A validade da investigação criminal direta do Ministério Público no Processo Penal vem sendo alvo de calorosas discussões na seara jurídica. Alguns doutrinadores são adeptos a possibilidade do Parquet avocar a investigação em processos penais, enquanto outros defendem que tal possibilidade traria imparcialidade para o órgão acusatório, prejudicando, sobremaneira, a parte mais débil do processo (o acusado).
Para analisarmos se a presidência da investigação criminal pelo Ministério Público é válida, é preciso verificar se há compatibilidade entre a atuação do órgão na fase pré-processual e o sistema processual adotado pelo ordenamento jurídico pátrio na atualidade, bem como os princípios que o regem.
A Constituição Federal de 1988 adotou, embora não expressamente, o Sistema Acusatório, conferindo aos “atores” processuais funções delimitadas. Conforme expõe Marcellus Polastri Lima, “o sistema processual pátrio é o acusatório, mormente após a Constituição de 1988, com a acusação, em regra, a cargo do Ministério Público, prevalecendo o princípio do contraditório”.
A característica precípua desse sistema processual é a separação das funções de acusar, defender e julgar, atribuídas a personagens distintos. O convencimento do juiz é extraído das provas produzidas pela acusação e defesa, não cabendo a ele, por si mesmo, buscar os elementos de convicção para proferir a sentença de mérito.
No que concerne a função do Ministério Público em tal sistema, vislumbramos que sua atuação também é delimitada. Como titular exclusivo da ação penal pública, o Parquet deve ter suas atribuições previstas em lei, atuando com imparcialidade e autonomia em relação aos poderes estatais.
Importa ressaltar também que o modelo acusatório de instrução processual penal busca garantir ao indivíduo que a perda do seu direito de liberdade seja feita em consonância com os direitos e garantias constitucionalmente consagrados, em especial os princípios constitucionais que regem o processo penal.
É neste ponto que os procedimentos investigatórios criminais presididos pelo Ministério Público se mostrariam mais nocivos e, portanto, inválidos, eis que violariam importantes princípios, como o do devido processo legal, da igualdade processual (paridade de armas) e do contraditório, todos amparados pelo Sistema Acusatório.
Assim, verificamos que a possibilidade de o Ministério Publico instaurar e presidir investigações ofende de diversas formas a garantia do devido processo legal, haja vista que o órgão estaria acumulando uma dupla função: coletar as provas destinadas à formação da opini delicti e desencadear a ação penal.
Ora, essa sobreposição de funções não é admitida pelo Sistema Acusatório. Não se considera razoável que o órgão destinado pela Constituição às investigações criminais (a polícia judiciária) tenha sua função precípua usurpada, quando justamente a separação de atribuições garante a imparcialidade no processo penal (um dos pressupostos do devido processo legal). Consoante defende Fragoso “trata-se de um acúmulo perigoso de atribuições, que, sobre ser ilegal e inconstitucional, é absolutamente inconveniente, pois dá lugar, pelo excesso de poder, a abusos intoleráveis”.
Ademais, outro empecilho à capacidade investigatória do Ministério Público é o nítido ferimento ao princípio da igualdade jurídica entre as partes, especialmente no que concerne a paridade de armas no decorrer da instrução criminal, já que ao órgão seria conferido o poder de investigar e acusar, cumulativamente.
Se a acusação é encargo do Ministério Público, logo, esse é parte no processo e não tem o poder de extrapolar os limites de atuação conferidos à defesa. Tourinho Filho diz que “às partes processuais, representando interesses opostos (Acusação e Defesa), deve ser assegurada absoluta paridade, pois do contrário não seria possível uma genuína e sã contraposição entre elas”.
A igualdade jurídica liga-se ainda ao princípio do contraditório, que é a garantia que o acusado tem de tomar ciências de todos os atos do processo, bem como de poder produzir suas provas e sustentar suas razões. Entende-se que a capacidade investigativa pré-processual do Ministério Público também ofenderia este princípio haja vista que travaria o direito do acusado de contrariar as provas carreadas aos autos.
Se mostra também arriscado o fato de o representante do órgão ministerial embasar sua denúncia nas provas coletadas por ele mesmo, na fase inquisitorial. Quem garante que ele não tenderá a direcionar a investigação para um ou outro lado, coletando provas que favoreçam ou prejudiquem o réu?
Pelas razões expostas, e considerando ainda que a Constituição Federal em nenhum momento legitimou o Parquet a presidir investigações criminais ou realizar de forma direta diligências investigatórias, entendo como não sendo válido que o Ministério Público extrapole sua competência, acumulando as funções de investigar e acusar, em total afronta aos direitos e garantias fundamentais consagrados constitucionalmente, notadamente, aos direitos assegurados ao réu durante a persecutio criminis.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Investigação pelo Ministério Público. Argumentos contrários e a favor. A síntese possível e necessária. Rio de Janeiro, 22 jan. 2004. Disponível em: <http://www.mp.rs.gov.br/hmpage/homepage2nsf/pages/spi_investigadireta2>. Acesso em 05 mai. 2009.
CASTRO, Bruna Azevedo. A atuação do Ministério Público nas investigações criminais à luz dos princípios constitucionais relacionados. Disponível em: <http://www2.uel.br/revistas/direitopub/pdfs/vol_02/ANO1_VOL_2_01.pdf>. Acesso em: 5 mai. 2009.
LIMA, Marcellus Polastri Lima. Ministério Público e Persecução Criminal. 4º Ed. rev, atual. e acresc. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 10.ª ed. São Paulo: Editora Atlas. 2000.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6º Edição. São Paulo: Editora RT, 2007.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 9º Ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007.
Há, entretanto, quem defenda que o sistema processual penal brasileiro é o misto, também conhecido como acusatório impróprio, o qual caracteriza-se pela fusão de aspectos acusatórios e inquisitivos.
Precisa estar logado para fazer comentários.