Tema que tem sido objeto de amplo debate na doutrina e na jurisprudência pátrias diz respeito à possibilidade ou não de aplicação do princípio da insignificância aos crimes que tutelam os denominados bens jurídicos supra-individuais. É que, em que pese o aludido princípio de ter sido incorporado ao Direito Penal pelos estudos de Claus Roxin na década de 70 do século passado, a sua aplicação prática ainda não se mostra de forma clara, objetiva e irrestrita na seara jurisprudencial.
A análise dessa questão demanda, inicialmente, a apreciação dos conceitos de princípio da insignificância e de bens jurídicos metaindividuais. Examinando o princípio conhecido como da “criminalidade de bagatela”, percebe-se que este funciona como causa de exclusão de tipicidade, desempenhando uma interpretação restritiva do tipo penal.
Tal princípio arrimou-se, em seu nascedouro, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama a intervenção mínima do Poder Público em matéria penal, em razão dos próprios objetivos por ele visados. O Direito Penal não se ocupa de todos aqueles comportamentos antijurídicos que decorrem das relações sociais, mas tão somente daqueles mais molestadores e lesivos para os bens jurídicos.
Consoante expõe Cleber Masson, são requisitos de ordem objetiva para a aplicação deste princípio, segundo entendimento do STF: a mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica. Aliados a esses, são exigidos ainda, na esteira da orientação do STJ, requisitos subjetivos, como a importância do objeto material para a vítima, levando-se em consideração a sua condição econômica, o valor sentimental do bem, como também as circunstâncias e o resultado do crime.
Tem-se que, com a caracterização desse princípio, incide unicamente a tipicidade formal (adequação entre o fato praticado pelo agente e a lei penal incriminadora), não ocorrendo a tipicidade material, ou seja, a ocorrência do pressuposto básico da incidência da lei penal, a lesão significativa a bens jurídicos relevantes da sociedade.
Em relação aos bens jurídicos supra-individuais, vislumbramos que estes são uma espécie de bem jurídico que, ultrapassando o interesse individual, abrangem interesses de grupos determinados, determináveis ou indeterminados de pessoas (bens jurídicos coletivos e difusos, respectivamente). São aqueles relacionados com o sistema econômico, tributário, financeiro, consumerista e o meio-ambiente, haja vista que sua violação pode gerar reflexos em grupos sociais ou em toda sociedade, a depender da situação.
Voltando à questão da aplicabilidade do princípio da insignificância quando se trata de bens jurídicos supra-individuais em geral, e cotejando os conceitos expostos supra, vislumbramos que não existe empecilho, ao menos a priori, que obste a aplicação do aludido princípio aos crimes que tutelam bens jurídicos metaindividuais.
O fato de o crime proteger abstratamente um bem considerado importante para um grupo social ou para a coletividade não implica na automática não incidência do princípio a essas espécies de crime, se presentes os requisitos autorizadores. Diante da situação real, pode-se tranquilamente verificar que, ante o princípio da insignificância, mínimas ofensas aos bens jurídicos não justificam a incidência do Direito Penal.
Assim, entendemos que o aludido princípio deve ter aplicação ampla a qualquer espécie de delito que com ele seja compatível, e não apenas aos crimes considerados individuais.
A análise do cabimento do princípio da insignificância não deve ser feita apenas considerando o plano abstrato, mas sim ser realizada em cada caso concreto, de acordo com as suas especificidades e levando-se em consideração, na medida do possível, os requisitos fixados pelo STF e pelo STJ, com a cautela de que a utilização do princípio não pode vir a ser uma porta aberta à impunidade.
Dessa forma, não obstante parcela da doutrina ainda ser relutante, vislumbramos que os tribunais superiores pátrios têm aceitado, com acerto, a incidência do princípio da insignificância aos crimes de descaminho (CP, art. 334) e contra ordem tributária, quando o valor do tributo devido for inferior ao mínimo executável pela Fazenda Pública.
No crime de apropriação indébita previdenciária (CP, art. 168-A), cuja conduta criminosa recai sobre bem jurídico metaindividual “previdência social”, também já decidiu o STJ favoravelmente ao reconhecimento da atipicidade da conduta, em virtude da aplicação do referido princípio.
Percebe-se, portanto, que a jurisprudência tem caminhado para a aplicação do princípio da insignificância em todos os tipos de delito, inclusive nos que tutelam bens jurídicos metaindividuais, desde que haja compatibilidade.
Há de se constatar que no atual panorama jurídico-penal, pautado nos princípios constitucionais garantistas, não se pode conceber a incriminação de uma conduta não lesiva ou minimamente lesiva a um bem jurídico, ainda que esse bem jurídico tenha caráter supra-individual.
MASSON, Cleber Rogério. Direito penal esquematizado – parte geral. 2. ed. São Paulo: Método, 2009. p. 23.
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