RESUMO
O Brasil incorporou em seu direito interno compromissos internacionais visando à erradicação de quaisquer formas de violência doméstica e familiar contra a mulher. Há previsão constitucional, prevista no art. 226, § 8.° que assegura proteção à família brasileira. O Brasil teve contra si uma recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para que adotasse medidas visando o combate à violência de gênero O legislador pátrio elaborou a Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, numa espécie de ação afirmativa, adotando-se o direito penal para solucionar a problemática da violência contra a mulher. Impede-se a aplicação dos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, inclusive a representação nos crimes de lesão corporal leve. Numa visão mitificadora, positivista e dogmática, tal legislação viria a solucionar o problema de violência doméstica no Brasil, sendo aceita num primeiro momento em virtude de sua potencial legitimidade. Devido à polêmica envolvida em sua aplicação, surge a teoria crítica do direito, importante avaliar se a sociedade considera a lei legítima.
Palavras-chave: Lei Maria da Penha; positivismo; teoria crítica do direito
ABSTRACT
Brazil has incorporated into its domestic law the international commitments towards the eradication of all forms of domestic violence against women. There is constitutional provision provided for in art. 226, § 8. ° which ensures protection of the family in Brazil. Brazil played against him a recommendation from the Commission on Human Rights to adopt measures to combat gender violence The legislature established the paternal Law 11 340 of August 7, 2006, in a kind of affirmative action, adopting the right criminal law to solve the problem of violence against women. Impedes the implementation of decriminalized Institutes of Law 9.099/95, including representation in personal injury crimes lightly. A vision mythologized, positivistic and dogmatic, this legislation would solve the problem of domestic violence in Brazil, being accepted at first because of its potential legitimacy. Due to the controversy involved in its implementation, there is the critical theory of law, important to assess whether the law society considers legitimate.
Key-words: Maria da Penha law, positivism, critical theory of law
1 INTRODUÇÃO
A proposta do presente trabalho é identificar a origem da Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006 e como se dá sua utilização sob a perspectiva da sociedade hodierna, analisando se a lei da forma posta atende aos fins para os quais foi criada, qual seja, atender efetivamente as diretivas preconizadas nas convenções e tratados internacionais ratificados pelo Brasil, bem como na Constituição da República de 1988, ou serviu para, num determinado momento histórico, tornar-se um aparelho de dominação estatal, sob o pálio de proporcionar a erradicação da violência familiar e doméstica de gênero.
Alguns aspectos de sua constitucionalidade serão abordados, tendo em vista a sua natureza de hard case, objeto de discussão em ação declaratória de constitucionalidade, pendente de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal.
No entanto, há limitação da abordagem aos aspectos invectivados na ação direta de constitucionalidade e a opção legislativa de enfrentamento da violência de gênero, tendo em vista a vastidão do tema e a impossibilidade de tratá-lo de forma exaustiva, devido à sua polêmica, correndo-se o risco de se chegar a uma análise apenas superficial da matéria.
Por isso, o foco será a investigação acerca da influência da lei na liberdade de escolha da mulher, principalmente no que diz respeito à necessidade de representação no s crimes de lesão corporal leve praticados no âmbito familiar e doméstico, desde uma interpretação positivista até a interpretação sob o olhar da teoria crítica do direito.
A pesquisa tem seu início na trajetória do feminino, tendo no primeiro capítulo, em sinopse, uma rápida incursão na afirmação histórica do reconhecimento da mulher como sujeito de direitos. Apontam-se documentos de proteção à mulher, visando à erradicação da violência e da discriminação e o conteúdo dos compromissos assumidos pelo Brasil a partir da ratificação dos mesmos. O paradigmático caso da biomédica cearense Maria da Penha nmotivou a decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos que recomendou ao Brasil que adotasse providências no sentido de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher o que foi um dos motivos para a edição da Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006.
Em seguida, cuida-se especificamente da ação declaratória de constitucionalidade n.º 19-3/610, proposta pela Presidência da República por intermédio da Advocacia-Geral da União perante o Supremo Tribunal Federal, comentando as inovações trazidas pela Lei Maria da Penha, objeto do citado hard case, circunscrevendo-se à análise da possibilidade da aplicação dos dispositivos despenalizadores da Lei 9.099/95 . Aborda-se recente decisão do Superior Tribunal de Justiça em relação à necessidade de representação para a instauração da ação penal, bem como quanto à aplicação dos demais dispositivos da Lei 9.099/95.
Com base nisso, faz-se uma análise do artigo 41, da Lei 11.340/2006, sua perspectiva social em cotejo com os interesses da atuação da esfera pública numa relação de dominação e imposição da ideologia do momento gerando a alienação e o questionamento do seu conteúdo numa leitura mais consentânea com a realidade social. Com isso se quer desmistificar a lei posta, deixando de lado as amarras dogmáticas partindo para uma perspectiva que conduza a aplicação de um direito novo, sob a égide da teoria crítica do direito.
2 BREVE TRAJETÓRIA DO FEMININO
Há muito tempo as mulheres são submetidas a tratamento diferenciado, reconhecendo-se aos indivíduos do gênero masculino maior gama de direitos e prerrogativas, sob a falsa crença de que seriam ínsitos à sua própria natureza física e intelectual, conferindo-lhe superioridade em relação à mulher.
Na antiga Grécia, por exemplo, as mulheres deveriam cuidar do lar, monitorar o crescimento de seus filhos e devotar integral fidelidade ao marido, exceto daquelas que viviam em Esparta, pois a grande maioria se transformava em guerreiras[1].
Como herdeiros de parte da tradição grega, os romanos também definiram sua estrutura familiar com base no paternalismo. Era comum entre os romanos que irmãos se mantivessem vivendo debaixo de um mesmo teto ou numa mesma propriedade até a morte de seu pai e que, em virtude disso, as famílias de irmãos se considerassem como parte de uma única e grandiosa unidade familiar[2].
A civilização judaico-cristã sempre ressaltou a inferioridade biológica e intelectual da mulher.
Durante o denominado “século das trevas”, as mulheres que manifestavam certa resistência à situação de subserviência eram tidas por bruxas.
Galeano apud Hermann (2007, p. 53), menciona que
[...] a Igreja Católica medieval perseguia as mulheres, especialmente as que se atreveram a pensar por conta própria [...] El martillo de las brujas, manual da Inquisição escrito em 1546, dedicou todo o seu texto à demonstração da inferioridade biológica das mulheres e à justificação da necessidade de serem castigadas.
Até mesmo a ciência discriminou a mulher. Segundo ensina Gustave Le Bom apud Hermann “[...] um dos pais da psicologia social, afirmou que uma mulher inteligente é algo tão raro quanto um gorila de duas cabeças [...] Darwin definia as virtudes das mulheres como características das raças inferiores” (2007, p. 27).
Atualmente há um cenário nacional e internacional positivo no que diz respeito à participação das mulheres na política, tendo em vista que esta sempre ocupou um papel secundário na política.
O artigo 10, § 3º, da Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997, dispõe, in verbis:
Art. 10.
§ 3. Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo.
No Brasil, segundo levantamento publicado na FOLHAONLINE, em nenhum Estado do país as mulheres que tentam chegar às prefeituras representam os 30% das candidaturas estipuladas por lei. Também em nenhum Estado atingem o índice na luta por vagas nas Câmaras (REIS, et al., 2.010). Enquanto as mulheres representam mais de 50% do eleitorado, menos de 10% conseguem ser eleitas. Compilando-se os dados estatísticos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) constata-se que, nas eleições para vereadores de outubro de 2008, dentre 330.630 candidatos que concorreram à eleição, apenas 72.476 eram mulheres, sendo que somente 6.496 delas foram eleitas, enquanto que os homens obtiveram um total de 45.397 eleitos. Dos 15.142 candidatos que concorreram à prefeituras, 1.670 eram mulheres. Foram eleitas 502 prefeitas e 5.023 prefeitos.[3] Em 2006, somente 03, dentre os 27 governadores eleitos foram mulheres (REIS, et al., 2.010) [4]
Em nível mundial, notoriamente também se verifica um cenário de marginalização onde poucos parlamentares e chefes de Estado ou de Governo são mulheres.
Superar a desigualdade entre homens e mulheres é lutar por mais justiça social em todo o mundo.
2.1 A mulher e alguns marcos significativos
A dignidade da pessoa humana é reconhecida como um valor supremo de todos os homens desde o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 10/12/1948.
Somente décadas mais tarde é que declarações de direitos especificamente dirigidas às mulheres foram elaboradas.
Na Primeira Conferência Mundial sobre a Mulher[5], no ano de 1979, foi aprovada a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, promulgada no Brasil pelo Decreto 4.377/2002. Tem como objetivos principais eliminar a discriminação e assegurar a igualdade, no que tange ao gênero.
Neste diapasão a Constituição da República de 1988, estabeleceu várias medidas de reequilíbrio como, por exemplo, o estatuído no inciso I, do artigo 5.º: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações nos termos desta Constituição”.
A Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, denominada “Convenção do Belém do Pará”, foi realizada em 1994, promulgada no Brasil pelo Decreto 1.973/96, cuidando particularmente da violência.
Importante marco internacional foi a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), em 22 de novembro de 1969. O Brasil aderiu em 25 de setembro de 1992, com reservas ao art. 45, 1.º e 61, 1º., que tratam da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, prevista no capítulo VIII. A convenção foi promulgada no Brasil pelo Decreto n.º 678, de 1992.
A Corte foi criada para julgar casos de violações de direitos humanos. O Brasil somente reconheceu a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana com a promulgação do Decreto Legislativo n.º 89 de dezembro de 1998. Mesmo assim, somente submeteu-se a competência obrigatória por intermédio do Decreto 4.463 de 11-11-2002.
2.2 A mulher e os direitos fundamentais na Constituição da República de 1988
O artigo 226, no capítulo VII, da Constituição da República, sob o título “Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso”, prevê em seu parágrafo 8.º, in verbis:
Art. 226...................................
Parágrafo 8.º. O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Tal dispositivo constitucional combinado com o que disciplina a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, são, em tese, as regras fundantes da edição da Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006.
O artigo 2.º, da Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, estabelece que [...] Toda a mulher “[...] goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”.
No Brasil, a Constituição da República estabelece que homens e mulheres sejam iguais em direitos e obrigações. É expressão que encerra a noção de igualdade perante a lei, a chamada igualdade formal.
O comando contido no artigo 5.°, § 1.°, da Constituição da República, bem como as regras estatuídas nos §§ 2.º e 3.º, do artigo 2.º trazem ínsitas a obrigatoriedade do respeito à igualdade substancial.
A Lei 11.340/2006 visa constituir-se em instrumento legal para a efetivação desses ideais e chega a enunciar em seu artigo 3.°, que serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício de direitos à vida, à segurança, à saúde e outros direitos fundamentais. Ora, não somente a mulher, mas todos os brasileiros têm assegurados os direitos elencados na norma sob comento, até porque a própria Constituição da República já os estabelece.
Outrossim, um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é a promoção do bem de todos sem preconceitos de origem, cor, raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação[6].
A indigitada Lei, igualmente, finca suas raízes no § 8.º, do artigo 226 da Constituição da República.
A família é o agrupamento social primário mais importante, principalmente no que concerne à formação integral dos filhos, influenciando profundamente o comportamento humano verificado na sociedade.
Em relação especificamente ao tema, Silva (2006, p. 853) comenta
[...] aqui há uma especificação, quando o texto diz que o “Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram”. Vale dizer: não é à entidade familiar em si, que o Estado prestará assistência, mas ao marido ou à mulher, ou aos filhos, segundo as necessidades de cada um, até mesmo em contraposição a outros membros. Grifei.
Mais à frente arremata
[...] É sabido que a mulher, especialmente, é vítima de violência doméstica praticada pelo homem; mas os filhos também são vítimas de violência de ambos os pais, em nível que ultrapassa de muito as regras da simples correção educacional paterna ou materna. Em qualquer desses casos é dever do Estado intervir para fazer cessar a violência e punir o responsável por sua prática. Mais uma vez é preciso dizer que a expressão “assistência à família”, deve ser tomada no sentido de “assistência à entidade familiar”, abrangendo, portanto, a entidade familiar biparental como a monoparental e a união estável. (SILVA, 2006, p. 853)
O legislador brasileiro não disciplinou todas as situações de violência ocorridas no seio doméstico. Impôs normas penais de aplicação direta e imediata, com base no gênero, levando-se em conta apenas a conformação biológica do indivíduo. Outrossim, estabeleceu normas de repetição à Constituição da República, reconhecendo direitos e garantias já previstas na própria Constituição brasileira.
2.3 O caso Maria da Penha
Maria da Penha Maia foi mais uma vítima de violência doméstica de um marido que, somente no ano de 1983, tentou matá-la por duas vezes. A primeira vez a tiros, simulando um assalto e na segunda vez tentou eletrocutá-la. Maria da Penha ficou paraplégica. O fato ocorreu no estado do Ceará.
Foi o primeiro caso em que foi invocada a Convenção de Belém do Pará.
Em agosto de 1998, o CEJIL-Brasil (Centro para a Justiça e o Direito Internacional) e o CLADEM-Brasil (Comitê Latino-americano do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher), juntamente com a vítima Maria da Penha Maia Fernandes, encaminharam à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA) petição contra o Estado Brasileiro, relativa ao paradigmático caso de violência doméstica por ela sofrida (caso Maria da Penha n.º 12.051).
Denunciou a morosidade da justiça penal brasileira em julgar as tentativas de homicídio intentadas contra Maria da Penha por seu ex-esposo. Passaram-se mais de 15 anos sem que houvesse uma sentença definitiva.
No ano de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em seu Informe n.º 54 de 2001, responsabilizou o Estado brasileiro por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres, recomendando, entre outras medidas: a finalização do processamento penal do responsável da agressão; proceder uma investigação a fim de determinar a responsabilidade pelas irregularidades e atrasos injustificados no processo, bem como tomar as medidas administrativas, legislativas e judiciárias correspondentes; sem prejuízo das ações que possam ser instauradas contra o responsável civil da agressão, a reparação simbólica e material pelas violações sofridas por Penha por parte do Estado brasileiro por sua falha em oferecer um recurso rápido e efetivo; a adoção de políticas públicas voltadas a prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher[7].
O plenário da Câmara aprovou em 22 de março de 2006 o projeto de lei n.º 4559/04, que cria mecanismos de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher e outras medidas protetivas.
Em 07 de agosto de 2006, é sancionada a lei n.º 11.340, apelidada "Maria da Penha” no intuito de garantir o direito das mulheres contra a violência.
3 ALGUMAS NOTAS SOBRE POSITIVISMO E TEORIA CRÍTICA
Importante, abordar a dimensão do positivismo em cotejo com o pensamento crítico com a tendência de desestruturação do direito em suas faces formal e enquanto direito moderno. O operador jurídico não deve descrever o direito, mas sim a sua forma de vê-lo.
Inúmeros conceitos podem ser elaborados para o que seja direito, mas não pode negar que se trata de um fato social. Independente da fonte do direito, pode-se extrair que se cuida de instrumento de dominação, tendente a fazer valer a ideologia do Estado num dado momento histórico incidindo sobre todos os elementos do Estado.
Os fenômenos jurídicos devem ser avaliados e analisados não somente pelos aspectos formais ou objetivos, mas também devem passar pelo crivo de um avaliador do caso concreto.
Com isso se quer dizer que o direito não pode ser encarado como um mecanismo estático e instrumental à vontade da classe dominante, seja política, seja econômica.
Deve se buscar um repensar do direito de forma a que seja construído como ferramenta de libertação. Assim, apesar do direito, principalmente calcado no pensamento positivista, ser utilizado como um instrumento de dominação, numa mudança de paradigmas, pode ser repensado criticamente, como forma de libertação ou emancipação.
O pensamento positivista na área do direito foi uma manifestação típica de um chamado direito moderno, baseado em algumas premissas:
a) o direito como fato, não como valor; b) o direito definido em função do elemento da coação; c) a teoria da legislação como fonte preeminente do direito; d) a teoria da norma jurídica; e) a teoria do ordenamento jurídico; f) a teoria da interpretação mecanicista e g) a teoria da obediência (BOBBIO, 1995, p. 131).
Assim, num primeiro momento o direito é abordado como uma ciência causal-naturalista. Apenas juízos de fato, nunca de valor.
O direito é definido em função de sua estrutura formal (SCREMIN, 2010, p. 151).
A natureza coercitiva do direito funda-se no direito emanado do Estado. Somente com a coação o sujeito vê-se constrangido a não praticar um ato de abuso de sua liberdade que atinja a liberdade de outro (SCREMIN, 2010, p. 151).
Outro aspecto seria encarar como fonte do direito somente a lei. O Estado seria a única fonte do direito e a lei é a única expressão do poder normativo do Estado (SCREMIN, 2010, p. 152).
Correlacionado a este aspecto está a teoria imperativista da norma jurídica que enuncia o direito como comando. Há um imperativo hipotético, pois a sanção é que torna obrigatória o preceito primário da norma. A ação prescrita não é cumprida apenas pelo seu conteúdo, mas pelo descumprimento importar na imposição de uma sanção (SCREMIN, 2010, p. 152).
O ordenamento jurídico possui as características de unidade, coerência e completitude. Há uma única autoridade, sendo corolário da teoria da norma fundamental que está na base de todo o ordenamento jurídico, legitimando uma autoridade suprema a produzir normas jurídicas. No que diz respeito à coerência e completude do ordenamento jurídico, diz-se que não há contradição nem lacunas o ordenamento jurídico, devendo-se aplicar alguns critérios no caso de conflito aparente de normas de ordem cronológica, hierárquica ou especial (SCREMIN, 2010, p. 153).
O positivismo realiza a interpretação das normas com especial atenção às formas, ou seja, considerando a dedução lógica dos conceitos abstratos, sem se ater à realidade social ou aos conflitos de interesse que possam estar presentes (SCREMIN, 2010, p. 153). Assim, deve-se buscar exclusivamente a norma que soluciona o caso concreto, de maneira formal.
Por último, o positivismo se caracteriza pela obediência absoluta à lei, que tem de ser respeitada incondicionalmente, pois seria a forma racional de o Estado e os homens que a ele estão submetido atuarem (SCREMIN, 2010, p. 153). A não obediência à lei importará em ato ilícito.
Esclarecidas, em síntese, as premissas lançadas inicialmente, interessa tecer algumas críticas, tendo em vista o positivismo justificava-se no século XIX. (COELHO, 2003, p. 178). Já não se justifica mais.
Para Grau “[...] o tempo em que vivemos denuncia uma tendência bem marcada à desestruturação do direito” (2002, p. 107). Afirma que se faz necessários mais críticos do direito do que expositores do direito, pois os juristas se limitam a interpretar o direito de diferentes maneiras, mas o que importa é transformá-lo (2002, p. 18).
Por exemplo quando se menciona, na ótica positivista, que não há lacunas no direito, isto contraria o ordenamento jurídico, pois muitas vezes se faz necessário utilizar os princípios (GRAU, 2002, p. 31). Há uma negação dos princípios como normas.
Para Coelho o que existe são lacunas político-jurídicas que correspondem a direitos dos grupos dominados, os quais permanecem na expectativa de serem atendidos.
Os conceitos indeterminados também não se explicam.
Para o positivismo a legalidade se confunde com legitimidade.
Para Coelho “[...] a alienação, ao produzir a inconsciência dos cidadãos quanto às suas reais condições de existência, é exigência necessária para a legitimidade da ordem jurídica numa sociedade dividida em classes sociais” (2003, p. 393).
Grau não admite a identidade entre legitimidade e legalidade, pois a norma somente é legítima “[...] quando existir correspondência entre o comando nela consubstanciado e o sentido admitido e consentido pelo todo social, a partir da realidade coletada como justificadora do preceito normatizado” (2002, p. 86).
Por isso, não se pode de modo algum confundir os conceitos de legitimidade com legalidade como quer a escola positivista.
Para o positivismo as normas são universais e dotadas de generalidade, sendo a expressão da vontade geral o que garantiria a igualdade e a liberdade, indicando a sua característica monista. O direito estatal é pleno e encontra seus limites dentro do próprio direito, mas não além dele (SCREMIN, 2010, p. 156).
Para Coelho, o positivismo não considera a divisão de classes sociais, a desigualdade real, o que vai contra o princípio da plenitude, que tem como finalidade “[...] castrar as expectativas por um outro direito, por mais direito ou melhor direito” (2003, p. 338).
Quanto à racionalidade, para o positivismo a vontade da lei é o espaço da dominação impessoal e neutra, em que ocorre a noção de ordem, cuja manifestação se dá racionalmente mediante um sistema lógico-formal. Coelho apud Scremin não aceita essa racionalidade positivista, pois verifica que há lacunas reais de toda a forma de controle social, mesmo das formas jurídicas, como, por exemplo, a ineficácia intencional das leis que representando conquistas dos dominados, deixam de ser aplicadas se ferirem interesses das classes dominantes (2010, p. 157).
Coelho é adepto da dialética da participação, de índole pluralista, que para ele
[...] é também uma dialética da transformação, a qual pressupõe um projeto político ao nível de consciência dos cidadãos, mas principalmente, ao nível da teoria social, econômica, política e jurídica. Esse é o sentido metodológico que atribuo à teoria crítica do direito” (COELHO, 2003, p. 395).
Assim, a teoria crítica apresenta vantagem sobre o pensamento positivista, posto que trata de recuperar as reflexões sobre direito e justiça. É a conversão de um direito conservador de privilégios classistas em um que acolha as reivindicações do povo excluído. Para isso é necessária uma ordem jurídica justa e igualitária. O direito converge de instrumento de dominação para um espaço de libertação. Por isso, a necessidade de analisar os dispositivos da Lei 11.340/2006 de maneira crítica, de modo a constatar quais são as verdadeiras aspirações da sociedade nesta seara.
4 A TEORIA NA PRÁTICA
Após a edição da Lei “Maria da Penha”, a cobertura midiática, fez com que pairasse a sensação coletiva de que todos os problemas brasileiros pertinentes à violência de gênero, no âmbito familiar e doméstico, estariam com seus dias contados. Agentes governamentais anunciavam na mídia o fim da violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil. Entretanto, há evidente dificuldade de realização do discurso “fundamentador” da norma aos fenômenos reais.
Desde o primeiro momento, vieram à tona reclamos em relação, principalmente, à inconstitucionalidade da lei como um todo, em razão de uma suposta quebra do princípio constitucional da igualdade. Por óbvio que os defensores da novel lei imediatamente se contrapuseram.
A discussão da matéria chegou aos tribunais superiores.
O que mais se debateu até agora nesses fóruns é a possibilidade de aplicação de dispositivos da Lei 9.099/95, especialmente no que diz respeito à possibilidade de o Ministério Público propor a ação penal sem necessidade de representação da vítima nos crimes de lesão corporal leve (art. 41), praticados contra a mulher no âmbito doméstico (Lei 11.340, de 07 de agosto de 2.006).
No controle difuso de constitucionalidade várias decisões foram exaradas, tanto no sentido da afirmação da constitucionalidade [8] da lei quanto de sua inconstitucionalidade[9], sendo que tal situação deu azo à ação direta de constitucionalidade n.° 19-3, de autoria do Presidente da República, protocolizada ao final do Ano Judiciário de 2007, no dia 19 de dezembro, às 18h52 com pedido de liminar, presentes os artigos 1º, 33 e 41 da Lei nº 11.340/06.[10]
A ação declaratória de constitucionalidade foi instituída pela Emenda Constitucional n.º 3/1993 e regulamentada pela Lei n.º 9.868, de 10 de novembro de 1999, sendo cabível para a análise de leis ou atos normativos federais, podendo ser proposta pelos mesmos legitimados para a ação declaratória de inconstitucionalidade. Deve ser demonstrada a controvérsia judicial relevante sobre a aplicação da disposição objeto da ação declaratória, além dos demais requisitos constantes do artigo 14, da Lei 9.868/99. Realmente não seria possível o requerimento de liminar, mas sim o pedido de concessão de medida cautelar, pela maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal, consistente em que os juízes e tribunais suspendam o julgamento apenas dos processos que envolvam a aplicação da lei 11.340/2006 até o julgamento definitivo. Havendo concessão de cautelar, o tribunal terá até 180 dias para o julgamento definitivo, sob pena de perda da eficácia da cautelar. A cautelar tem eficácia erga omnes e efeitos vinculantes, além de ex nunc.
A medida acautelatória foi negada pelo relator o Ministro Marco Aurélio Mello, que explicitou o não cabimento do pedido liminar, pois o artigo 21 da Lei 9.868/99 estabelece a possibilidade de medida cautelar. [11]
[...] Por isso, não é dado cogitar, considerada a ordem natural dos institutos e sob o ângulo estritamente constitucional, de liminar na ação declaratória de constitucionalidade. Mas a Lei nº 9.868/99 a prevê, estabelecendo o artigo 21 que o “Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida cautelar na ação declaratória de constitucionalidade, consistente na determinação de que os juízes e os Tribunais suspendam o julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação até seu julgamento definitivo [...] o pleito formulado, porém, extravasa até mesmo o que previsto nesse artigo. Requer-se que, de forma precária e efêmera, sejam suspensos atos que, direta ou indiretamente, neguem vigência à citada Lei. O passo é demasiadamente largo, não se coadunando com os ares democráticos que nortearam o Constituinte de 1988 e que presidem a vida gregária.
Isto explicado interessa a discussão quanto à possibilidade de aplicação dos dispositivos despenalizadores da Lei 9.099/95, em especial a necessidade ou não de representação por parte da ofendida, posto que o artigo 41 da Lei 11.340/2006[12] estabelece que os dispositivos da Lei 9.099/95 não serão aplicados aos crimes praticados com violência doméstica ou familiar contra a mulher, não importando a pena prevista.
Deve-se adotar a ideologia como categoria crítica, considerar a sociedade em que ela se insere e examinar as múltiplas articulações entre a dinâmica social e suas representações, assumi-la, enfim, como algo imanente que pode modificar o social e ser por ele modificado (COELHO, 2003, p. 137).
Por isso propõe-se a fuga da discussão comum e da ótica positivista e encarar a matéria sob o olhar da teoria crítica do direito.
5 REPRESENTAÇÃO NOS CRIMES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER
A Lei 9.099/95 inaugurou no Brasil a chamada justiça consensual penal, contemplando os chamados “institutos despenalizadores”. Entre os dispositivos inovadores e mais importantes da Lei 9.099/95 destacaram-se à época: a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência (art. 69, caput.), o não cabimento de prisão em flagrante (art. 69, par. único), composição civil dos danos (art. 74), aplicação imediata de pena restritiva de direitos (art. 76), representação no crime de lesão corporal leve e culposa (art. 88), suspensão condicional do processo (art. 89).
Todavia, pela Lei 11.340/2006, a justiça consensual, em tese, deixa de existir quando se tratar de crime praticado com violência doméstica e familiar contra a mulher.
A intenção era a de que quando chegasse ao conhecimento da autoridade policial a notitia criminis relacionada a delitos deste jaez, obrigatoriamente a autoridade policial deveria instaurar o inquérito policial, o qual deverá ser levado, independentemente da vontade da ofendida. Não há liberdade de escolha. A situação retornou exatamente ao que se vivenciava no Brasil dos anos 40 [13] até o advento da Lei 9.099/95.
Para Bonfim (2008, p. 169), o que a lei chama de representação
[...] nada mais é do que a manifestação de consentimento no sentido de que o Ministério Público possa proceder ao ajuizamento da ação penal (ou de que a polícia judiciária possa proceder à instauração de inquérito policial), nos termos do art. 5.°, § 4.°, do Código de Processo Penal.
Portanto, não é pedido, é autorização, somente sendo necessária quando a lei expressamente determina que o ajuizamento da ação é a ela vinculada.
É tida por condição de procedibilidade da ação penal pública, não havendo rigorismo formal para seu oferecimento. A Ministra Laurita Vaz, assim fundamentou seu voto no Recurso em Habeas Corpus 21.747, in verbis:
[...] A representação do ofendido - condição de procedibilidade da ação penal pública condicionada - prescinde de rigor formal, sendo suficiente a demonstração inequívoca da parte interessada de que seja apurada e processada a infração penal [...] (BRASIL, 2.010).
A Lei 11.340/2006, especialmente no artigo 41, em tese, teria acabado com a necessidade de representação, eis que não permite e aplicação dos dispositivos da Lei 9.099/95, in verbis:
Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.
Claro que o dispositivo também afasta a aplicação da transação penal e da suspensão condicional do processo, mas que não serão abordados neste trabalho, eis que alheios à autonomia volitiva da vítima.
Ocorre que, por sua vez, o artigo 44, da Lei 11340/06, alterou o artigo 129, § 9.°, do Código Penal, fazendo com que o crime de lesão corporal leve praticado contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge, companheiro, tivesse sua pena máxima elevada para 03 (três) anos de detenção e a pena mínima diminuída para 03 (três) meses, in verbis:
Art. 44. O art. 129 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 129.
§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.
Assim, não se encarta mais no âmbito dos crimes de menor potencial ofensivo, como previsto no artigo 61, da Lei 9.099/95, in verbis:
Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa. Grifos nossos.
Atente-se que, não somente sendo a vítima mulher, mas, desde que se caracterize como descendente, ascendente, companheiro ou irmão, independente do gênero, não se configura mais crime de menor potencial ofensivo.
Assim, o homem, quando autor de delitos deste jaez responderá criminalmente perante a vara especializada de violência doméstica e familiar contra a mulher. A mulher, quando autora do delito, responderá perante a vara criminal e não perante os juizados especiais criminais.
Hermann (2007, p. 245), admite que o argumento possível em relação ao recrudescimento de tratamento do agressor seria o de que haveria desvalor mais acentuado da conduta quando o crime é cometido em situação de violência doméstica contra a mulher, o que justifica tratamento penal mais severo. É o que mais se argumenta.
No entanto, o artigo 16 da lei cuida de uma audiência onde a vítima poderá “renunciar” à representação, in verbis:
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
Mais uma impropriedade da lei[14], Porém tal renúncia deverá ser realizada perante o Juiz de Direito e do Ministério Público sob pena de nulidade. [15]
O artigo 12, inciso I, da mesma, menciona a representação perante a autoridade policial.
Lembre-se que a exigência de representação da vítima para a deflagração da ação penal foi uma regra elaborada em benefício da vítima, visando o seu resguardo. Quando se retira a possibilidade da mulher da decisão quanto a representar ou não contra o seu parceiro, o Estado a está inferiorizando, tratando-a como hipossuficiente e, muitas vezes punindo o homem com quem quer se relacionar. Ou seja, está lhe retirando o direito de escolha e desrespeitando sua vontade, sua liberdade de opção. Por via de conseqüência, está ferindo o princípio da isonomia estatuído no artigo 5.°, caput, da Constituição da República.
Nas palavras de Hermann
[...] quanto à vítima, entretanto, a subtração do direito de representação implica verdadeira interdição de sua vontade, justamente quando a natureza do conflito onde ocorreu a conduta lesiva exige tratamento de inserção e valorização, inclusive em sede penal. Enquanto pessoas vitimadas em situações conflituais bem menos complexas podem optar por representar ou não o agressor, atentas às próprias necessidades e conveniências, a mulher vitimada por condutas de violência doméstica e familiar se vê privada desse direito.(2007, p. 245-246).
Em sentido contrário, o Superior Tribunal de Justiça vinha decidindo que autores de violência doméstica contra mulheres poderiam ser processados pelo Ministério Público, independentemente de autorização da vítima. Considerou, portanto, que a ação penal contra o agressor deveria ser pública incondicionada. Neste sentido o Recurso Especial sob n.° 1.000.222 e Recurso Especial sob n.° 1.050.276, ambos oriundos do Distrito Federal.[16]
A divergência cominou no julgamento, com base no rito dos recursos repetitivos, realizado pela Terceira Seção [17], no dia 24 de fevereiro de 2010 onde se decidiu que é imprescindível a representação da vítima para propor ação penal nos casos de lesões corporais leves decorrentes de violência doméstica.[18]
Numa interpretação sistêmica da lei, analisando-se os dispositivos apontados em consonância com valores e princípios constitucionais, está-se diante de um conflito entre direitos e garantias constitucionais da igualdade perante a lei (e na lei), da dignidade da pessoa humana (mulher), de liberdade (opção), e da preservação da família. Há de se ressaltar a necessária ponderação dos valores constitucionais na casuística, aplicando-se, ainda, o princípio da proporcionalidade.
6 PENSAR CRÍTICO INCIDENTE SOBRE A LEI MARIA DA PENHA E AS CATEGORIAS CRÍTICAS
Desde muito tempo, têm-se buscado a compatibilização da fundamentação das normas jurídicas com a realidade.
O que se vislumbra, em muitas situações é uma abstração no campo da justificação, totalmente desvinculada dos fenômenos que ocorrem no mundo real, onde o maior desafio é a efetividade das construções teóricas formuladas para dar sustentação à norma jurídica tornando-a aplicável.
Pragmaticamente o operador e aplicador do direito deparam-se com casuísticas onde a mera subsunção do direito ao fato não satisfaz, reclamando uma argumentação mais complexa, visando a emancipação da sociedade. Deve existir uma discussão sobre os atos e condutas do administrador e do legislador destacados como conducentes a relações de dominação. Por isso importa a utilização das categorias do direito ou categorias críticas, que são justamente aquelas idéias que permitem observar o direito a partir da sociedade.
6.1 Sociedade e Ideologia
O direito é considerado como expressão de “[...] conceitos e categorias do jurídico e do político configuram espaço privilegiado do imaginário da sociedade, à medida que foram erigidos à condição de mais eficiente instrumento de controle dos comportamentos sociais do mundo contemporâneo” (COELHO, 2003, p. 342).
A noção de sociedade proposta pela teoria crítica do direito é o dos movimentos sociais. É que ela deixa de ser considerada simples aglomerado de indivíduos para ser vista como um todo, ou, pelo menos, como uma reunião de grupos sociais mais ou menos definidos (COELHO, 2003, p. 113-114).
Os movimentos sociais se concentram a uma ideologia racional e certo nível de organização com vistas à articulação das atividades dos indivíduos que atuam no movimento e uma ação conscientemente transformadora. A partir do momento em que todos esses elementos são reunidos no movimento social, enriquecido com a consciência de seus objetivos políticos, este se transforma em práxis (COELHO, 2003, p. 116).
Práxis e ideologia são corolários do conceito crítico de sociedade.
Para Coelho a ideologia é o próprio direito (2003, p. 343). Instrumento de ocultação de uma estrutura real e mais a
“[...] manipulação do imaginário social no sentido de manter como legítima a distribuição de quotas de poder da sociedade, evidentemente assegurando privilégios dos segmentos que detém os instrumentos de produção e distribuição das riquezas sociais, bem como o gozo dos respectivos benefícios”.
A ideologia é a imagem que a sociedade faz do mundo e dela própria e que pode ser manipulada pela mídia, pelo governo e meios de comunicação em geral.
Um dos principais alvos de debates jurídicos acirrados sobre a indigitada lei gira em torno de sua constitucionalidade, porém, um dos institutos mais debatidos é justamente aquele que diz respeito à liberdade de escolha e de dignidade da mulher: a possibilidade da mulher escolher se deseja ou não ver o agressor ser processado criminalmente, independente de quaisquer outras medidas extra-penais coercitivas e legais. Está-se aqui se referindo à representação. Em outras palavras, cuida-se da exigência ou não de representação nos crimes praticados nesta seara.
Não se pode ignorar que no seio doméstico, não raro, idosos e crianças também são submetidos à violência por seus filhos e filhas, enteados, etc, gerando uma situação de desigualdade muito mais expressiva e grave do que em relação a qualquer mulher adulta. Existem estatutos próprios que conferem proteção à criança e ao adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990) e ao idoso (Lei 10.741, de 01 de outubro de 2003), porém nenhum deles impede a aplicação dos institutos benéficos previstos na Lei 9.099/95, incluindo-se a necessidade de representação.
Portanto, é mais um aspecto das normas de natureza penal que, com a intenção de recrudescer o tratamento ao agressor, desiguala idosos e crianças vitimadas que podem se encontrar em situação idêntica ou pior do que a mulher.
A família, segundo a Constituição da República é “[...] a base da sociedade, cumprindo ao Estado protegê-la [...] o único que apresenta os caracteres de moralidade e estabilidade necessários ao preenchimento de sua função social”. (BULOS, 2005, p. 1414).
O núcleo familiar formado pelo pai, mãe e prole é a primeira manifestação da tendência gregária do homem. (BULOS, 2005, p. 1415).
O Estado deve assegurar à família, na pessoa de cada um dos que a integram - homem, mulher, prole – mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Não somente à mulher. Deixando claro que a legislação protetiva do idoso e da criança e do adolescente não oferecem tanta proteção, no âmbito criminal, como já abordado.
Portanto, o que se espera é que a legislação assegure às mulheres e aos homens em geral - iguais em direito -, a garantia de um Poder Legislativo e de um Poder Executivo sérios, probos e comprometidos com a coisa pública. Se isso acontecesse, ficaria mais fácil o atingimento do respeito à dignidade da pessoa humana. É claro que a Lei “Maria da Penha” cuida de questões de inegável interesse público, e só nisso ela se mostra pertinente, sendo uma verdadeira petição de princípios, consoante se vê de seus longos dispositivos. (PACELLI, 2008, p. 613).
Em verdade cuida-se de um elenco de direitos e garantias fundamentais não titularizados exclusivamente por mulheres, mas por todos aqueles que integram a unidade familiar. Se um dos fundamentos de validade da Lei 11.340/06 é o artigo 226, da Constituição da República, seria de bom senso a criação de um Juizado de Violência Doméstica e Familiar abarcando todos os integrantes da família. É o que a sociedade espera.
Noutro sentido, se o Brasil se comprometeu a adotar e estabelecer programas de governo e normas que eliminem, punam, erradique todas as formas de violência e discriminação contra a mulher, a Lei “Maria da Penha”, é de se investigar se da forma em que foi elaborada cumpre o seu papel.
Constata-se que as únicas regras auto-aplicáveis são aquelas que cuidam da adoção de medidas protetivas de urgência que obrigam ao agressor, bem como as medidas protetivas de urgência à ofendida e as de proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou particular da mulher, portanto extra-penais, sendo que algumas delas necessitam, para serem efetivas, de ato proveniente do Poder Administrativo (art. 23, inc. I).
As demais previsões dependem de implementação, seja do Poder Executivo, Judiciário e, até mesmo Legislativo. Ou seja, como já abordado alhures, normas de conteúdo programático presentes na legislação ordinária.
Afora isso, somente as normas de natureza penal têm eficácia direta e imediata.
Pela opção de política criminal eleita, mais uma vez fica evidente que o Estado brasileiro, por intermédio da Lei Maria da Penha, em referência às obrigações que assumiu nas Convenções mencionadas, cumpre somente o seu papel de punir, recrudescendo as penas e o tratamento jurídico-processual do agressor.
Esqueceu dos compromissos firmados nas Convenções a que anuiu, de adotar medidas efetivas de combate e erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher.
O Direito Penal, apesar de seu caráter sancionador e de controle social, não se presta ao papel de concretizar os fundamentos e premissas sobre as quais estaria firmada a Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006, atuando única e exclusivamente no caráter repressivo. A função preventiva em crimes deste jaez, surte efeitos num primeiro momento, mas com o passar do tempo, esmorece.
O interesse público é elevado, mas, fazendo-se uma ponderação entre os fins queridos e os meios utilizados, chega-se à conclusão que o meio, a Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, não é apta ao alcance dos fins preconizados nos documentos internacionais ratificados pelo Brasil, nem tampouco se ajusta ao comando contido no § 8.°, do art. 226, da Constituição da República que visa proteger todos os integrantes da família, independente do gênero. É misto de realidade e promessa. A promessa de proteção não pode ser tomada como real, pois pode gerar muito mais desencantamento do que estímulo. (HERMANN, 2008, p. 253).
Explica-se: a lei não cria nenhum mecanismo para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, como traz em seu artigo 1.°, apenas estabelece diretrizes nos sistemas já existentes como o Sistema único de Saúde (SUS), Sistema Único de Segurança Pública e Sistema Único de Assistência Social (SUAS) que deverão adaptar suas ações e serviços a estas diretrizes (HERMANN, 2008, p. 253). A criação de mecanismos de combate à violência de gênero depende de regulação legislativa e implantação de políticas públicas e da pressão popular. Porém, em decorrência da alienação, a sociedade foi levada a crer que a lei seria eficaz. neste sentido com alguma repercussão
A propaganda oficial e a mídia em geral propagaram que a aplicação das normas penais ao agressor de forma mais austera seria a solução para a violência de gênero no Brasil, causando a falsa impressão de que as expectativas da sociedade estariam satisfeitas. Em verdade nada mais é do que a repetição de fórmula reiterada e conhecida de imposição de uma determinada ideologia manipulada que mais condiz com os interesses destes grupos, ainda que de maneira inconsciente (COELHO, 2003, p. 494). A partir da mídia manipula-se o ideário social por meio de regras e normas, o que devem pensar e como pensar.
Ainda com Coelho conceitua-se a ideologia como sendo a [...] representação destinada a explicar, por meio de princípios éticos e jurídicos, ou meros convencionalismos, de maneira racionalmente aceitável, as diferenças e os conflitos inerentes à sociedade e, com isso, ocultar ou dissimular as verdadeiras causas dessas diferenças e desses conflitos (2003, p. 494).
A violência doméstica, assim como a violência em geral, ocorre em todos os níveis sociais, porém, ela aflora, é divulgada quando recorrente nos espaços menos favorecidos da população, seja no aspecto econômico, cultural ou social. A lei 11.340/2006 visa à erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher no âmbito de toda a sociedade, entretanto, o texto legal não pode ser analisado pelo intérprete como se fosse completo, pleno, formando uma ordem jurídica completa e consistente, emanado de um único autor, permanente e racional. Esta é a visão eminentemente dogmática.
A lei 11.340/2006, como de resto, qualquer texto legal, deve ser ”[...] recriado, quando aplicado ou interpretado pelo juiz. Se a unidade, coerência e uniformidade propugnadas pela dogmática correspondessem à realidade, não haveria espaço para interpretações divergentes e até mesmo contraditórias” (COELHO, 2003, p. 499-500).
Neste aspecto, a ideologia dominante, movida por pontuais movimentos de mulheres, não dotados de unanimidade e pela recomendação exarada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos motivaram a edição da Lei Maria da Penha, a qual se consubstancia em instrumento de dominação e manipulação da população para obter o conformismo relacionado às diretrizes deste poder.
Em relação à natureza da ação penal nos crimes de lesão corporal leve (art. 129, § 9.º, da Lei 11.340/2006), o intérprete deve atentar, no momento de sua aplicação, para a interpretação mais consentânea com os interesses de uma sociedade pluralista no caso concreto. Impedir o direito de todas as mulheres de optarem, de escolherem, decidindo por si próprias, o que é melhor no âmbito da entidade familiar é expectativa pode ser frustrada pela ineficácia do meio jurídico de implementar soluções (COELHO, 2003, P. 501). Qual seja: a eleição do direito penal para solucionar o conflito sócio-familiar.
Para o Ministro Jorge Mussi, no voto exarado em julgamento na Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça[19]:
Quando se insiste em acusar da prática de um crime e ameaçar com uma pena o parceiro da mulher contra a sua vontade, está se subtraindo dela, formalmente ofendida, o seu direito e o seu anseio a livremente se relacionar com aquele parceiro por ela escolhido. Isto significa negar o direito à liberdade de que é titular para tratá-la como coisa fosse, submetida à vontade dos agentes do Estado, que, inferiorizando-a e vitimando-a, pretendem saber o que seria melhor para ela, pretendendo punir o homem com quem ela quer se relacionar. E sua escolha há de ser respeitada, pouco importando se o escolhido é, ou não, um agressor, ou que, pelo menos, não deseja que seja punido.
Ele ainda transcreveu, na mesma ocasião, Maria Berenice Dias, segundo a qual:
Não há como pretender que se prossiga uma ação penal depois de o juiz ter obtido a reconciliação do casal ou ter homologado a separação com definição de alimentos, partilhas de bens e guarda de visita. A possibilidade de trancamento do inquérito policial em muito facilitará a composição dos conflitos, envolvendo as questões de Direito de Família, que são bem mais relevantes do que a imposição de uma pena criminal ao agressor. A possibilidade de dispor da representação revela formas por meio das quais as mulheres podem exercer o poder na relação com os companheiros (BRASIL, 2.010)
Observa-se, no mínimo, uma preocupação em interpretar a norma federal, sem amarras dogmáticas ou positivistas, inconscientemente dirigida a uma postura crítica, muito mais próxima da realidade.
O Ministro Nilson Naves no julgamento do Habeas Corpus n.º 96.992-DF, que tratava da mesma matéria destacou que
[...]não se apagou de todo a representação, admite-se, admito-o eu, data venia, se invoque ainda o art. 88 da Lei nº 9.099, segundo o qual, "além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal
relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas". Acho, perdoem a minha petulância, mais salutar admitir-se, em casos que tais, a representação, isto é, que a ação penal dependa de representação da ofendida (também a renúncia, é claro). Há situações e situações, há as do receio, do medo, etc., mas há as que se resolvem doutro modo – voltando atrás, por exemplo[...].[20]
Todavia, é preciso ter em mente que “[...] somente a consciência da ideologia pode levar à consciência do papel social do direito e seus operadores” (COELHO, 2003, p. 502).
Por isso, a importância de desvendar a ideologia dominante, a verdadeira intenção do legislador e do administrador público, mesmo que de maneira inconsciente, transferindo a pseudo-solução do problema ao operador do direito.
6.2 Alienação
Deve-se aperceber que o Estado, por intermédio dos meios de comunicação em massa, possui o poder de criar necessidades e manipulá-las, muitas vezes, com intuito de favorecimento eleitoreiro, como a necessidade de leis mais duras com o falso propósito de proteção. Até mesmo necessidades prementes, tais como a necessidade de proteção de direitos fundamentais e sociais, podem se apresentar uma frustração se não houver meios para implementação.
Transfere-se ao Estado-Juiz e operadores jurídicos o papel que é do Estado-Administração, como se o problema de violência de gênero fosse passível de solução apenas com o direito penal, fazendo com que o povo ignore a obrigatoriedade do Estado em efetivar os direitos fundamentais sociais estabelecidos na Constituição da República.
Neste aspecto, a não exigência de representação nos crimes de lesão corporal leve contra a mulher no seio familiar e doméstico, além de desrespeitar o direito de liberdade de escolha da mulher e via reflexa, com a isonomia, contribui também para a degradação da família, pois impossibilita a reconciliação. É mais uma das facetas da ideologia que se quer fazer imperar, trazendo a alienação, no sentido de que todos tenham a plena certeza de que o tratamento mais gravoso ao agressor da mulher no âmbito familiar e doméstico é aquilo de que a sociedade necessita, ou seja, seriam as próprias necessidades da sociedade.
Não raro, as mulheres ofendidas e agredidas desejam retratar-se da representação ofertada, por diversos motivos. Dependência econômica, emocional ou psicológica, ou, simplesmente porque se trata de fato isolado e deseja a manutenção da família.
A deflagração de um processo-crime, contra a manifesta vontade da ofendida, resultará decerto em medida ineficaz, isto porque a vítima não tem simpatia pelo processo e que antes, não deseja e tratará de dificultar a obtenção da prova, invocando situações fáticas que conduzam à absolvição do agente (GOMES; SANCHES, 2009, p. 1.154).
O produto social da ideologia é a alienação (COELHO, 2003, p. 138).
Para Coelho a alienação se consubstancia na “[...] substituição, no inconsciente dos indivíduos, o qual se projeta intersubjetivamente como inconsciente coletivo, do autêntico pelo artificial, da autonomia pela heteronomia, da libertação pela opressão”.
Portanto, a lei sob comento só pode estar a dissimular objetivos subjacentes como a transferência de responsabilidade pela falta de vontade política na formulação de políticas públicas e legislação que realizem no plano dos fatos o direito de proteção e erradicação de todas as formas de violência contra a mulher, como por exemplo, a implementação de educação de gênero na rede pública de ensino, centros de apoio psicológico e tratamento de agressores alcoólatras e usuários de entorpecentes, equipe multidisciplinar para atendimento da família e outras ações de Estado.
6.3 A práxis
Larrauri apud Sabadell (2005), explica que “[...] uma série de estudos empíricos de sociologia jurídica indicam que o endurecimento das respostas repressivas não conduz a um aumento da eficácia da justiça criminal”.
Nunca foram tão acertadas as palavras de Cruet (2003, p. 222 ) “[...] Vê-se todos os dias a sociedade reformar a lei, nunca se viu a lei reformar a sociedade”.
Deve-se aliar a teoria à prática. Trabalho teórico e prático. A teoria deve se unir à prática para enfrentar-se o status quo. É a práxis. Na filosofia marxista é o conjunto de atividades que visam a transformar o mundo e, particularmente, os meios e as realizações de produção, sobre a qual repousam as estruturas sociais.[21]
Há um dilema então: a experiência de se adotar um direito penal consensual, com a aplicação de institutos despenalizadores rompe com os postulados garantistas, pois antecipa a punição sem o devido processo legal. Ademais, na ótica dos defensores da Lei, teria falhado.
De outro lado a adoção de um direito penal punitivista se apresenta ineficaz! Qual seria a melhor escolha? Qual a alternativa a ser adotada?
A práxis é uma atividade que envolve a conscientização do grau de manipulação ideológica que sobre ela incide, uma adesão às propostas éticas e políticas descortinadas pela consciência do sujeito social e uma participação efetiva na tarefa de reconstrução da sociedade (COELHO, 2003, P. 143).
Segundo Castoriadis apud Coelho (2003, p. 145), “[...] deve haver um condicionamento recíproco entre o saber e o fazer, pois a elucidação e transformação da sociedade progridem articuladamente”.
Assim, não se pode aceitar que os dispositivos legais previstos na Lei Maria da Penha sejam verdade absoluta ou sejam dotados de neutralidade, principalmente no que diz respeito ao direito de opção da principal interessada, impedindo-se que a vítima influencie acerca da instauração do processo contra o acusado. Ora, o legislador cercou essa decisão de garantias como a exigência de que essa decisão ocorra em presença do juiz e do Ministério Público.
Nogueira (2010) ressalta que
[...] condicionar a persecução penal à manifestação da vontade da vítima é medida de política criminal inerente à tradição de nosso direito penal e que por vezes servirá para resguardar valores que não podem ser esquecidos no âmbito da família, como a busca da harmonia no lar e a superação efetiva de situações em que houve violência em qualquer de suas formas.
Sob o olhar dogmático, positivista a solução seria a desnecessidade de representação nos crimes praticados no âmbito da Lei Maria da Penha. É uma visão por demais unificadora e simplista para uma sociedade que é complexa, devido à uma série de fatores. Por isso, a teoria crítica pode desmistificar e libertar.
É porque a dogmática ilude-se e ilude almejando fazer crer que o “seu saber” é totalmente verdadeiro, peremptoriamente absoluto. Para Wolkmer (2006, p. 85)
[...] nenhum saber é totalmente absoluto, uniforme e inesgotável; nenhum modelo de ‘verdade’ expressa, de modo permanente e contínuo, respostas a todas as necessidades, incertezas e aspirações humanas em tempo e espaço distintos. Há de se encarar, como fenômeno natural, na complexidade da vida social e na estrutura do próprio saber humano, a relatividade e a ambivalência das formas de ‘verdades.
Por isso, a priori, subtrair-se a possibilidade de escolha da mulher sobre a conveniência ou não de prosseguimento da persecução criminal seria a negação do próprio texto estabelecido no artigo 226, da Constituição da República, pois se estaria conturbando ainda mais o ambiente doméstico e, por conseguinte a família, atrapalhando eventual propósito de reconciliação.
Aliás, ao se negar a liberdade de que é titular a mulher, a lei a trata como se coisa fosse, submetida totalmente à vontade do Estado (polícia, Ministério Público, Judiciário), “coisificando-a”, como se pudesse o Estado dizer o que é melhor para ela.
Inclusive, o efeito prático pode ser totalmente contraditório aos objetivos da lei, pois a própria mulher, devido às amarras de índole afetiva, psicológica, econômica, podem reprimi-la, desincentivando-a a buscar o próprio Estado.
Em verdade, fácil perceber que a Lei Maria da Penha não pode ser produto dogmático, mas interpretada criticamente, fazendo com que a sociedade seja libertada, em especial, respeitando a escolha da mulher, pouco importando se o escolhido é ou não um agressor, e que não deseja que seja punido (KARAM, 2006).
O Superior Tribunal de Justiça, em julgado já mencionado alhures, mesmo que não se baseando na teoria crítica do direito, aponta uma solução mais consentânea com os interesses da sociedade.
“O verdadeiro conhecimento só se justifica quando sua eficácia se comprova na prática, e esta prática que se traduz em práxis é a transformação da sociedade pela emancipação da massa de dominados” (COELHO, 2003, p. 144).
Ao se garantir a liberdade de escolha da mulher no bojo da Lei Maria da Penha buscou-se um direito que corresponde ao que socialmente se almeja, representando uma alternativa ao positivismo.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Brasil ratificou várias convenções protetivas da mulher e em ano eleitoral, veio à lume a Lei Federal sob n.° 11.340, de 07 de agosto de 2006, a denominada “Lei Maria da Penha” que foi cunhada a título de implementação de tratados e convenções que o Brasil houvera ratificado, bem como o artigo 226, § 8.°, da Constituição da República de 1988 como uma espécie de ação afirmativa em seu favor para o restabelecimento da igualdade substancial.
Constata-se que a Lei visa à proteção dos direitos e garantias fundamentais da mulher, vítima de violência doméstica e familiar, descendo a minúcias, repetindo uma série de direitos já protegidos constitucionalmente.
O legislador de ocasião, mais uma vez, elegeu o direito penal para desempenhar uma função que não é sua, deixando claro que não há compromisso com a produção de uma lei mais efetiva na erradicação da discriminação da mulher e da violência familiar e doméstica contra ela.
Mesmo assim a Lei Maria da Penha, como de resto as leis em geral, não pode ser encarada como incontestável, pois a proibição da aplicação dos institutos despenalizadores previstos na Lei 9.099/95, particularmente a necessidade de representação nos crimes de lesão corporal leve praticados contra a mulher no âmbito familiar e doméstico, acaba por violar o direito fundamental de liberdade de escolha, vitimizando a mulher e tratando-a como hipossuficiente.
Demonstra-se que o direito não é neutro nem absoluto e sua aplicação não se restringe à elaboração da lei. Se esta, no todo ou em parte, estiver em desajuste com os anseios sociais deve ser criticada a interpretada de modo a refletir o que a sociedade espera não se limitando à lei formal.
A teoria crítica se comparada com o positivismo oferece mais alternativas à sociedade, sendo capaz de alterar a realidade, numa interpretação emancipatória do direito efetivando-se os direitos e garantias fundamentais previstas na Constituição da República.
Deve-se buscar cada vez mais uma interpretação da Lei Maria da Penha que resguarde a família, o direito de liberdade e igualdade bem como a dignidade da mulher.
8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=96105. Acesso em: 01.05.2010.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Processual Penal. Habeas corpus. Crimes contra a Pessoa (art.121 a 154) - Crimes contra a vida - Lesão Corporal ( art. 129 ) - Violência Doméstica. Legitimidade do Ministério Público para propositura de ação penal sem representação da vítima. Improvido. Habeas Corpus n.° 96992. 6.ª Turma. Rel. Ministra Jane Silva. Impetrante José Alfredo Gaze de França; Impetrado: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Situação atual: gabinete do Ministro-Presidente Nilson Naves.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso ordinário em Habeas Corpus. HC 21.747; Proc. 2007/0178418-4; RJ; Quinta Turma; Rel. Ministra Laurita Hilário Vaz; Julgado em 18/09/2008; Diário da Justiça da União em 13.out.2008.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. Declaração incidental de inconstitucionalidade da lei n. 11.340/06 - recurso ministerial - pedido de modificação da decisão monocrática que declarou a inconstitucionalidade da lei n. 11.340/06 - vício de inconstitucionalidade - violação aos princípios da igualdade e proporcionalidade - decisão mantida - competência do juizado especial criminal – improvido. Recurso em sentido estrito n.° 2007.023422-4. Recorrente: Ministério Público Estadual. Relator: Des. Romero Osme Dias Lopes. Campo Grande 24 de outubro de 2007. Diário de Justiça Nº 1606.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. Arguição de inconstitucionalidade - Lei Maria da Penha - obediência à isonomia real - ausência de vícios formais ou materias - validade do diploma perante a carta política - constitucionalidade reconhecida. Embargos de Declaração em recurso em sentido estrito sob n.° 2007.023422-4. Relator: Des. Elpídio Helvécio Chaves Martins. Campo Grande, 13 de janeiro de 2009. Diário da Justiça n.° 1883.
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[1] PLANETAEDUCAÇÃO. Disponível em: <,http://www.planetaeducacao.com.br/novo/artigo.asp?artigo=405>. Acesso em 10.mar.2010.
[3] < http://www.justicaeleitoral.gov.br/internet/eleicoes/estatistica2008/est_result/cargo.htm>. Acesso em 10.03.2010.
[4] <http://www.tse.gov.br/internet/eleicoes/2006/carg_sexo_blank.htm>. Acesso em 10.03.2010.
[5] A primeira Conferência Mundial sobre a Mulher foi realizada no México.
[6] Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 3.º, inciso IV.
[7] Sobrevivi... o relato do caso Maria da Penha. Disponível em: http://www.agende.org.br/docs/File/convencoes/belem/docs/Caso%20maria%20da%20penha.pdf. Acesso em 10.03.2010.
[8] Supremo Tribunal Federal, HC 92538 MC/SC, rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 02.10.2007, pp-00032.; Superior Tribunal de Justiça, REsp 1.050.276; TJMG, 4.ª turma criminal, Apelação Criminal n.º 1.0672.07.245610-2/001, Rel. Des. Walter Pinto da Rocha, acórdão publicado em 23.10.2007, entre outras.
[9] TJMS, 2.ª Turma Criminal, Recurso em Sentido Estrito n.º 2007.023422-4/0000-00, Rel. Des. Romero Osme Dias Lopes, acórdão em 26.9.2007; TJRJ, 8.ª Câmara Cível, Conflito de Competência n.º 2007.008.00568, Des. Orlando Secco, julgamento: 01.11.2007; TJMG , 1.ª Câmara Criminal, Apelação Criminal n.º 1.0672.07.244893-5/0001, Rel. Des. Judimar Biber, publicação: 14/08/2007; TJMG, Conflito Negativo de Jurisdição n.º 10000.07.458416-0/000, publicação: 28.08.2007; Conflito de Competência n.º 70019035179, 5.ª Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Rel. Amilton Bueno de Carvalho, julgado em 11.04.2007; Súmulas 82, 83, 84, 86 do III Encontro dos Juízes de Juizados Especiais Criminais e Turmas Recursais, disponível em: www.tj.rj.gov.br/juizados_especiais/sumario/enunciados_consolid_iii_encontro_jecr.htm. Acesso em: 27.04.2010.
[10] Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
[...]
Art. 33º Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.
[...]
Art. 41º Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.
[...]
[11] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADCN&s1=19&processo=19. Acesso em: 06 mai.2010.
[12] Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995.
[13] O Código de Processo Penal brasileiro é o Dec-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941.
[14] A renúncia, tecnicamente é cabível em relação à ação penal privada, art. 49 e 50, do CPP.
[15] PENAL E PROCESSUAL PENAL. LEI MARIA DA PENHA. LESÕES CORPORAIS LEVES CONTRA MULHER. MANIFESTAÇÃO DE RENÚNCIA DA REPRESENTAÇÃO NA AUSÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA E ARQUIVAMENTO DO FEITO. Nulidade 1 a ausência de representante do ministério público implica a nulidade do feito, a partir da audiência de renúncia à representação, que estava designada para 10h00min mas só veio a ocorrer quarenta e cinco minutos depois, na ausência do promotor de justiça. Inteligência do artigo 25 da Lei nº 11.340/2006. 2 recurso proibido para anular o processo. (TJ-DF; Rec. 2007.01.1.115474-6; Ac. 333.111; Primeira Turma Criminal; Rel. Des. George Lopes Leite; DJDFTE 09/12/2008; Pág. 159)
[16] http://www.stj.gov.br/portal_stj/objeto/texto/impressão.wsp?tmp.estilo=&tmp.area=39. Acesso em: 24.09.2008.
[17] A quinta e sexta turmas formam a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça.
[18] http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=96105. Acesso em: 01.05.2010.
[19] http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=96105. Acesso em: 01.05.2010.
[20]https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=3957300&sReg=200703011589&sData=20090323&sTipo=3&formato=PDF. Acesso em 03.05.2010.
[21] http://www.dicionarioweb.com.br/praxis.html. Acesso em: 05.05.2.010.
Promotor de Justiça. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG/PR. Especialista em Direito Constitucional pela UNAES/FESMP-MS. Especialista em Ciências Penais pela UNISUL-SC. Mestrando em Direito Processual Civil, subárea Processo e Cidadania, Linha de pesquisa Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais pela Universidade Paranaense - UNIPAR. Ex-Professor de Direito Processual Civil da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Professor de Direito Processual Penal no Centro Universitário da Grande Dourados - UNIGRAN.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMILCAR ARAúJO CARNEIRO JúNIOR, . A Teoria na Prática e a Prática na Teoria: da dogmática à reflexão crítica da Lei Maria da Penha Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 dez 2010, 09:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/22649/a-teoria-na-pratica-e-a-pratica-na-teoria-da-dogmatica-a-reflexao-critica-da-lei-maria-da-penha. Acesso em: 22 nov 2024.
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