SUMÁRIO: INTRODUÇÃO - 1 Quando o aspecto subjetivo não tem valor - 2 Quando o aspecto subjetivo tem valor - 3 A indecisão do sistema jurídico-penal brasileiro - CONCLUSÕES - BIBLIOGRAFIA.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende analisar, preliminarmente, as ocasiões em que o direito penal brasileiro não leva em consideração o aspecto subjetivo da conduta criminosa, isto é, as ocasiões em que não leva em consideração o que o indivíduo pensa, sente, deseja, intenciona, etc.
Posteriormente, pretende examinar as ocasiões em que o direito penal brasileiro leva em consideração o aspecto subjetivo da conduta criminosa. Para tanto, será necessário trazer a lume o sistema da responsabilidade penal subjetiva, que marca o direito penal brasileiro da atualidade.
Em seguida, a presente pesquisa tem por objetivo verificar o grau de coerência do sistema penal brasileiro à luz dos aspectos subjetivos do crime, procurando trazer à tona os problemas que podem surgir a partir do modelo que ora considera o aspecto subjetivo e ora desconsidera tal aspecto.
1 Quando o aspecto subjetivo não tem valor
Em quatro situações que merecem relevo, o direito penal brasileiro não leva em consideração o aspecto subjetivo do comportamento humano. São elas: 1) cogitação não exteriorizada; 2) crime impossível; 3) crime putativo; e 4) crime culposo.
A primeira situação em que o direito penal não leva em consideração a realidade psíquica do indivíduo (pensamentos, sentimentos, emoções, etc.) ocorre quando o sujeito pensa em praticar um crime, mas não chega a iniciar a execução deste. Aqui, o agente faz planos, nutre desejos, tem sensações negativas, intenciona, mas não chega a se manifestar. Todo o conteúdo supostamente repreensível que se passa em sua mente não é levado em consideração pelo direito penal. Vale, aqui, a máxima latina “cogitationes poenam nemo patitutur”. A mera cogitação não pode ser punida porque, segundo frisa Paulo José da Costa Junior[1], “solus Deus est cordium scrutator”. Não é dado aos homens interferir no que pensa ou sente qualquer indivíduo. “Castigar o pensamento”, segundo Francesco Carrara[2], “é a fórmula comum com que se designa o apogeu da tirania”.
A segunda situação em que o direito penal não leva em conta a realidade psíquica do indivíduo (pensamentos, sentimentos, emoções, etc.) ocorre quando o sujeito pensa em praticar um crime, mas não consegue executá-lo por impropriedade absoluta do objeto ou por absoluta ineficácia do meio utilizado.
A primeira hipótese – impropriedade absoluta do objeto – ocorre quando inexistente o objeto material, isto é, quando inexistente a pessoa ou a coisa sobre a qual deveria recair a conduta criminosa. É o caso, por exemplo, do indivíduo que tenta matar alguém já morto, que tenta praticar abortamento em mulher que não se encontra grávida, etc.
A segunda hipótese – ineficácia absoluta do meio – ocorre, segundo Nelson Hungria[3], “quando este, por sua própria essência ou natureza, é incapaz, por mais que se reitere o seu emprego, de produzir o evento a que está subordinada a consumação do crime”. São exemplos citados por Damásio Evangelista de Jesus[4]: tentar envenenar alguém por meio da ministração de açúcar (supondo-o arsênico), tentar atirar em alguém com arma descarregada (supondo-o carregada).
Em ambas as situações, o sujeito supõe que seu comportamento preenche o conjunto de elementos de determinado tipo penal, quando, na verdade, não os preenche. É o que afirma Miguel Ángel Nuñez Paz[5]:
(...) na tentativa inidônea, o autor crê erroneamente na concorrência de um elemento objetivo do tipo inexistente (dispara contra uma pessoa morta, crendo-a viva; trata-se do chamado erro de tipo ao revés.
Ocorre que, no crime impossível, também se ignoram as intenções do indivíduo. Por mais cruéis e perversos que possam ser os pensamentos do sujeito ativo, o direito penal considera que seu comportamento, em razão de não representar risco efetivo ao bem jurídico, não pode ser punido sequer a título de tentativa.
A propósito, no campo do processo penal, o Supremo Tribunal Federal já consagrou, por meio da Súmula 145, o entendimento de que há crime impossível quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a consumação do crime. Assim, mesmo que os pensamentos do sujeito ativo sejam inequivocamente voltados para a prática de determinado crime, crime algum se configura se a consumação delitiva não pode ocorrer por conta da própria ação da polícia. Em outras palavras, por piores que possam ser as intenções do sujeito ativo, o fragrante preparado afasta a tipicidade de seu comportamento.
A terceira situação em que o direito penal não leva em conta o aspecto anímico do comportamento delituoso se dá na seara do crime putativo. No delito putativo, segundo Maggiore[6], “o agente crê haver efetuado uma ação delituosa que existe somente em sua fantasia; em outras palavras, julga punível um fato que não merece castigo”.
No Brasil, o delito putativo também não recebe punição. É o que esclarece Marina Becker[7]:
O crime putativo por erro sobra a ilicitude do fato, ou erro de direito às avessas, ocorre quando o agente, equivocadamente, considera que sua conduta é proibida. Esta figura é expressamente prevista na legislação italiana: “Non è punible chi commette un fatto con costituinte reato, nella supposizione erronea che constituisce reato”. Esta disposição é ociosa e, acertadamente, não foi prevista pelo legislador brasileiro. É desnecessário dizer que não se punde o agente que cometeu um fato que não é crime. A errônea suposição do agente é totalmente irrelevante para o direito, e a impunidade deriva do princípio da legalidade.
Assim, mesmo apresentando pensamentos negativos e censuráveis sob o ponto de vista moral, o sujeito ativo não recebe qualquer sanção penal pela prática de um delito putativo. Daí por que, mais uma vez, o aspecto anímico da conduta é desconsiderada pelo Direito Penal.
A quarta situação em que se deixa de lado o elemento subjetivo da conduta se refere à culpa em sentido estrito. Nos crimes culposos, como se sabe, o agente não tem seu pensamento dirigido à produção do resultado; pelo contrário, o agente, na maioria das vezes, sequer praticaria o comportamento se antevesse os efeitos que sua atuação produziria. Trata-se, portanto, de certa responsabilização objetiva, conforme assinala Mario C. Tarrió[8]:
La imputación objetiva del resultado: La relación entre la acción violatoria del deber de cuidado y el resultado se podrá imputar objetivamente cuando, de haber sido realizada la acción prudente, no se habría producido el resultado. De aquí se deduce que, en general, no se dará la tipicidad si el resultado se hubiera producido aunque el autor hubiera puesto el cuidado exigido. En definitiva, resulta suficiente con que la acción ajustada al deber de cuidado hubiera impedido posiblemente la producción del resultado. Este requisito se denomina “conexión de antijuridicidad”, con lo que quiere expresarse que el resultado debe ser imputable objetivamente a la acción realizada sin el debido cuidado”.
Nas quatro situações acima apresentadas, o direito penal revela que o aspecto subjetivo não lhe importa; importante é, na verdade, a ocorrência do dano, da lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico.
2 Quando o aspecto subjetivo tem valor
Tomando-se por base o exposto no item anterior, poder-se-ia pensar que o direito penal se submete a um sistema de responsabilidade objetiva, para o qual não tem importância o que o indivíduo pensa, sente e quer, sendo-lhe importante tão-somente o resultado lesivo.
Entretanto, o sistema da responsabilidade penal objetiva, que chegou a vigorar nos primórdios do direito penal, foi há muito tempo superada. Atualmente, vigora o sistema da responsabilidade subjetiva, para o qual os pensamentos, os sentimentos e a vontade do indivíduo importam.
Só há crime, de acordo com o sistema da responsabilidade penal subjetiva, quando o sujeito apresenta um determinado suporte anímico (imprevisão do previsível, no mínimo).
Assim, o direito penal dá importância ao aspecto subjetivo (submete-se, portanto, ao sistema da responsabilidade penal subjetiva), mas apenas quando este se exterioriza por meio de uma ação ou de uma omissão. Pode-se dizer que o que não tem importância num primeiro momento – pensamentos, sentimentos, vontades – passa a ser importância num segundo momento.
Fato é que o modelo subjetivo, apoiado pela Teoria Finalista da Ação, se faz sentir em diversos segmentos do sistema penal. No direito penal brasileiro, essa perspectiva se apresenta de maneira muito clara em diversos canais do ordenamento jurídico. Um a um, estes canais mostram que o sistema penal pátrio, a exemplo do que se verifica no restante do mundo, encontra seu alicerce não apenas no campo da manifestação do pensamento, mas também, e sobretudo, no campo do pensamento em si.
O primeiro desses canais, indubitavelmente, diz respeito à classificação geral dos crimes em dolosos, culposos e preterdolosos, canal do qual defluem, aliás, todos os demais. As noções de dolo e de culpa, conceitos surgidos inicialmente como elementos da culpabilidade[9], representam, por assim dizer, a pedra angular no que tange à subjetivação do Direito Penal. E a justificativa para a construção desses dois elementos é assim apresentada por Francisco de Assis Toledo[10]:
Com o passar do tempo e com o aprimoramento da cultura, começou-se a perceber a grande diferença existente entre o causar inevitavelmente um dano e o causar um dano inevitável. Da observação talvez dos fenômenos físicos da natureza, percebeu-se que existe algo que distingue, por exemplo, a morte causada por um raio da morte resultante de um assassinato. E percebeu-se mais: percebeu-se que esse algo, esse que distingue um fato do outro, constitui um importante aspecto só peculiar ao agir humano – a evitabilidade do fato. Percebeu-se, ainda, que essa evitabilidade do fato residia no interior do ser humano, no seu psiquismo, isto é, na faculdade que tem o homem de prever os acontecimentos, de não querer ou de querer esses acontecimentos e, portanto, de evitá-los, de provocá-los em certas cirucnstâncias, de manipulá-los (...). Com isso, ao lado da evitabilidade descobriu-se igualmente a previsibilidade e a voluntariedade do resultado danoso.
A diferença entre cada uma dessas modalidades delitivas repousa única e exclusivamente na zona do pensamento, da vontade.
Na modalidade direta do crime doloso, o sujeito pratica a conduta pensando em produzir o resultado lesivo. No crime doloso, em sua modalidade indireta, o sujeito pratica a conduta pensando que, se vier a produzir o resultado lesivo, assumi-lo-á (dolo eventual), ou pensando em produzir qualquer dos resultados que venham a se lhe abrir como alternativos, ainda que lesivo (dolo alternativo). No crime culposo com consciência (culpa consciente), por sua vez, o sujeito pratica a conduta pensando que o resultado lesivo por ele previsto não será produzido. Já na modalidade inconsciente do crime culposo (culpa inconsciente ou em sentido estrito), o sujeito pratica a conduta pensando em produzir resultados não lesivos, mas, por falta de cuidado e de previsão, vem a produzir um ou mais resultados lesivos. No crime preterdoloso, por fim, o sujeito pratica a conduta pensando em produzir um determinado resultado lesivo, mas, por falta de previsão e de cuidado, vem a produzir resultado lesivo diverso e mais grave. Como se percebe, a diferença entre todas essas modalidades de crime repousa unicamente no elemento subjetivo, já que, em termos objetivos, pode não haver qualquer distinção.
Vale mencionar, quanto a esse primeiro canal de subjetividade, que, segundo Patrícia Laurenzo Copello[11]:
(...) o dolo, como pressuposto do delito, aparece pela primeira vez no Direito romano, onde foi concebido com perfis muito nítidos e definidos, identificando-o com a intenção ou, melhor ainda, com a “má intenção” ou malícia na realização do fato ilícito. Desde modo, ficava superada a primitiva concepção do ilícito penal como mera causação objetiva de resultados, exigindo-se a “intenção imoral dirigida a um fim antijurídico” – o “dolus malus” – como fundamento para a aplicação da pena pública.
Impende registrar que, dentro dos limites da classificação dos crimes em dolosos, culposos e preterdolosos, há margem ainda para uma subjetivação mais profunda, de maneira que o legislador se vê à vontade para prever, em certas figuras delitivas, o chamado dolo específico, bem como para não prever, em determinados tipos penais, a modalidade culposa ou, ainda, para prever o preterdolo em casos estritamente especiais. Isso sem falar da reconhecida intensidade do dolo e da culpa, a qual serve de parâmetro para a aplicação da pena. Todas essas questões, vale frisar, possuem relação direta com o pensamento, afinal, quanto mais o indivíduo pensa em provocar a morte de outrem, maior o seu dolo homicida; quanto menos o indivíduo pensa nas conseqüências que seu ato perigoso pode gestar, maior a sua culpa inconsciente. Em outras palavras, a divisão dos crimes em dolosos, culposos e preterdolosos é medida por uma fita que procura se ajustar à exata formatação dos pensamentos encontrados na mente do sujeito ativo.
O segundo canal de subjetividade, por seu turno, acena para a punibilidade da tentativa. Como se sabe, no sistema penal brasileiro, bem como no sistema encontrado na maioria dos país, a tentativa é punível mesmo quando não chega sequer a produzir lesão. Daí por que, no que se refere à tentativa, salta aos olhos o caráter subjetivo do sistema penal. Afinal, se, por ventura, o Direito Penal levasse em consideração apenas o aspecto externo da conduta, a tentativa não seria punível nos casos em que não chegasse a produzir nenhuma lesão. Por igual raciocínio, nas situações em que o conatus chegasse a produzir alguma lesão, o autor haveria de responder unicamente pela lesão causada, e não pelo resultado visado. Entretanto, como, neste particular, o Direito Penal também se imiscui na esfera subjetiva da conduta, seus braços também alcançam todas as formas de tentativa. É no tema da punibilidade da tentativa, portanto, que se verifica, pela segunda vez, o caráter subjetivo do sistema penal moderno.
Quanto ao terceiro canal de subjetividade, este fica por conta dos intitutos da desistência voluntária, do arrependimento eficaz e do arrependimento posterior. Na desistência voluntária, como se sabe, o sujeito tem condições objetivas de continuar a execução delitiva, mas, ao pensar melhor no que está fazendo, deixa de prosseguir. No arrependimento eficaz, o sujeito, que já esgotou todos os possíveis meios de ofensa, pensa melhor no que acabou de fazer e resolve agir no sentido de evitar que o resultado lesivo se produza. No arrependimento posterior, o sujeito, que já consumou o delito, pensa melhor no que faz e resolve restituir a coisa ou reparar o dano. Como se observa, o Direito Penal, por meio desses institutos, ingressa mais uma vez no campo do pensamento, a fim de alterar as conseqüências penais a serem suportadas pelo sujeito ativo. É certo que a configuração dos mencionados institutos depende de requisitos outros, mas o requisito que serve de base a todos eles é o recompensável pensamento do agente. Benefícios são concedidos porque o Direito Penal, ao ingressar na zona do pensamento do agente, encontra algo merecedor de recompensa. Mesmo quando se registra a ausência de qualquer dos requisitos necessários à configuração dos referidos institutos, o prestígio ao benéfico pensamento do indivíduo se dá pela via de alguma circunstância a ser considerada na dosagem da pena.
O quarto canal de subjetividade, por sua vez, prende-se à matéria do erro jurídico-penal, mais especificamente na seara do erro de tipo na formação da vontade e do erro de proibição. No erro de tipo essencial na formação da vontade, o sujeito pratica a conduta criminosa sem saber que está a prencher os elementos de determinado tipo penal; no erro de proibição direto, o sujeito pratica um crime sem saber que sua conduta é considerada criminosa; no erro de proibição indireto, o sujeito pratica um crime pensando estar agindo sob o agasalho de alguma descriminante. Nessas três situações, portanto, o elemento subjetivo da conduta mais uma vez se expõe à luz, e o Direito Penal o considera, com especial atenção, para efeito de fixar a adequada responsabilização criminal.
O quinto canal de subjetividade diz respeito à matéria das causas de exclusão da ilicitude. Vale observar, neste contexto, a afirmação de Miguel Reale Junior[12]:
Assim, da ocorrência de todos os elementos da figura permissiva pode-se inferir a subjetividade do agente no sentido de ser movido pela intenção de agir para se defender (...).
Assim, as justificantes previstas pelo sistema jurídico-penal somente se configuram quando o sujeito sabe que está agindo sob a proteção do Direito. O pensamento do agente, portanto, deve estar dirigido para o uso de uma dada permissão. Desse modo, pode-se dizer que, também na matéria das descriminantes, o Direito Penal leva em consideração o pensamento do indivíduo.
Quanto ao sexto canal de subjetividade, este se atrela à matéria da culpabilidade. Todas as causas que excluem a culpabilidade, e mesmo as que apenas atenuam o grau de censurabilidade, estão ligadas, de algum modo, ao pensamento. A imputabilidade, por exemplo, pode ser definida, de maneira sintética, como sendo a capacidade de pensar com lucidez; o potencial conhecimento do caráter ilícito do fato, por seu turno, tem estreita relação com a possibilidade de que dispõe o sujeito ativo para pensar na perspectiva de sua conduta à luz do ordenamento jurídico; a exigibilidade de conduta diversa, por fim, também afeta, ainda que indiretamente, a zona do pensamento, já que, tanto na hipótese da coação moral irresistível quanto na hipótese da obediência hierárquica, a pressão sofrida pelo agente se dá no campo psicológico. Todas essas questões, portanto, bem como os temas da emoção e da paixão, não escapam à esfera subjetiva que lugar de especial importância ocupa no Direito Penal. A censurabilidade do comportamento delitivo, pode-se dizer, passa também, e principalmente, pela veia subjetiva da conduta.
O sétimo canal de subjetividade encontra sede na matéria do concurso de pessoas. Como se sabe, a configuração do concursus delinquentium se dá quando os sujeitos ativos se conectam por um liame psicológico, isto é, quando os sujeitos envolvidos, previamente ou por adesão no momento da conduta, pensam em praticar o crime coletivamente. A questão subjetiva, portanto, recebe mais uma vez atenção do Direito Penal.
Quanto ao oitavo e último canal de subjetividade, este se refere às diversas circunstâncias de caráter subjetivo que, no momento da dosagem da pena, operam como circunstâncias judiciais, agravantes ou atenuantes, qualificadoras ou privilégios ou, ainda, como causas de aumento ou diminuição de pena. Neste campo, o Direito Penal indisfarçadamente invade o campo do pensamento para estabelecer maior ou menor punição. O pensamento do agente, aqui, ganha tom especial, e o julgador, animado pelas diversas concessões fornecidas pela lei, trabalha na zona do subjetivo para, ao final, aplicar a pena.
Outros vários canais de subjetividade existem, como é o caso da delação premiada prevista pela legislação especial, mas os principais canais pelos quais se manifesta o caráter subjetivo do Direito Penal encontram-se delineados acima. Como dito, quase todos os canais partem de um denominador comum, qual seja, a classificação dos crimes em dolosos, culposos e preterdolosos. A causalidade normativa, que limita o regressus ad infinitum em matéria de nexo causal, é, por assim dizer, a regra que forja toda a estrutura subjetiva caracterizadora do sistema penal moderno. Sempre que um fato objetivamente criminoso é praticado, o Estado imediatamente examina o pensamento do agente para determinar se o crime é doloso, culposo ou preterdoloso, defluindo desse ponto de partida todas as demais regras concernentes à tentativa, ao erro, etc.
Todos os canais de subjetividade apontados servem, portanto, para mostrar que o Direito Penal brasileiro, cujo sistema se assemelha à da maioria dos país, tem uma estrutura que não se sustenta apenas na conduta objetiva, tampouco na lesão ou ameaça de lesão, mas se apóia, de maneira proeminente, no aspecto subjetivo da conduta, levando em consideração não apenas a manifestação do pensamento, mas o próprio pensamento em si.
3 A indecisão do sistema jurídico-penal brasileiro
De certo modo, o sistema jurídico-penal brasileiro se revela indeciso. Indeciso porque, em certas situações, desconsidera o aspecto subjetivo sob a alegação de que a mente humana é imperscrutável e que não é dado ao Homem o poder de punir pensamentos. Em outras situaçoes, porém, considera o aspecto subjetivo sob a alegação de que o comportamento externo só pode ser censurável se dado elemento anímico lhe der suporte.
Diante da constatação realizada, é preciso que se afaste, desde já, a ideia de que o direito penal não pune os pensamentos em razão de serem insondáveis. Pune-os, sim, quando se manifestam por meio de uma ação ou omissão causadora de dano. E se o direito penal os pune, o indivíduo pode pensar qualquer coisa, mas, dependendo do que pensar, será punido, se expressar, tanto pela manifestação quanto pelo pensamento. Nessa medida, a liberdade de pensamento é como a liberdade que tem um diabético de consumir açúcar: pode-se ter qualquer pensamento, desde que, porém, não se venha a manifestá-lo, se contrário aos interesses sociais.
É preciso que se entenda, ainda, que o sistema penal que considera importante apenas o vínculo pensamento-dano (não só o pensamento, nem só o dano) é um sistema que deixa sem solução um problema de grande extensão. Para que se compreenda o problema, valem os seguintes exemplos:
1) A atropela B sem querer, matando-o culposamente;
2) C atira em D com a intenção de matar, mas D já está morto;
3) E pratica um crime sem saber que é crime, tendo, porém, possibilidade de saber; e
4) F pratica um fato atípico pensando estar praticando um crime.
O problema, nos exemplos dados, é um problema de justiça. Sob o ponto de vista subjetivo, C e F apresentam-se muito mais perigosos para a sociedade e muito mais censuráveis moralmente do que A e E. Entretanto, C é absolvido por crime impossível e F é absolvido por crime putativo; A, porém, é punido por homicídio culposo e E é por punido a título de culpa. De longe se vê que as soluções apresentadas pelo direito penal são injustas, ferem o senso comum e o sentimento ético da sociedade.
CONCLUSÕES
Ante o exposto, pode-se concluir o seguinte:
1) O direito penal brasileiro não leva em conta o aspecto subjetivo nas hipóteses de mera cogitação, de crime impossível, de crime putativo, de crime culposo e de ação livre na sua causa;
2) O direito penal brasileiro leva em conta o aspecto subjetivo, porém, nas hipóteses em que se produz certo resultado lesivo. Para evitar o sistema da responsabilidade penal objetiva, o direito brasileiro exige a configuração de um dado suporte anímico;
3) O direito penal brasileiro não considera o aspecto subjetivo desacompanhado da exteriorização, e não considera a exteriorização desacompanhada do aspecto subjetivo; leva em conta, portanto, o binômio pensamento-dano;
4) O modelo brasileiro baseado no binômio pensamento-dano é um modelo um tanto quanto indeciso – considera o mesmo objeto importante e não importante – e que não resolve o problema da injustiça que se verifica em certos casos que o sentimento ético resolveria de forma diferente;
BIBLIOGRAFIA
BECKER, Marina. Tentativa Criminosa. São Paulo: Saraiva, 2004.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Vol.I. 12 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010.
JESUS, Damásio Evangelista. Direito Penal – Parte Geral. Vol. I. 28 ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
JUNIOR, Miguel Reale. Instituições de Direito Penal – Parte Geral. Vol. I. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, Rio de Janeiro, 2006.
JUNIOR, Paulo José da Costa Junior. Curso de Direito Penal.10 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
TARRIÓ, Mario C. Teoría finalista del delito y dogmática penal. Buenos Aires: Cathedra Jurídica, 2008.
[1] Paulo José da Costa Junior, Curso de Direito Penal, p.86.
[2] Francesco Carrara apud Marina Becker, Tentativa Criminosa, p.52.
[3] Nelson Hungria apud Rogério Greco, Curso de Direito Penal – Parte Geral, p.277.
[4] Damásio Evangelista de Jesus, Direito Penal – Parte Geral, p.351.
[5] Miguel Ángel Nuñez Paz apud Rogério Greco, Curso de Direito Penal – Parte Geral, p.276.
[6] Giuseppe Maggiore apud Rogério Greco, Curso de Direito Penal – Parte Geral, p.280.
[7] Marina Becker, Tentativa Criminosa, p.184.
[8] Mario C. Tarrió, Teoría finalista del delito y dogmática penal, p.163.
[9] Conforme acentua José Francisco Cagliari, o dolo e a culpa, na Teoria Psicológica da Culpabilidade e na Teoria Psicológica-Normativa da Culpabilidade, integravam a culpabilidade. Foi a partir da Teoria Finalista da Ação que o dolo e a culpa passaram a integrar a tipicidade. O pós-finalismo, por sua vez, apresenta autores (Wessels, Roxin e outros) que defendem a dupla posição de dolo e da culpa, elementos que fariam parte tanto da tipicidade quanto da culpabilidade).
[10] Francisco de Assis Toledo apud José Francisco Cagliari, O dolo e a culpa na evolução do conceito de culpabilidade, p.12.
[11] Patrícia Lourenzo Coppelo apud por Rogério Greco, Curso de Direito Penal – Parte Geral, p.177.
[12] Miguel Reale Junior, Instituições de Direito Penal – Parte Geral, p.160.
Advogado. Mestrando em Direito Penal pela PUC/SP<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, Arthur Davis Floriano. A fase psicológica no direito penal brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 mar 2011, 07:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/23882/a-fase-psicologica-no-direito-penal-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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