Coautora: Gisele Teixeira Gonçalves. Acadêmica do curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONTRATO DE DEPÓSITO; 3. A PRISÃO DO DEPOSITÁRIO E OS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE; 4. A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO QUE TANGE A PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL; 5. CONCLUSÃO; 6. REFERÊNCIAS.
RESUMO
O estudo do presente tema justifica-se pela relevância teórica e prática que possui no processo democrático. Neste artigo, serão analisadas questões suscitadas a partir de polêmicas emergentes sobre a legitimidade da prisão do depositário infiel em face da ordem constitucional brasileira e do ordenamento jurídico internacional vigente.
PALAVRAS-CHAVE: Depositário Infiel - Prisão Civil - Ordenamento Constitucional – Tratado Internacional.
1. INTRODUÇÃO
A prisão civil por dívida oriunda de inadimplemento de prestação alimentícia e de depositário infiel é prevista pela Constituição da República Federativa do Brasil e regulamentada por lei ordinária. A doutrina diverge com relação à eficácia da previsão dessa prisão. Enquanto, para uns, trata-se de eficácia plena, uma vez que o constituinte não incluiu no inciso LXVII do artigo 5º a expressão na “forma da lei”, para outros, a Carta Magna abre exceção permissiva, mas de eficácia contida, não sendo auto-aplicável, isto é, dependente de lei.
No âmbito dessa divergência e, considerando a norma de exceção restritiva de direitos, vale observar que, quando a Constituição Federal admite a prisão do depositário infiel, está se referindo àquela prisão prevista no Código Civil, com base no depósito clássico, vedando, assim, a ampliação dos casos de prisão através de equiparação, sob pena de estenderem a segregação civil e esvaziar-se a garantia constitucional da liberdade.
A Convenção Americana de Direitos Humanos, também chamada de Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, dispõe, em seu o artigo 7º, item 7, que ninguém deve ser detido por dívidas. Esse princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONTRATO DE DEPÓSITO
O contrato de depósito assenta-se precipuamente na confiança, uma vez que não se entrega pertences a outrem sem que nele se possa confiar plenamente. Nesse tipo de contrato existem duas partes, uma nomeada depositário que recebe da outra, denominada depositante, uma coisa móvel, para guardá-la, com a obrigação de restituí-la na ocasião ajustada ou quando lhe for reclamada. O Código de Processo Civil admite, entretanto, o depósito de imóveis (artigo 666, II), no caso de depósito judicial.
A sua principal finalidade é, portanto, a guarda de coisa alheia. Todavia, o termo depósito é empregado em duplo sentido: ora refere-se à relação contratual ou contrato propriamente dito, ora ao seu objeto ou coisa depositada.
Nessa linha, podem ser extraídas algumas características fundamentais que integram essa forma de contrato. A principal delas reside na sua finalidade, que é como foi dito, a guarda de coisa alheia. O segundo traço característico do contrato de depósito é a exigência, para a sua configuração, da entrega da coisa pelo depositante ao depositário. Tal requisito demonstra a natureza real do aludido contrato, que só se aperfeiçoa com a entrega da coisa, não bastando o acordo de vontades. A natureza móvel da coisa depositada desponta em terceiro lugar, dentre as importantes características do depósito. O artigo 627 do Código Civil diz expressamente que, pelo contrato de depósito, recebe o depositário “um objeto móvel”, para guardar, até que o depositante o reclame. Embora o citado artigo se refira apenas a “objeto móvel”, a doutrina moderna e a jurisprudência não excluem a possibilidade de se pôr em depósito um bem imóvel, pois em muitos litígios, determina-se que a coisa litigiosa seja colocada em depósito, até a solução final da lide, é o caso das execuções, em que os imóveis penhorados ou arrestados são entregues a um depositário.
A obrigação de restituir é, também, da essência do contrato de depósito, acarretando a sua temporariedade, pois o depositário recebe o objeto móvel, para guardar, até que o depositante o reclame, devendo aquele entregá-lo logo que este lhe exija, salvo em algumas hipóteses específicas mencionadas no artigo 633 do Código Civil, pois se presume que o depósito regular é feito em benefício do depositante. É, ainda, peculiar ao depósito, a gratuidade, salvo se de outra forma for convencionado, em virtude de atividade negocial ou profissão.
O contrato de depósito divide-se em duas modalidades: o voluntário e o necessário. Tais espécies mencionadas possuem regras próprias, no entanto, o artigo 652 do Código Civil, prevê a possibilidade de se compelir o depositário a restituir o depósito, quando exigido, sob pena de prisão não excedente a um ano, aplica-se, como consta expressamente de seu texto, ao depósito voluntário e necessário.
Não se pode deixar de mencionar também o depósito contratual este se confunde com o voluntário e é o mais comum. Resulta do acordo de vontades, com livre escolha do depositário pelo depositante. Aqui o depositário é possuidor direto da coisa, ficando o depositante com a posse indireta. Já o judicial, é determinado por mandado do juiz que entrega a alguém coisa móvel ou imóvel, objeto de um processo, com finalidade de preservá-la até que se decida o seu destino. Fica claro que o depositário judicial não tem posse, mas a mera detenção da coisa, que mantém consigo em nome do Estado e no exercício de um munus.
O depósito pode ser feito pelo proprietário da coisa ou com o seu consentimento expresso ou tácito. No entanto, para ser depositário é necessário ter a capacidade de se obrigar. Por essa razão, o menor e o interdito não podem receber depósitos. Quanto aos requisitos formais, a lei exige a forma escrita para a prova do depósito. O aludido contrato é real, uma vez que se perfaz com a efetiva entrega da coisa, intuitu personae, quando baseado na confiança do depositante no depositário, gratuito ou oneroso. Pode ser unilateral, quando somente o depositário assume obrigações ou bilateral imperfeito, caso sejam atribuídas obrigações ao depositante sob determinadas circunstâncias na hipótese de o depositário tornar-se credor do depositante.
Já no que diz respeito ao depósito necessário também denominado depósito obrigatório, o depositante, por imposição legal ou premido por circunstâncias imperiosas o realiza com pessoa não escolhida livremente. A lei dispensa o requisito formal para a sua prova, que pode ser feita por qualquer meio tendo em vista a urgência de sua efetivação. Não se presume também a sua gratuidade. Em alguns casos, a remuneração está incluída no preço de outros serviços, como é o caso de depósito hoteleiro.
Pode-se dizer, pois, que três são as espécies desse tipo de depósito: o depósito legal, o miserável e o hospedeiro ou hoteleiro. O primeiro decorre do desempenho de obrigação imposta pela lei. A segunda espécie ocorre em virtude de alguma calamidade pública, como enchentes, terremotos, etc. As pessoas, para fugirem aos danos, vêem-se forçadas a depositar seus pertences em lugar seguro. A terceira hipótese de depósito necessário é o realizado por hoteleiros ou hospedeiros, também denominado necessário por assimilação, que se equipara ao depósito legal, como enuncia o artigo 649 do Código Civil. E por fim, o depósito pode ser classificado como irregular no momento em que o depositário tiver o poder de dispor, utilizar da coisa depositada e restituí-la por outra da mesma qualidade e quantidade, em contrapartida, o depósito regular ou ordinário é caracterizado pela infungibilidade da coisa depositada. É esta que se identifica pelos seus aspectos individuais, e não outra igual que deve guardar conservar e restituir.
3. A PRISÃO DO DEPOSITÁRIO E OS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE
A proposta da Justiça é corrigir dentro dos parâmetros da razoabilidade e da proporcionalidade.
Esse poder de coerção parece ser um recurso válido na ação da busca por resultados, contudo, desde que usado não como intimidador, mas como verdadeiro restaurador do equilíbrio nas relações sociais. E, nessa dinâmica das relações entre as forças sociais deve sempre prevalecer os direitos e garantias fundamentais.
Dentro dessa perspectiva, a privação da liberdade do depositário infiel não parece encontrar legitimidade no seio da sociedade, uma vez que carece de outras necessidades, como o resgate de valores sociais que transcendam o homem para além da sua satisfação a qualquer preço de um crédito a que tem direito.
Assim, para uma análise da procedência da coerção aqui considerada há de se fazer a ponderação entre os vários elementos envolvidos: bens, interesses, valores, direitos, princípios, razões, sem deixar, por óbvio, de considerar o comportamento afrontoso ao qual a justiça é submetida por parte dos depositários, quando estes deixam de entregar os bens sem qualquer justificativa para tanto.
Sob a ótica da razoabilidade, o tema exige o senso comum, a aceitabilidade perante a lei e a sociedade, para que seja revestido de legitimidade. Exige, além disso, a análise entre a norma e a realidade observada, juntamente com o critério distintivo adotado (infidelidade do depositário) e a medida discriminatória (prisão) numa relação de equivalência entre três grandezas finais (satisfação do credor, encargo público assumido versus valor, liberdade).
4. A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO QUE TANGE A PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL
O Supremo Tribunal Federal deixou claro que, desde a ratificação dos Tratados Sobre Direitos Humanos, pelo Brasil, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 27, de 25/09/92 e promulgada pelo Decreto nº 678, de 06/11/92), não haveria mais base legal para a prisão civil do depositário infiel, prevista no artigo 5º, LXVII da Constituição Federal/88, mas apenas para a prisão civil decorrente de dívida de alimentos.
Esse entendimento tem como causa subjacente a questão sobre a validade da prisão civil do depositário infiel, contida na Convenção Americana de Direitos Humanos, a qual dita o seguinte: “Ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar” (artigo 7º, 7), que é, porém, claramente acolhida pela Carta Magna, a qual dispõe: “Não haverá prisão civil por dívida, salvo do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
A controvérsia entre tais diplomas colocou em questão a hierarquia assumida pelos tratados e convenções internacionais de proteção dos direitos humanos em nosso ordenamento jurídico, tendo por fundamento o artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal.
Contudo, com o surgimento da Emenda Constitucional nº 45/04 que acrescentou o § 3º ao artigo 5º da Constituição Federal, esse conflito desapareceu, visto que, os tratados passariam a ser equivalentes às emendas constitucionais se preenchidos os seguintes pressupostos, quando tratarem de matéria relativa a direitos humanos; e quando aprovados pelo Congresso Nacional, em dois turnos, pelo quorum de três quintos dos votos dos respectivos membros. Obedecidos tais requisitos o tratado terá índole constitucional, podendo revogar norma constitucional anterior, desde que em beneficio dos direitos humanos, e tornando-se imune a supressões ou reduções futuras, diante do que dispõe o artigo 60, § 4º, IV (as cláusulas pétreas, não podem ser suprimidas, nem reduzidas nem mesmo por emenda constitucional).
Ficou, então, o seguinte questionamento, o Pacto de São José da Costa Rica, promulgado anteriormente à Emenda Constitucional nº 45/04, para tornar-se equivalente às emendas constitucionais e proibir a prisão do depositário infiel, necessitaria ser aprovado pelo Congresso Nacional pelo quorum de três quintos dos votos dos respectivos membros?
O Supremo Tribunal Federal, no HC nº 87.585/TO, do qual foi relator o Ministro Marco Aurélio, na data de 03/12/08, decidiu que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, se não incorporados na forma do artigo 5º, § 3º da Constituição Federal, quando serão equivalentes à emendas constitucionais, têm natureza de normas supralegais, tornando ineficaz todo o ordenamento infraconstitucional em sentido contrário.
O entendimento vencedor, segundo o qual os tratados têm status “supralegal”, foi orientado pelo Ministro Gilmar Mendes e seguido pelos Ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Carmem Lúcia e Menezes Direito. De acordo com Gilmar Mendes, a equiparação à constituição dos textos dos Tratados e Convenções Internacionais sobre direitos humanos de que o Brasil é signatário seria um “risco para a segurança jurídica”. Segundo essa corrente, para ter força constitucional, mesmo os tratados anteriores à Emenda Constitucional nº 45/04 devem seguir o rito das emendas constitucionais.
Assim, a prisão do depositário infiel não foi considerada inconstitucional, pois sua previsão segue na Constituição (que é, segundo os Ministros, superior aos tratados), mas, na prática, passou a ser ilegal.
De qualquer modo, é possível concluir, de acordo com a Excelsa Corte, que o Pacto de São José da Costa Rica, subscrito pelo Brasil, torna inaplicável a legislação com ele conflitante, não havendo mais base legal para a prisão civil do depositário infiel, tornando possível, apenas a prisão civil do devedor de alimentos.
5. CONCLUSÃO
Diante do exposto, pode-se perceber que o reconhecimento por parte das autoridades competentes, em função dos princípios fundamentais consagrados pela Constituição, impôs uma interpretação favorável aos direitos humanos para tal questão, visto que, é possível concluir que a proibição da prisão civil do depositário infiel, previsto no Pacto de São José da Costa Rica, vem reafirmar, sobremaneira, os valores prezados pelo constitucionalismo contemporâneo em prol dos direitos humanos mundialmente reconhecidos. Daí a necessidade de ponderação, evitando-se o sacrifício total da liberdade mediante outras maneiras alternativas de buscar o recebimento dos créditos e de fazer com que o jurisdicionado respeite as instituições.
6. REFERÊNCIAS
BRASIL, Constituição, 1988. Disponível em Acesso em 19 nov. 2010.
BRASIL, Decreto 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em Acesso em 18 dez. 2010.
CAPEZ, Fernando. A prisão civil do depositário infiel na visão do Supremo Tribunal Federal. Disponível em Acesso em 18 dez. 2010.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v3.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Dos Contratos e das Declarações Unilaterais da Vontade - 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
TRATADO INTERNACIONAL. Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) ratificada pelo Brasil em 25.09.1992. Disponível em Acesso em 18/12/2010.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Contratos em espécie. 5. ed. São Paulo: Atlas. 2005. v3.
Acadêmica do curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Paula Graciele Pereira. A prisão civil do depositário infiel em face da Constituição Federal e do Pacto de São José da Costa Rica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 dez 2010, 08:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/22827/a-prisao-civil-do-depositario-infiel-em-face-da-constituicao-federal-e-do-pacto-de-sao-jose-da-costa-rica. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
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