pela configuração da ação de adquirir. (GOMES, A. F. et al, 2006, p. 09)
Dessa forma, a mera conduta do agente de integrar a droga ao seu próprio patrimônio, seja de forma gratuita ou onerosa, configura o tipo previsto no art. 28 da Lei Antidrogas.
Nesse contexto, a nova Lei Antidrogas trouxe, em sua sistemática, tratamento bastante peculiar ao usuário de drogas. Na realidade, a proposta do legislador foi, nitidamente, tratar o usuário de uma forma mais branda que os traficantes, não como um criminoso, mas sim como uma pessoa que necessita de ajuda. Nesse caso, quando a lei nova for mais benéfica para o infrator, deverá retroagir para beneficiá-lo quanto às condutas praticadas antes da sua entrada em vigor.
Assim, o art. 28 da nova Lei Antidrogas estabeleceu em seus três incisos as seguintes penas para os usuários de drogas: “I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.
Entretanto, o artigo em epígrafe suscitou uma importante indagação entre os juristas brasileiros: Será que o legislador deixou de considerar crime a conduta de portar drogas para uso próprio? Os juristas, então, passaram a se manifestar de acerca desses questionamentos, como será analisado a seguir.
Alguns juristas entendem que a conduta de portar drogas para consumo próprio não mais constitui crime. Outros, mais cautelosos, afirmam que continua a criminalização, com alteração apenas no modo de punir. Assim, após a entrada em vigor da nova Lei Antidrogas foi instaurada uma grande celeuma.
Os que defendem que houve a descriminalização sustentam que, de acordo com o art. 1º da Lei de Introdução do Código Penal, só se considera crime a infração penal a qual seja cominada pena de reclusão ou de detenção, juntamente com a multa. Assim sendo, os partidários da corrente da descriminalização afirmam que não mais existe o crime, porquanto o mencionado tipo penal não comporta mais as penas privativas de liberdade.
Todavia, grande parte dos criminalistas entende que houve apenas uma diminuição na carga punitiva, já que o art. 16 da Lei nº 6.368/76 previa pena privativa de liberdade para os usuários, ao passo que a Lei nº 11.343/06 proclamou três outras modalidades de pena, quais sejam: prestação de serviços à comunidade; advertência sobre os efeitos das drogas e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Esses juristas argumentam que se o art. 28, que trata dos usuários, se insere no capítulo III, que trata dos crimes e das penas, e como a única conduta estampada nesse capítulo é a de portar droga para uso próprio, significa que a intenção do legislador foi claramente continuar a considerar tal conduta como crime.
Acerca dessa polêmica, os autores Laira Correia de Andrade e Daniel Ribeiro Vaz[3], em esclarecedor artigo doutrinário publicado na Revista Justilex, assinalaram o entendimento de que a Lei nº 11.343/06 inovou no ordenamento jurídico brasileiro ao estabelecer sanções para uma conduta penal com essa interessante particularidade, ou seja, não há previsão de nenhuma pena de reclusão ou detenção para os usuários no artigo 28 da nova Lei Antidrogas, não obstante tal dispositivo esteja situado no capítulo que dispõe sobre os crimes. Ao discorrer sobre a discussão doutrinária acerca do artigo 28 da nova lei, os autores esclarecem que:
Nesse contexto, parte da doutrina defende que a resposta estatal ao autor da conduta descrita no art. 28 da citada lei não condiz com o Direito Penal, principalmente na sanção advertência sobre os efeitos das drogas; nesse caso, não estaríamos diante do Direito Penal, pois essas medidas alternativas não geram reincidência ou antecedentes criminais (Direito Sancionador) e muito menos de um Direito Administrativo, pois a advertência é aplicada por um juiz de Direito (Direito Judicial) e não por uma autoridade administrativa. Nascendo, portanto, um novo ramo de Direito, intermediário, ou seja, limítrofe entre Direito Penal e Direito Administrativo chamado de Direito Sancionador que já se encontrava seu aspecto embrionário nas medidas socioeducativas no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Os doutrinadores em epígrafe apresentam, ainda, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da questão da não descriminalização da conduta de portar drogas para uso próprio, conforme o teor do informativo nº 456, transcrito a seguir:
A Turma, resolvendo questão de ordem no sentido de que o art. 28 da Lei 11.343/2006 (Nova Lei de Tóxicos) não implicou abolitio criminis do delito de posse de drogas para consumo pessoal, então previsto no art. 16 da Lei 6.368/76, julgou prejudicado recurso extraordinário em que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro alegava a incompetência dos juizados especiais para processar e julgar conduta capitulada no art. 16 da Lei 6.368/76. Considerou-se que a conduta antes descrita neste artigo continua sendo crime sob a égide da lei nova, tendo ocorrido, isto sim, uma despenalização, cuja característica marcante seria a exclusão de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva da infração penal. Afastou-se, também, o entendimento de parte da doutrina de que o fato, agora, constituir-se-ia infração penal sui generis, pois esta posição acarretaria sérias conseqüências, tais como a impossibilidade de a conduta ser enquadrada como ato infracional, já que não seria crime nem contravenção penal, e a dificuldade na definição de seu regime jurídico. Ademais, rejeitou-se o argumento de que o art. 1º do DL 3.914/41 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravenções Penais) seria óbice a que a novel lei criasse crime sem a imposição de pena de reclusão ou de detenção, uma vez que esse dispositivo apenas estabelece critério para a distinção entre crime e contravenção, o que não impediria que lei ordinária superveniente adotasse outros requisitos gerais de diferenciação ou escolhesse para determinado delito pena diversa da privação ou restrição da liberdade. Aduziu-se, ainda, que, embora os termos da Nova Lei de Tóxicos não sejam inequívocos, não se poderia partir da premissa de mero equívoco na colocação das infrações relativas ao usuário em capítulo chamado "Dos Crimes e das Penas". Por outro lado, salientou-se a previsão, como regra geral, do rito processual estabelecido pela Lei 9.099/95. Por fim, tendo em conta que o art. 30 da Lei 11.343/2006 fixou em 2 anos o prazo de prescrição da pretensão punitiva e que já transcorrera tempo superior a esse período, sem qualquer causa interruptiva da prescrição, reconheceu-se a extinção da punibilidade do fato e, em conseqüência, concluiu-se pela perda de objeto do recurso extraordinário. RE 430105 QO/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 13.2.2007. (RE-430105) (STF, 1º Turma, RE 430105 QO/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 13.2.2007 in Informativo nº 456. Brasília, 2007).
Desse modo, a 1ª Turma da Suprema Corte, ao apreciar o RE 430105/QO/RJ, no dia 13 de fevereiro de 2007, tratou do assunto, posicionando-se no sentido de que continua a ser crime a conduta inserta no art. 28 da Lei nº 11.343/06.
Por essas razões, prevalece o entendimento de que continua a ser crime o uso de drogas, alterando-se apenas o modo de sancionar os usuários, com a diminuição da respectiva carga punitiva.
CONCLUSÃO
Diante do exposto, restou demonstrado que, apesar de a nova Lei Antidrogas sugerir um tratamento aparentemente mais benéfico aos usuários ocorre exatamente o inverso. Isso porque houve apenas uma diminuição na carga punitiva, mas, em contrapartida, as sanções e punições passaram a ser efetivamente aplicadas com o advento do novo diploma, diferentemente do que ocorria na vigência das leis anteriores.
No que tange especificamente ao tipo penal inserto no art. 28 da nova lei, ficou evidenciado que a maior parte dos modernos criminalistas brasileiros entende que continua sendo crime a conduta de portar drogas para uso próprio. Sustentam esses juristas que o legislador infraconstitucional propositadamente inseriu a referida conduta no capítulo relativo aos crimes, deixando clara a sua intenção de continuar considerando-a como crime.
REFERÊNCIAS
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ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação Penal Especial. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
ARRUDA, Samuel Miranda. Drogas – aspectos penais e processuais penais (Lei 11.343/2006). São Paulo: Método, 2007.
GOMES, Abel Fernandes, et al. Nova Lei Antidrogas – Teoria, Críticas e Comentários à Lei 11.343/2006. Rio de Janeiro: Impetus, 2006.
GOMES, Luiz Flávio, et al. Nova Lei de Drogas Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos. Prevenção – Repressão. 11ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1996.
LEAL, João José. Política criminal e a lei Nº 11.343/2006: Nova lei de drogas, novo conceito de substância causadora de dependência. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8957>. Acesso em: 02 novembro 2007.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte geral: parte especial. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
PEDRON, Leonardo. Não seria o § 1º do art 28 da nova lei de tóxicos (11.343/2006) inconstitucional?. Disponível em:<http://forum.jus.uol.com.br/discussao/8739/nao-seria-o-1-do-art-28-da-nova-lei-de-toxicos-113432006-inconstitucional/>. Acesso em: 05 setembro 2007.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Prática de Processo Penal. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.
SANTOS, Ana Paulo dos. Suspensão Condicional do Processo e a nova Lei dos Juizados Especiais Federais (Lei nº. 10.259/2001): Alteração dos requisitos legais para a concessão do “sursis antecipado”, Disponível: <http://www.jfse.gov.br/trabalhosjur/anapaulasantos_120603.html>. Acesso em: 07 novembro 2007.
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Jurisprudência. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(64340.NUME.%20OU%2064340.ACMS.)&base=baseAcordaos>. Acesso em: 03 setembro 2007.
[1] ARRUDA, Samuel Miranda. Drogas – aspectos penais e processuais penais (Lei 11.343/2006). São Paulo: Método, 2007.
[2] GOMES, Abel Fernandes, et al. Nova Lei Antidrogas – Teoria, Críticas e Comentários à Lei 11.343/2006. Rio de Janeiro: Impetus, 2006.
ANDRADE, Laira Correia de; VAZ, Daniel Ribeiro. O STF e o Porte de Drogas – uma discussão sobre a Lei nº 11.343/2006. 66ª ed. Brasília: Justilex Ltda, 2007.
Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe - especialidade Direito
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Marcos Matheus Dantas. O tratamento jurídico dispensado aos usuários de drogas pela atual sistemática penal (o uso continua sendo crime) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 set 2010, 07:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21484/o-tratamento-juridico-dispensado-aos-usuarios-de-drogas-pela-atual-sistematica-penal-o-uso-continua-sendo-crime. Acesso em: 22 nov 2024.
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