É comum ocorrer situações em que uma única ação, ainda que chamada, doutrinariamente, de complexa, aparentemente, se enquadra em dois ou mais tipos penais incriminadores, mas na realidade, só se enquadra em um, por só afetar um bem jurídico protegido penalmente. É o chamado concurso aparente de normas penais, tema bastante controverso, visto não ser legalmente regulamentado, sendo assunto que, doutrinária e jurisprudencialmente, foi construído ao longo dos tempos.
A doutrina construiu, basicamente, três princípios para tratar do concurso aparente de normas penais: o princípio da especialidade, o princípio da subsidiariedade e o princípio da consunção. E é sobre este último que se fará uma breve exposição.
Segundo o princípio da consunção ou da absorção, também chamado de princípio da consumação, a norma consunta é absorvida pela norma consuntiva, porque a norma consunta ou é fase de passagem ou é meio necessário para o cometimento da norma consuntiva, que é a norma fim. Tanto o princípio do ante-fato impunível, quanto do pós-fato impunível são resolvidos pelo princípio da consunção.
No entender de Rogério Grecco, pode-se falar em princípio da consunção nas seguintes hipóteses: i) quando um crime é meio necessário ou normal fase de preparação ou de execução de outro crime; ii) nos casos de antefato ou pós-fato impunível.
Fazendo-se uma análise da primeira hipótese, tenha-se em mente que os fatos, segundo Hungria, 'não se acham em relação de species a genus, mas de minus a plus, de parte a todo, de meio a fim'. Assim, a consumação absorve a tentativa e esta absorve o incriminado ato preparatório; o crime de lesão absorve o correspondente crime de perigo; o homicídio absorve a lesão corporal, etc.
Segundo Grecco, antefato impunível seria a situação antecedente praticada pelo agente a fim de conseguir levar a efeito o crime por ele pretendido inicialmente e que, sem aquele, não seria possível.
Um exemplo claro se dá entre violação de domicílio e furto praticado sobre objeto que esteja dentro de uma residência habitada. A violação de domicílio é crime consunto e o furto é crime consuntivo, absorve a violação, ante-fato impunível.
Outro exemplo, muito bem explicitado por Grecco, é entre o delito de falso e o estelionato. De acordo com o ilustre Doutrinador, para se praticar um estelionato com cheque que o agente encontrou na rua, é preciso que ele cometa um delito de falso, ou seja, é preciso que o agente o preencha e o assine. O preenchimento e a falsa assinatura aposta ao cheque são considerados antefato impuníveis, necessários para que o agente cometa o delito-fim, isto é, o estelionato.
Nesse sentido o posicionamento do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, que editou a Súmula nº 17 com a seguinte redação: 'Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido'.
Como se vê, o entendimento sumulado somente se mostra pertinente se não existir possibilidade de o falsum ser utilizado em outras ações criminosas.
Assim, o crime de estelionato só absorve o falso quando as condutas não compreendem atos isolados com finalidade especifica e exclusiva.
Nessa quadra, tem-se que, em não exaurida a potencialidade lesiva do falso no estelionato praticado, a espécie reclama a incidência do disposto no artigo 69 do Código Penal, da absorção a que se refere o Enunciado nº 17 da Súmula do STJ.
Nesse sentido os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça:
"RECURSO ESPECIAL. FALSO E ESTELIONATO. SÚMULA 17 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
1. O recurso especial fundamentado no permissivo constitucional da alínea "c" é cabível quando houver divergência jurisprudencial na exegese de dispositivo de lei federal, não consubstanciando motivação hábil, ao conhecimento do apelo extremo, a discussão acerca da correta interpretação de enunciado de súmula.
2. À luz do enunciado nº 17 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça, persistindo a potencialidade lesiva do falso, não é o delito absorvido pelo crime de estelionato.
3. 'A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.' (Súmula do STJ, Enunciado nº 7).
4. Recurso não conhecido." (REsp nº 119.149/SP, Relator Ministro Hamilton Carvalhido, in DJ 3/9/2001).
"PENAL. HABEAS CORPUS. ARTS. 171, § 3º C/C 14, II; 299 DO CÓDIGO PENAL. CARTEIRA DE TRABALHO E PREVIDÊNCIA SOCIAL. POTENCIALIDADE LESIVA.CRIME IMPOSSÍVEL. INOCORRÊNCIA.
À luz do enunciado nº 17 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça, persistindo a potencialidade lesiva, não é o falso absorvido pelo crime de estelionato. Writ denegado. " (HC nº 45.900/SC, Relator Ministro Felix Fischer, in DJ 28/11/2005).
Quanto ao pós-fato impunível, ele pode ser considerado um exaurimento do crime principal praticado pelo agente e, portanto, por ele não pode ser punido. Na lição de Fragoso:
... os fatos posteriores que significam um aproveitamento e por isso ocorrem regularmente depois do fato anterior são por este consumidos . É o que ocorre nos crimes de intenção, em que aparece especial fim de agir. A venda pelo ladrão de coisa furtada como própria não constitui estelionato. Se o agente falsifica moeda e depois a introduz em circulação pratica apenas o crime de moeda falsa (art. 289, CP). (FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, p. 360).
Um exemplo hialino é o furto de veículo e o dano subseqüente com a destruição do carro para a venda das peças. O pós-fato impunível demanda que o crime subseqüente, posterior, seja o proveito do crime anterior, uma mera vantagem sobre o crime anterior, que é o que ocorre com o furto de veículo e o dano com a sua destruição, porque, para o ladrão do veículo automotor levar vantagem em relação ao furto, uma das formas que a experiência ordinária indica é a destruição do carro e a venda das peças. O dano é pós-fato impunível do furto.
Postas as considerações supra, é imperioso destacar que o princípio da consunção só se aplica quando verificado que a conduta a ser absorvida constitui-se em ante-fato ou pós-fato impunível do crime que a absorverá.
REFERÊNCIA BIBLIOGRAFICA:
GRECCO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2007.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Pena. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. 1, t. I.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1993.
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