Instituto utilizado pelo Estado brasileiro como política de combate à criminalidade, em especial aos grupos organizados, a delação premiada é um benefício concedido ao acusado que colabora na investigação, confessando a autoria do delito e denunciando seus companheiros, com o fim de obter, ao final do processo, algumas vantagens na aplicação de sua pena, ou até mesmo a extinção da punibilidade.
Nas precisas palavras de Raphael Boldt,
A delação premiada é a possibilidade que tem o participante ou associado de ato criminoso de ter sua pena reduzida ou até mesmo extinta, mediante a denúncia de seus comparsas às autoridades, permitindo o desmantelamento do bando ou quadrilha, ou ainda facilitando a libertação do seqüestrado, possível no caso do crime de extorsão mediante seqüestro[1].
Presente no ordenamento jurídico brasileiro desde a época das Ordenações Filipinas, a delação premiada foi inserida no nosso direito em janeiro de 1963, permanecendo até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830, que a extinguiu, só retornando mais recentemente, mormente através de diversas leis esparsas, sob a justificativa de ser parte da política criminal do Estado.
Hoje, este instituto, que pode beneficiar o acusado com diminuição da pena de 1/3 a 2/3, cumprimento desta em regime semi-aberto, ou até mesmo sua extinção, e com o perdão judicial, está previsto em diplomas legislativos como: Código Penal (art. 159, § 4º), Lei de Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei nº 7.492/86, art. 25, §2º), Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90, art. 8º, parágrafo único), Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo (Lei nº 8.137/90, art. 16, parágrafo único), Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034/95, art. 6º), Lei de Lavagem de Capitais (Lei nº 9.613/98, arts. 1º e 5º), Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei nº 9.807/99, arts. 13 e 14), Lei Antitóxicos (Lei nº 11.343/2006, art. 41).
Ocorre que, não obstante venha ganhando a simpatia do legislador pátrio, a delação premiada e sua ampla adoção para os tipos penais em geral é tema que sempre gera discussões acaloradas e que tem despertado críticas, frise-se, sobremaneira pertinentes.
Com efeito, a começar pelo seu aspecto ético, impende destacar que o mecanismo da delação premiada traduz-se em incentivo legal à traição, ato moral e socialmente odioso.
Em verdade, por meio deste instituto, o acusado, patrocinado pelo Estado, é incentivado a trair seus comparsas e, por conta disso, acaba se favorecendo da sua própria torpeza, uma vez que, além de cometer o crime, se beneficia do fato de delatar seus companheiros.
Neste sentido, são os ensinamentos de Damásio de Jesus, senão vejamos:
(...) a polêmica em torno da "delação premiada", em razão de seu absurdo ético, nunca deixará de existir. Se, de um lado, representa importante mecanismo de combate à criminalidade organizada, de outro, traduz-se num incentivo legal à traição[2].
Assim, seria ao menos paradoxal a coexistência da delação premiada, que estimula a deslealdade, com a de vários institutos jurídicos presentes no nosso ordenamento em homenagem à confiança, de modo que, se o Direito é sistemático, há de ser coordenado logicamente, obedecendo a valores que conferem unidade ao todo.
Alie-se a isso o fato de que o incentivo à perfídia pode significar, ainda, um mal maior do que o próprio crime investigado, sobretudo com relação àqueles de menor lesividade, numa clara afronta ao princípio da proporcionalidade, de primordial importância ao Direito Penal.
Além do mais, insta observar que a aceitação irrestrita da delação é capaz de gerar testemunhos falsos, acusações inverídicas e negócios escusos, já que o interesse do delator é lucrar, nada mais.
Noutro giro, entendemos que a ampla adoção deste instituto para os tipos penais em geral expõe o reconhecimento da incapacidade do Estado frente às mais variadas formas de ações criminosas e demonstra a aceitação de sua ineficiência ao apurar ilícitos penais, notadamente os perpetrados por associações criminosas.
Ora, ao instigar a delação, o Estado se coloca numa posição de hipossuficiência, vez que assume a insuficiência da máquina investigativa, fazendo com que o acusado espere primeiro ouvir o que poderá lucrar com o fornecimento do seu testemunho, para só em seguida revelar as informações.
Não bastasse, torna-se imperioso ressaltar, ainda, que o instituto em testilha ofende os princípios da indisponibilidade e indivisibilidade da ação penal, porquanto, ao mesmo tempo em que a sua concessão representa uma renúncia estatal à parte da pena, que, como é cediço, é indisponível, impõe um tratamento diferenciado em relação aos acusados de um mesmo evento criminoso, beneficiando os que, valendo-se de sua própria torpeza, delata os seus comparsas.
Nesse passo, e tendo em vista os argumentos acima despendidos, forçoso concluir que não nos parece sensata a ampla adoção do instituto da delação premiada para os tipos penais em geral, pois, malgrado a sua eficácia no combate ao crime organizado, tão pernicioso à sociedade, tal expansão implicaria em evidente prejuízo, sobretudo à homogeneidade do Direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOLDT, Raphael. Delação premiada: o dilema ético. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 783, 25 ago. 2005. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2010.
JESUS, Damásio E. de. Estágio atual da "delação premiada" no Direito Penal brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 854, 4 nov. 2005. Disponível em: . Acesso em: 03 fev. 2010.
MALUF, Edison. Estágio atual da "delação premiada" no Direito Penal Brasileiro. Mundo Jurídico, 31 out. 2005. Disponível em: < http://www.mundojuridico.adv.br > . Acesso em: 23 fev. 2010.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005.
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