Resumo
Este trabalho tem como objetivo traçar, de forma simples e objetiva, as bases criminológicas da lei 9.099/95 – Juizados Especiais Criminais – explicitando seus princípios basilares e fazer uma comparação entre o modelo conflitivo da justiça criminal com o novo modelo proposto pela citada lei, um modelo consensual.
Palavras-chave: Criminologia. Princípios. Juizados especiais criminais.
Introdução
A Criminologia “clássica” contemplou o delito como enfrentamento formal, simbólico e direto entre dois rivais – o Estado e o infrator -, que lutam entre si solitariamente, como lutam o bem e o mal; é uma luta sem outro final imaginável que a incondicionada submissão do vencido à força vitoriosa do Direito. Dentro deste modelo criminológico, a pretensão punitiva do Estado, isto é, o castigo do infrator, polariza e esgota a resposta ao fato delitivo, prevalecendo a face patológica sobre seu profundo significado problemático e conflitual.
A moderna Criminologia, por outro lado, é partidária de uma imagem mais complexa do acontecimento delitivo, de acordo com o papel ativo e dinâmico que atribui aos seus protagonistas (delinqüente, vítima, comunidade). Destaca o lado humano e conflitivo do delito, sua aflitividade, os elevados “custos” pessoais e sociais deste problema. Neste modelo teórico, o castigo do infrator não esgota as expectativas que o fato delitivo desencadeia. Ressocializar o delinqüente, reparar o dano e prevenir o crime são objetivos de primeira magnitude.
É justamente nesse modelo “moderno” que se tem entendido a Criminologia como a ciência empírica e interdisciplinar, que se ocupa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social do comportamento delitivo, e que trata de subministrar uma informação válida, contrastada, sobre a gênese, dinâmica e variáveis principais do crime – contemplado esta como problema individual e como problema social –, assim como sobre os programas de prevenção eficaz do mesmo e técnicas de intervenção positiva no homem delinqüente e nos diversos modelos ou sistemas de resposta ao delito[1].
Com a adoção dessa moderna idéia, tem-se uma nítida ampliação do objeto da criminologia, ou seja, passa-se a ter uma preocupação com a vítima – que, de uma forma geral, era relegada ao segundo plano no cenário criminal – e com a reparação do dano.
Colocando isso em termos práticos, a absorção dessa nova visão criminológica, só passou a ter uma roupagem mais robusta no cenário nacional com a Lei 9.099/95 – Lei dos Juizados Especiais.
A base consensual dos Juizados especiais
Nota-se, hoje, uma forte tendência de se separar a “grande” da “pequena e média” criminalidade, ou seja, criminalidade de pequeno ou médio potencial ofensivo e de grande potencial ofensivo.
Deduz dessa lógica que para cada espécie de criminalidade, “reações” não só quantitativa senão também qualitativamente distintas, com instrumentos e processos, assim como procedimentos distintos devem existir. Ainda assim, devem ficar delimitados meios distintos de se alcançar essas “reações”, quer dizer, para até a média criminalidade um espaço de consenso, e para a “grande” criminalidade um espaço de conflito (nada além do que já se tem na justiça comum, rito ordinário).
A Lei 9.099/95, com vigência em todo o território brasileiro desde novembro de 1995, teve como base esse modelo consensual. O art. 2º enfatiza que o processo, nas infrações de pequeno e médio porte, além da simplicidade, oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, deve buscar, sempre que possível, a conciliação ou a transação.
Como bem esclarece Luiz Flávio Gomes:
“Em lugar de a atividade jurisdicional penal servir única e exclusivamente aos interesses coligados com a pretensão punitiva estatal, a orientação agora é outra: nas hipóteses mencionadas, sobressaem como mais relevantes os interesses da vítima. A reparação do dano, na hipótese enfocada, é o quantum satis para a resposta estatal. Entendeu-se que só ela é suficiente para afastar a necessidade de qualquer sanção penal. Isso significa colocar o Direito Penal como ultima ratio do sistema. Se outras medidas menos drásticas revelam-se adequadas para o efeito preventivo, não deve incidir o Direito Penal[2].”
Esse modelo consensual instituído pela citada Lei tem sua base em três princípios: a) princípio da oportunidade; b) princípio da autonomia da vontade; e c) princípio da desnecessidade da pena de prisão.
Em primeiro lugar vale ressaltar a distinção existente entre o princípio da indisponibilidade e o da obrigatoriedade. No âmbito deste, diz-se que os órgãos incumbidos da persecução penal, estando presentes os permissivos legais, estão obrigados a atuar. Aquele, nas lições de Nestor Távora: “é uma decorrência do princípio da obrigatoriedade, rezando que, uma vez iniciado o inquérito policial ou o processo penal, os órgãos incumbidos da persecução criminal não podem deles dispor.[3]”
O princípio aqui discutido, qual seja, da oportunidade, nada mais é do que um mitigador da obrigatoriedade, haja vista atuar no início do procedimento, lidando com a conveniência típica das ações privadas. Nesse contexto, a Lei 9.099/95 reduz a sanha penalizadora do Estado e institui um contemporizador, que nada é além da oferta, de acordo com o art. 76 da citada Lei, da transação penal.
Isso significa, segundo Luiz Flávio Gomes, que o MP abre mão da via processual clássica, regida pelo princípio da obrigatoriedade. Além disso, espera-se que o acusado abra mão do devido processo legal clássico (contraditório, provas, recursos), em troca de alguns benefícios consideráveis (evitam-se o processo, as cerimônias degradantes, a sentença, o rol dos culpados, a reincidência) e, por fim, do Estado retirou-se a forma de reação clássica que é a prisão. Cada um dos envolvidos na persecução penal deve abdicar de uma parcela dos seus direitos tradicionais. É, portanto, um novo sistema que privilegiou, inegavelmente, a vítima (reparação dos danos), assim como a ressocialização do infrator por outras vias alternativas, distintas da prisão[4].
A distinção supra entre o princípio da indisponibilidade e o da obrigatoriedade tinha como objetivo apenas aclarar a seguinte questão: o princípio da obrigatoriedade é mitigado pelo instituto da transação penal, e o princípio da indisponibilidade pelo instituto da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95). Assim, nos crimes com pena mínima não superior a um ano, preenchidos os requisitos legais, o MP ao oferecer denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por 2 a 4 anos. Uma vez expirado esse prazo sem que tenha ocorrido revogação da suspensão, será declarada extinta a punibilidade.[5]
O segundo princípio basilar desse sistema consensual é a autonomia da vontade do acusado. Sem a aceitação por parte do acusado não será possível nenhuma solução conciliatória para o conflito penal. Seria, aliás, muito discutível afirmar o contrário, ou seja, impor uma solução alternativa (que de certa forma reduz algumas garantias processuais), sem o consenso do autor do fato.
Ademais, como afirmado por Luiz Flávio Gomes, tal aceitação seria apenas mais uma expressão da “ampla defesa” constitucionalmente garantida. Aceitar ou não a via consensual alternativa passa a ser estratégia de defesa.
Faz-se necessário abrir um parêntese apenas para suscitar o seguinte ponto: presentes os requisitos legais, o órgão acusatório tem de agir. Não pode, por razões de oportunidade, deixar de formular a proposta. O poderá propor (art. 76), como se percebe, não é um poder puro, é um poder-dever. Esse poder-dever, ademais, possui duplo significado: em primeiro lugar, não pode o MP deixar de formular a proposta por razões de oportunidade; em segundo lugar, não pode deixar de formulá-la quando presentes os requisitos legais, pois nesta última hipótese surge para o autor do fato um direito subjetivo.[6]
Por fim, o terceiro princípio consensual é o da desnecessidade da pena de prisão. Não há inovação legislativa nesse ponto. Há muito tempo que existe o sursis penal do artigo 77 do Código Penal, quer dizer, em lugar de executar uma pena de curta duração, que é nefasta e pode desencadear uma “carreira criminal”, o melhor é fazer com que o autor do fato cumpra certas condições, fora do cárcere. A diferença é que agora tudo é consensual. No clássico sursis tudo é imposto.
Conclusão
O modelo consensual de Justiça Criminal introduzido no nosso país pela Lei 9.099/95 padece de ajustes, de aprimoramentos, de lacunas, mas é inegável que estamos diante de um exemplo de texto legislativo que abriu espaço para muitas das afirmações e conclusões criminológicas modernas. É sem dúvida um contraponto àquele modelo tradicional em que o conteúdo da resposta estatal é praticamente único (prisão) e o escopo maior é alcançar a expectativa do Estado de realizar “sua” pretensão punitiva. A reparação de danos, dentro desse modelo, sempre ficou em segundo plano, assim como a ressocialização.
A Lei 9.099/95, destarte, merece elogios no que concerne à sua preocupação de redescobrir a vítima, de recolocá-la em primeiro plano, e de relevar a reparação dos danos sofridos pela mesma. Ademais, buscando outras vias alternativas à prisão, tal texto legislativo mostra-se também preocupado com a ressocialização do autor do fato, uma vez que como é cediço, o atual modelo retributivo exclusivo (prisão) nunca foi efetivo em, ao menos, tentar recuperar os que ali se encontram.
Referências
GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García – Pablos de. Criminologia: Introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, lei dos Juizados Especiais Criminais. 7.ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. 5.ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 4.ed., Salvador: Editora Jus Podivm, 2010.
Vademecum Saraiva. 5.ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2011.
[1] GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García – Pablos de. Criminologia: Introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, lei dos Juizados Especiais Criminais. 7.ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
[2] GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García – Pablos de. Criminologia: Introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, lei dos Juizados Especiais Criminais. 7.ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
[3] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. Salvador: Editora Jus Podivm, 2010.
[4] GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García – Pablos de. Criminologia: Introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, lei dos Juizados Especiais Criminais. 7.ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
[5] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. Salvador: Editora Jus Podivm, 2010.
[6] GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García – Pablos de. Criminologia: Introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, lei dos Juizados Especiais Criminais. 7.ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
Acadêmico de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros/MG, UNIMONTES.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Bruno Moreira. Bases criminológicas da Lei 9.099/95 - Lei dos Juizados Especiais Criminais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 maio 2011, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24284/bases-criminologicas-da-lei-9-099-95-lei-dos-juizados-especiais-criminais. Acesso em: 22 nov 2024.
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