Como entender a violência contemporânea? Como entender a legitimação da violência em nossa sociedade?
No Brasil, mais de 50 mil pessoas são assassinadas por ano. Crimes que desafiam a compreensão humana surgem em cascatas, diante dos olhos de todos, diuturnamente.
É preciso que compreendamos que a violência é uma manifestação da luta pelo poder, melhor dizendo, a violência é, essencialmente, política. A frase de C. Wright Mills “Toda política é uma luta pelo poder; a forma básica do poder é a violência” corrobora para o enfoque deste fenômeno desestruturante da sociedade.
A questão da violência está diretamente relacionada ao sistema organizacional político e remete às diferenças sócio-econômicas - as lutas de classes. Para Karl Marx, o Estado se constitui enquanto representante legítimo da classe dominante, exercendo o seu poder sobre a classe dominada. Afirma-se que a violência reside no poder. Mas o que é o poder?
Hannah Arendt, filosofa política, discute a significação do poder como capacidade de dominação sobre o outro. Max Webber conceitua: “afirmar minha própria vontade contra a resistência”. Ora se o poder é afirmação de vontade sobre o outro; haverá de ter duas vértices: os que mandam e os que obedecem.
Poder significa toda oportunidade de impor sua própria vontade, no interior de uma relação social, até mesmo contra resistências, pouco importando em que repouse tal oportunidade. Weber, 1971 .
Partindo do pressuposto de que toda sociedade está estruturada numa relação de poder; seria a dominação um instinto humano? Segundo Bertrand de Jouvenel “Comandar e obedecer, sem isto não há poder – e, com isto, nenhum outro atributo é necessário para que ele exista..” percebe-se então que o poder é coercitivo. Neste caso, pode-se arrolar como exemplos: a guerra em si, as agressões humanas cuja capacidade de poder resida em equipamento de fogo etc.
Dentro das discussões que se instauram, ao se estudar a Violência, há as de Alexander Passerin d’Entrevés em A noção do Estado. O autor em questão tenta distinguir o poder da força do poder que é exercido. Considera que o poder é uma violência mitigada, cuja virulência depende do grau de legitimação no sistema político. Donde se pode concluir que sendo a força aparada pela lei, ela tende a abandonar o seu caráter arbitrário, o que não implica, necessariamente, no desaparecimento da violência por si só.
Hannah Arendet busca, na tradição greco-romana e na formação do Estado – nação europeu - soberano que tem em Jean Bodin (França, século XVI) e em Thomas Hobbes ( Inglaterra, século XVII) seus mais exponenciais teóricos, os elementos que autorizam semelhantes discussões. Convém ressaltar as denominações usadas pelos greco-romanos para este fato sócio-político: monarquia, oligarquia, aristocracia, democracia. Em todas essas palavras estão embutidos conceitos de dominação de um grupo ou indivíduo sobre outro indivíduo ou grupo.
Marx Webber, em seus estudos sociais cujo ponto de partida foi a sociedade alemã e o processo de industrialização, percebe a presença da burocracia enquanto força de dominação; tal fato leva ao pressuposto que a correlação de forças num sistema burocrático conduz a uma impessoalidade que reside na indefinição de autoria; o poder decisório dilui-se nos trâmites burocráticos. Talvez aí estejam as causas para as ações desesperadas de resistência ou contestação direcionadas para um poder cuja força está no anonimato. Talvez aí resida a perplexidade do homem comum diante de uma máquina estatal gigantesca como a nossa. Qual de nós, seres comuns, não passamos pelo non sense do Senhor Joseph K?
O Senhor Joseph K, personagem do livro O Processo de Franz Kafka, em suas ações, revela o embate do sujeito em estado de opressão contra situações alienantes da sociedade. Sr.Joseph K. se vê processado sem nunca chegar a saber por que, fica perdido em um labirinto de leis e procedimentos enigmáticos.
As questões levantadas pelo texto kafkaniano remetem a reflexões quanto ao esfacelamento do sujeito num mundo opressor que se notabiliza pelo sufocamento da imprevisibilidade humana. Não cabe na narrativa um movimento próprio – um gesto sequer eivado de liberdade, um gesto gratuito, espontâneo e humano.
Ademais, o perigo da violência, mesmo que esta se movimente dentro de uma estrutura não–extremista de objetivos a curto prazo, será sempre que os meios poderão dominar os fins. (...) A prática da violência como toda ação, transforma o mundo, mas a transformação mais provável é em um mundo mais violento. Arendet, Hannah, H. Sobre a Violência. RJ, Civilização, 2009
Interessa, neste momento da discussão, salientar que a obediência às leis corresponde à ressonância que nelas podem ainda existir da vontade que lhes deu origem, caso isso não aconteça, as leis tornam-se arbitrárias para os homens. Donde se conclui que o poder é um ato de consentimento. Quando o poder desvincula-se do consentimento dado pela sociedade, abre-se um espaço para a tirania. Há tirania mesmo quando ela ocorre em nome de uma lei cuja base já esteja deserta.
O poder do governo está subordinado a sua representatividade social, já a força de um governo, entenda-se a violência de seus atos, nem sempre se apóia na representatividade social, porém essencialmente, no seu aparato técnico- militar opressor.
A compreensão das relações de poder que se estabelecem num contexto de Todos contra um é consensual; como também as que se estabelecem num contexto de Um contra todos, neste último caso, pressupõe-se o uso de aparatos coercitivos para oprimir o lado oposto (o outro). Outras questões afloram: o que dizer das ações de grupos dissidentes destituídos de elementos coercitivos técnicos que interferem em processo aceito por uma maioria? A ausência de reação da maioria comporta explicações? Há, de fato, um poder potencial conferido a essas minorias pela imensa maioria observadora? Neste ponto, a violência que hoje assalta a sociedade brasileira, sob as mais diversas formas, carece de reflexão.
A política não é o exercício fundado - no quem domina quem, e sim o exercício de um poder consentido mediante leis emanadas da vontade da população. Poder - enquanto detentor de ressonância na sociedade.
O poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido. ARENDT, H. Sobre a Violência. Rj, Civilização, 2009
O discurso de Hannah Arendet segue uma trilha de restituição do sentido às palavras, não com afã simplesmente lingüístico, mas perseguindo propósitos de desnudamento do discurso político.
Advoga-se que o poder político não está vinculado à violência. Na realidade, o poder revela-se em grupos sociais nos quais existam uma consonância de propósitos. A legitimidade de um poder político ocorre no momento de sua fundação, donde se conclui que a legitimidade é um fato passado, constantemente, referendado pelo presente.
A violência surge quando o poder político está enfraquecido e, paradoxalmente, ela que o mantém também o destrói.
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