Para se compreender a localização do dolo e da culpa dentro do conceito analítico de crime, é necessário analisar a evolução da teoria do delito, desde o final do século XIX até a contemporaneidade.
No Brasil, até a década de setenta, predominou a teoria causal-naturalista do delito, idealizada por Von Liszt e Beling no final do século XIX e início do século XX, a qual dividia o crime em duas partes: uma objetiva, constituída pela tipicidade e pela antijuridicidade; e outra subjetiva, consubstanciada na culpabilidade.
Por esta teoria, a conduta é concebida como simples movimento corpóreo de fazer ou não fazer capaz de produzir alguma alteração no mundo exterior, sem dela fazer parte o dolo e a culpa. Já a culpabilidade é vista aqui como “o vínculo existente entre o agente e seu delito, que se dava ou pelo dolo ou pela culpa. Dolo e culpa faziam parte da culpabilidade”[1].
Passando pelo neokantismo de Mezger, que, entre 1900 a 1930, também concebia o dolo e a culpa como integrantes da culpabilidade, chegou-se à teoria finalista, idealizada por Hans Welzel no período compreendido entre 1939 a 1960, e até hoje adotada pelo Código Penal Brasileiro.
Segundo esta teoria, que promoveu uma inestimável revisão na seara penal, “o tipo deixou de ser concebido unicamente com elementos objetivos e externos da ação, passando a compreender também os elementos anímicos subjetivos do agente do fato punível. O exame do dolo e da culpa passa a integrar a análise típica” [2].
O finalismo, pois, desloca o dolo e a culpa para o fato típico, retirando-os de sua tradicional localização, a culpabilidade, com o que a finalidade é levada ao centro do injusto. Como conseqüência, a culpabilidade se transformou em puro juízo de censura, pois nela concentram-se somente aquelas circunstâncias que condicionam a reprovabilidade da conduta contrária ao Direito.
Eliminados os requisitos subjetivos (dolo e culpa) que compunham a culpabilidade, nela somente restaram requisitos de índole normativa, que devem ser aferidos pelo juiz em cada caso concreto, quais sejam: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.
Na corrente finalista, pois, se inclui o conhecimento da proibição na culpabilidade, de modo que o dolo é entendido somente como dolo natural (puramente psicológico), e não como no causalismo, que era considerado como o dolus malus dos romanos, constituído de vontade, previsão e conhecimento da realização de uma conduta proibida.
Por último, eis que surge a teoria constitucionalista do delito, idealizada por Luiz Flávio Gomes em meados de 2001 e fundada sobretudo nos funcionalismos de Roxin e Zaffaroni, segundo a qual o dolo e a culpa permanecem como partes integrantes do fato típico, porém valorados em momentos distintos deste, senão vejamos:
O dolo está coligado com a conduta, não há dúvida, mas não é valorado no âmbito da conduta (como pretendia o finalismo), sim, na última etapa (no momento subjetivo) do fato formal e materialmente típico. Já a culpa é valorada no momento normativo ou material (segunda etapa) do fato formal e materialmente típico. A conduta, de outro, só é penalmente relevante quando cria ou incrementa riscos proibidos (mas isso é valorado não no âmbito da conduta, sim, no da tipicidade material) [3].
Para esta teoria, o crime é composto de tipicidade (formal e material), da antijuridicidade e da punibilidade. A culpabilidade, por seu turno, aqui, ao contrário do que defendiam as teorias anteriores, é mero pressuposto de aplicação da pena, na medida em que retrata o requisito da imputação pessoal, não fazendo parte, portanto, do conceito de injusto penal.
Pois bem. Prestados os devidos esclarecimentos de índole mormente histórica, passemos ao deslinde do tema em questão.
É de bom alvitre salientar, desde logo, que, a despeito da autoridade dos emitentes de opiniões contrárias, filiamo-nos àquela que concebe o crime sob acepção tripartida, ou seja, como composto de fato típico, antijurídico e culpável.
Com efeito, não nos convence o entendimento dominante na doutrina brasileira segundo o qual a culpabilidade, no atual estágio, deve ser tratada como um pressuposto da pena, e não mais como integrante da teoria do delito. Ora, na medida em que a sanção penal é consequência jurídica do crime, este, com todos os seus elementos, é pressuposto daquela. Assim, não somente a culpabilidade, mas igualmente a tipicidade e a antijuridicidade são pressupostos da pena, que é sua consequência.
Mas não é a qualquer teoria tripartida que nos referimos, mas àquela que concebe o dolo e a culpa como integrantes da conduta, e, portanto, do fato típico, e não da culpabilidade, como pretendiam os causalistas. Esta, como bem frisaram os finalistas, passa a ter uma acepção puramente normativa, despida de qualquer resquício subjetivo.
E esta regra vale, inclusive, quando da análise da potencial consciência da ilicitude, que, ao contrário do que pretendem alguns, não é mais elemento do dolo, mas da culpabilidade, de modo que não precisa mais ser atual, bastando que seja potencial, independentemente de determinação legal. A atualidade ou a simples possibilidade de consciência da ilicitude servirão apenas para definir o grau de censura, a ser analisado na dosagem da pena, sem qualquer influência na configuração da infração penal.
Em verdade, segundo a teoria finalista, a qual filiamo-nos, o dolo, no seu aspecto puramente psicológico - dolo natural – assim como a culpa é transferido para a conduta, passando a fazer parte do tipo penal, enquanto que a consciência da ilicitude passa a fazer parte da culpabilidade, num puro juízo de valor.
Ora, constitui pressuposto do dolo natural somente a consciência dos elementos integradores do tipo penal, ficando fora dele a consciência da ilicitude que, como já afirmamos, está deslocada para o interior da culpabilidade.
Nesse viés, e a título de conclusão, temos que, nos moldes do que defende a teoria finalista da ação, dolo e culpa são elementos da conduta e, portanto, do fato típico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GALVÃO, Fernando. Tipicidade material e imputação objetiva. In: Direito penal: parte geral. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. (Cap. 5 e 6) material da 5ª aula da Disciplina Princípios Constitucionais Penais e Teoria Constitucionalista do Delito, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais – Anhanguera-UNIDERP|REDE LFG – IPAN.
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da responsabilidade pessoal. Material da 2ª aula da Disciplina Culpabilidade e responsabilidade pessoal do agente, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais – Anhanguera-UNIDERP|REDE LFG – IPAN.
GOMES, Luiz Flávio. Teorias Causalista, Finalista e Constitucionalista do Delito (Síntese das distinções). Material da 3ª aula da Disciplina Princípios Constitucionais Penais e Teoria Constitucionalista do Delito, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais – Anhanguera-UNIDERP|REDE LFG – IPAN.
GOMES, Luiz Flávio. Tipo, tipicidade material e tipicidade conglobante. Direito penal: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 007. v.2. Material da 3ª aula da Disciplina Princípios Constitucionais Penais e Teoria Constitucionalista do Delito, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais – Anhanguera-UNIDERP|REDE LFG – IPAN.
[1] GOMES, Luiz Flávio. Princípio da responsabilidade pessoal. Material da 2ª aula da Disciplina Culpabilidade e responsabilidade pessoal do agente, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais – Anhanguera-UNIDERP|REDE LFG – IPAN, p. 9.
[2] GALVÃO, Fernando. Tipicidade material e imputação objetiva. In: Direito penal: parte geral. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. (Cap. 5 e 6) material da 5ª aula da Disciplina Princípios Constitucionais Penais e Teoria Constitucionalista do Delito, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais – Anhanguera-UNIDERP|REDE LFG – IPAN, p. 2.
[3] GOMES, Luiz Flávio. Teorias Causalista, Finalista e Constitucionalista do Delito (Síntese das distinções). Material da 3ª aula da da Disciplina Princípios Constitucionais Penais e Teoria Constitucionalista do Delito, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais – Anhanguera-UNIDERP|REDE LFG – IPAN, p. 2.
Técnico do Ministério Público do Estado de Sergipe e Graduando do Curso de Direito pela FANESE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Milton Barreto Freitas. O dolo e a culpa são componentes da tipicidade, da culpabilidade ou de ambas? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 set 2010, 09:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21607/o-dolo-e-a-culpa-sao-componentes-da-tipicidade-da-culpabilidade-ou-de-ambas. Acesso em: 22 nov 2024.
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