Trabalho orientado pelo professor da Universidade Estadual de Montes Claros/MG, Sr. José Wilson Fonseca Cambuy, advogado atuante.
RESUMO: O presente artigo tratará das prerrogativas da Fazenda Pública em juízo, contrapondo a supremacia do interesse público aos princípios constitucionais ligados ao processo. Para a compreensão do tema, abordar-se-á primeiramente os princípios constitucionais que regem o processo civil moderno. Após será feita uma apertada síntese dos principais princípios que regem a Administração Pública, para enfim se discriminar as principais prerrogativas da Fazenda Pública em juízo, destacando os pontos em que beneficia o erário e os que denotam infrigência à isonomia processual.
Palavras-chaves: Fazenda Pública, juízo, prerrogativas, isonomia, processo.
Em inglês: Public Treasury, judgment, prerogatives, equality, process.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO 2. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS LIGADOS AO PROCESSO 2.1 O Devido Processo Legal 2.2 Princípio da Isonomia 2.3 Princípio do Contraditório e da ampla defesa 2.4 Princípio da celeridade processual 3. PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 3.1 Princípio da legalidade 3.2 Princípio da Impessoalidade 3.3 Princípio da Moralidade 3.4 Princípio da Publicidade 3.5 Princípio da Eficiência 3.6 Princípio da Supremacia do Interesse Público 3.7 Princípio da autotutela 3.8 Princípio da Indisponibilidade 3.9 Princípio da Continuidade dos serviços públicos 4. PRERROGATIVAS PROCESSUAIS DA FAZENDA PÚBLICA 4.1 Prazos processuais 4.2 A Prescrição em Favor da Fazenda Pública 4.3 Honorários advocatícios 4.4 Execução em face da Fazenda Pública 4.5 Reexame necessário. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
1. INTRODUÇÃO
O Código de Processo Civil estatui em vários de seus dispositivos, prerrogativas da Fazenda Pública em juízo.
Tais prerrogativas se justificam, por um lado, à medida que garante maior proteção ao erário.
Ocorre que, não raramente, o Estado litiga com pessoas sem condições de demandar no mesmo patamar da Fazenda Pública, justamente por esta ser dotada de uma enorme equipe jurídica, especializada. Nessa ótica, tal prerrogativa poderia ferir o princípio da isonomia processual.
Também é cediço que as alterações do Código de Processo Civil nos últimos tempos foram sempre no intuito de dar celeridade ao processo, o que não ocorre com a vigência de algumas prerrogativas, as quais exigem uma reapreciação de demandas que, por vezes, não interessaria à Fazenda recorrer, oferecem tempo demasiado para a prática de atos que poderiam ser feitos em menos tempo, ou até mesmo sobreleva o valor do interesse público em detrimento ao privado, ou o interesse do erário sobre a coletividade.
É nesse aspecto que se baseará a presente pesquisa, buscando as controvérsias existentes em torno da Fazenda Pública em juízo, bem como todas as discussões acerca da utilização das prerrogativas.
2. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS LIGADOS AO PROCESSO
Antes de se adentrar ao mérito do presente artigo, mister se faz analisar os princípios que cercam o processo civil, principalmente, os princípios constitucionais, haja vista que a Constituição é a lei máxima da nação e dela emanam cláusulas pétreas que, em regra, não podem ser suprimidas, tornando eficaz o desenvolvimento do processo.
Primeiramente é necessário estabelecer o conceito de princípios, inclusive diferenciando-os das regras. Enquanto as regras se esgotam em si mesmas, na medida em que descrevem o que se deve, não se deve ou se pode fazer em determinadas situações, os princípios são constitutivos da ordem jurídica, revelando os valores ou os critérios que devem orientar a compreensão e a aplicação das regras diante das situações concretas.
Os princípios recortam certas parcelas da realidade e colocam-nas sob seu âmbito de proteção. Consequentemente, a partir do momento em que se projetam sobre a realidade, eles se servem de fundamento para as normas específicas que orientam concretamente a ação, seja num sentido positivo ( prestação fática ou jurídica), seja num sentido negativo ( omissão). No âmbito da relação entre a Constituição e a lei, isso significa que os princípios, de um lado, impõem aos legisladores deveres de produção de normas jurídicas e, de outro, imunizam determinadas posições jurídicas – as parcelas da realidade recolhidas em seu âmbito protegido – do alcance da atuação da lei. Nesse sentido, os princípios dão valor normativo aos fatos, também indicando como a lei deve ser dimensionada para não agredi-los. Por isso, a compreensão e a conformação das regras estão condicionadas pelo valor atribuído à realidade pelos princípios (MARINONI: 2006, p. 48)1.
Portanto, os princípios são a base para aplicação concreta do direito, é o alicerce, é a disposição fundamental que irradia sobre diferentes normas, dando-lhes sentido e contribuindo para sua exegese.
Após superada a definição dos princípios, tratar-se-á de apenas parte, mas não menos importantes, dos princípios constitucionais basilares do processo civil hodierno, principalmente aqueles que se contrapõem às prerrogativas da Fazenda Pública em juízo.
2.1 O Devido Processo Legal
Segundo Nery Júnior2 (p. 32) “O princípio fundamental do processo civil, que entendemos como a base sobre a qual todos os outros se sustentam, é o do devido processo legal, expressão oriunda da inglesa due process of law.”
Tal princípio encontra-se insculpido na Constituição Federal3 no artigo 5º, LIV, que diz: “ninguém será privado na liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Genericamente caracteriza-se pelo trinômio vida-liberdade-propriedade. Ou seja, tudo que disser respeito a esses três itens está sob a tutela da due process clause.
No sentido processual sua interpretação pela doutrina brasileira se torna mais restrita garantindo-se entre outras coisas: direito à citação e ao conhecimento do teor da demanda ou acusação; direito a um rápido e público julgamento; direito à produção de provas; direito ao contraditório; direito de não ser processado, julgado ou condenado por alegada infração às leis ex post facto; direito à igualdade entre acusação e defesa; direito contra medidas ilegais de busca e apreensão; vedação às provas ilícitas; direito de assistência judiciária; entre outros.
Talvez por ser um princípio tão amplo e garantidor, apenas o devido processo legal bastasse, mas a Constituição Federal trouxe também outros princípios derivados daquele, os quais serão estudados nos tópicos seguintes.
2.2 Princípio da Isonomia
Tal princípio se mostra muito importante em todos os ramos do direito, mais ainda no campo processual, no qual o direito material é reivindicado e tutelado.
A isonomia está insculpida no artigo 5º, caput e inciso I da Constituição Federal, estabelecendo que todos são iguais perante a lei, sem qualquer distinção.
Processualmente falando, tal preceito significa que o juiz deve dar tratamento idêntico às partes. Importante ressaltar que por muitas vezes o tratamento isonômico importará em diferenças, pois tal princípio visa igualar os iguais e desigualar os desiguais na medida da sua desigualdade. Ou seja, faz-se necessário estabelecer privilégios para determinadas pessoas devido ao seu estado de desvantagem. A igualdade tem de acontecer quanto aos fins e não quanto aos meios.
Por esse motivo, embora a igualdade seja uma regra, vislumbra-se no processo civil brasileiro várias normas diferindo as partes, como por exemplo a determinação de inversão do ônus da prova para o consumidor, ou até mesmo as famigeradas prerrogativas da Fazenda Pública em juízo, as quais serão tratadas no momento oportuno a seguir, inclusive com os questionamento de sua constitucionalidade.
2.3 Princípio do Contraditório e da ampla defesa
Os princípios do contraditório e da ampla defesa também foram estatuídos na Constituição Federal3 no artigo 5º, LV, que diz: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
A partir da consagração na Constituição Federal, tais princípios se tornaram de observância obrigatória em todos os ramos processuais, guardando estreita relação com o princípio da igualdade e significa em termos gerais a obrigatoriedade de comunicação dos atos processuais, informando às partes que contra elas existe uma lide, ou qual ato foi praticado pela outra parte, possibilitando a quem de direito se manifestar, contrapor, insurgir, ou seja, sempre poder se manifestar paritariamente no processo, utilizando-se para isso de todos os meios lícitos que estiverem ao seu alcance.
A aplicação no processo civil não é ampla, podendo, por exemplo, o réu deixar de contestar uma ação por seu livre arbítrio, sem que se gere nenhuma nulidade, desde que se trate de direitos patrimoniais disponíveis, o que implicará em revelia. Também não pode o réu utilizar-se de provas ilícitas, ainda que único meio de defesa (o que por vezes é aceito no processo penal).
Importante ressaltar, porém, que em algumas situações o juiz é levado a proferir decisões sem que se ouça antes uma das partes (decisões proferidas inaudita altera pars). Tais decisões se legitimam em razão de terem como pressuposto uma situação de urgência, com risco de dano irreparável (periculum in mora). Nesses casos, o contraditório fica postergado, ou seja, o contraditório se efetivará depois da prolação da decisão.
2.4 Princípio da celeridade processual
Também conhecido como princípio da razoável duração do processo, foi instituído na Constituição Federal após a emenda constitucional 45/2004, acrescentando o inciso LVIII ao artigo 5º da Carta Magna3 que assevera: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”
A celeridade processual é necessidade precípua do processo moderno, tendo em vista o contingente cada vez maior de demandas levadas ao judiciário.
Desse modo, tal preceito se configura como direito fundamental do cidadão de que o processo dure um tempo razoável em todos os seus trâmites, bem como ter acesso aos meios mais eficientes e ágeis para solução dos litígios, se tornando inconstitucional qualquer dispositivo que venha postergar a prestação jurisdicional por vão pretexto.
Porém, o grande problema que surge é a delimitação e definição do que seria “razoável”. Certo é apenas que aquilo que foge do convencional ou procrastina em demasia a tutela jurisdicional não é razoável ou tolerável.
3. PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Uma vez já superada a conceituação de princípios no tópico retro, passar-se-á a definir, conceituar e delimitar, em apertada síntese, os principais princípios que norteiam a Administração Pública, os quais se dividem segundo Carvalho Filho4 (2009, p. 18-38) em expressos (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência), os quais estão insculpidos no artigo 37 da Constituição Federal e os reconhecidos (supremacia do interesse público, autotutela, indisponibilidade, continuidade dos serviços públicos, segurança jurídica, razoabilidade, proporcionalidade).
Primeiramente, cumpre esclarecer o que se enquadra no conceito de Administração Pública, para que é trazido à baila definição de di Pietro5 (2008, p. 49):
Em sentido subjetivo, formal ou orgânico ela designa os entes que exercem a atividade administrativa; compreende pessoas jurídicas, órgãos e agentes públicos incumbidos de exercer uma das funções em que se triparte a atividade estatal; a função administrativa; em sentido objetivo, material ou funcional, ela designa a natureza da atividade exercida pelos referidos entes; nesse sentido, a Administração Pública é a própria função administrativa que incumbe, predominantemente, ao Poder Executivo.
3.1 Princípio da legalidade
Conforme Carvalho Filho4: “o princípio da legalidade é certamente a diretriz básica da conduta dos agentes da Administração. Significa que toda e qualquer atividade administrativa deve ser autorizada por lei. Não o sendo, a atividade é ilícita” (2009, p. 19)
Esse princípio traduz a ideia de que todos os atos da Administração Pública devem estar pautados na lei, ou seja, os agentes públicos só podem agir dentro do que a lei permite. Funciona, na verdade, até mesmo como uma garantia dos indivíduos de que a Administração sempre atuará respaldada, evitando-se tiranias.
3.2 Princípio da Impessoalidade
O princípio da impessoalidade denota que a Administração Pública deve gerir seus atos indiscriminadamente, sem intenção de beneficiar alguém em específico. Objetiva, portanto, a igualdade ou isonomia de tratamento que a Administração deve ter para com os administrados que se encontram na mesma condição jurídica.
Para que haja uma verdadeira impessoalidade, importante se torna que o interesse público seja observado, pois, se atendendo a demandas gerais da sociedade não se poderá falar em privilégio a determinados indivíduos.
3.3 Princípio da Moralidade
A moralidade estabelece que o administrador público tem que atuar pautado nos preceitos éticos que regem a sociedade, tanto nas relações com os administrados quanto nas relações internas entre os agentes públicos.
Tal princípio tem forte ligação à impessoalidade e à legalidade, sendo que via de regra algum ato imoral também o será ilegal ou impessoal. É o caso, por exemplo, do nepotismo, que consiste na contratação de parentes para exercício de função pública, o que além de ser vedado pelo ordenamento jurídico, também mostra o caráter impessoal e imoral com que o administrador público pauta seus atos.
3.4 Princípio da Publicidade
A publicidade indica que todos os atos administrativos devem ser divulgados e estarem acessíveis ao público com o fito de serem legítimos. É que quando os atos dos agentes públicos são publicizados se torna mais fácil à população e aos órgãos de fiscalização, examinar se foram praticados respaldados pela lei, pela moralidade, pela impessoalidade, se são eficientes etc.
Obviamente tal regra também comporta exceções, não havendo obrigatoriedade de se dar publicidade aos atos que devem permanecer sob sigilo, como por exemplo assevera o artigo 5º, XXXIII da Constituição Federal que resguarda o sigilo de informações quando se revela indispensável à segurança jurídica da sociedade e do Estado. Além desse caso, no âmbito do Poder Judiciário também é legal a restrição dada pela lei a certos atos, limitando o acesso às partes e procuradores, nos termos do artigo 93, IX da Carta Magna.
3.5 Princípio da Eficiência
Em apertada síntese eficiência significa atingir o resultado esperado no menor tempo e com menor gasto possível.
Embora seja um princípio de difícil delimitação, sendo complicado portanto, o controle da sua observância, pois, segundo França4 (2000, apud CARVALHO FILHO, 2009, p. 30) “o Poder Judiciário não pode compelir a tomada de decisão que entende ser de maior grau de eficiência”, trata-se de importantíssimo preceito, tendo em vista a necessidade premente de uma Administração Pública que consiga atender às necessidades da população prontamente e principalmente, onerando minimamente o erário.
Tal preceito também pode ser visualizado no princípio da razoável duração do processo, sendo certo que a tutela jurisdicional eficiente é aquela que atende ao jurisdicionado em tempo hábil para que não pereça seu direito.
3.6 Princípio da Supremacia do Interesse Público
Seguindo a ideia de que os valores do povo se sobressaem aos particulares, a supremacia do interesse público é o princípio que protege os interesses coletivos, sendo que a atuação do Estado tem que refletir um benefício geral, ainda que se vise de forma imediata um interesse estatal, o interesse mediato tem de ser o interesse público, sob pena de se infringir o princípio da impessoalidade e muitas vezes cometer desvio de finalidade.
Pautado nesse princípio a Administração Pública baseia vários de seus atos ou tem inúmeras prerrogativas. É o que legitima uma desapropriação de propriedade particular ou até mesmo o prazo em quádruplo para contestar uma ação.
Há quem afirme que em certas situações os direitos fundamentais individuais devem prevalecer sobre o princípio em tela, no entanto, tal divergência é minoria, prevalecendo o entendimento de Carvalho Filho4 (p. 31) que se deve respeitar o interesse coletivo ainda que em confronto com o interesse particular, pois os direitos fundamentais não tiram a densidade do público.
3.7 Princípio da autotutela
Conforme preleciona di Pietro5 (p. 68):
Enquanto pela tutela a Administração exerce controle sobre outra pessoa jurídica por ela mesma instituída, pela autotutela o controle se exerce sobre os próprios atos, com a possibilidade de anular os ilegais e revogar os inconvenientes ou inoportunos, independentemente de recurso ao Poder Judiciário.
É uma decorrência do princípio da legalidade; se a Administração Pública está sujeita à lei, cabe-lhe, evidentemente, o controle de legalidade.
É o princípio do qual se vale a Administração Pública para gerir e rever seus próprios atos, sendo certo que revendo atos equivocados estar-se-á aproximando da legalidade com que deve pautar suas ações.
Importante ressaltar que a autotutela envolve dois aspectos quanto à atuação administrativa, podendo a Administração rever atos ilegais, de ofício, ou retificar atos por simples conveniência da Administração.
3.8 Princípio da Indisponibilidade
Segundo preza esse princípio, os interesses e bens da Administração Pública não lhes pertencem, mas sim a toda a coletividade, motivo pelo qual não pode deles dispor de forma indiscriminada sem observância do interesse público.
3.9 Princípio da Continuidade dos serviços públicos
Como o nome já diz, os serviços públicos são decorrentes de necessidades prementes da sociedade, razão pela qual, via de regra, não podem ser interrompidos.
Pela continuidade dos serviços públicos, goza a Administração de vantagens, inclusive em contratos celebrados com particulares, permitindo àquela exigir o adimplemento de obrigação mesmo quando ainda não cumpriu sua parte, excepcionando o brocardo exceptio nom adimpleti contractus.
Esse princípio está intimamente ligado à eficiência e obviamente não é absoluto. Existem vários serviços que são prestados mediante pagamento de tarifas ou taxas e se os consumidores se mostrarem inadimplentes poderão ter a prestação dos serviços interrompidos, como é o caso de energia elétrica ou linha telefônica.
4. PRERROGATIVAS PROCESSUAIS DA FAZENDA PÚBLICA
Inicialmente cumpre trazer à baila a definição de Fazenda Pública6:
(...) Em outras palavras, Fazenda Pública é expressão que se relaciona com as finanças estatais, estando imbricada com o termo erário, representando o aspecto financeiro do ente público. (...) O uso freqüente do termo Fazenda Pública fez com que se passasse a adotá-la num sentido mais lato, traduzindo atuação do Estado em juízo; em Direito Processual, a expressão Fazenda Pública contém o significado de Estado em juízo. Daí por que, quando se alude a Fazenda Pública em juízo, a expressão apresenta-se como sinônimo do Estado em juízo ou do ente público em juízo, ou, ainda, da pessoa jurídica de direito público em juízo (CUNHA, 2006, p. 15)
Como se pode inferir da definição acima mencionada, a limitação de Fazenda Pública se tornou mais ampla, englobando todas pessoas jurídicas estatais, excetuando-se apenas sociedades de economia mista e empresas públicas, haja vista que concorrem no mercado com empresas privadas, motivo pelo qual não poderia gozar de prerrogativas processuais, por total afronta à isonomia.
A supremacia do interesse público é o que autoriza os privilégios da Fazenda Pública em juízo. No entanto, esse princípio colide de frente com o princípio da isonomia, pois é muito tênue deduzir em que momento se estaria beneficiando toda a coletividade ou prejudicando alguma parte que se mostra hipossuficiente em relação às vantagens garantidas à Fazenda.
O princípio da isonomia foi expressamente tipificado no artigo 125, I do Código de Processo Civil (CPC), asseverando que o juiz deverá assegurar às partes tratamento isonômico. Isso envolve o que já foi dito outrora, ou seja, o juiz deverá garantir às partes o devido processo legal, com o direito ao contraditório e a ampla defesa.
Existe a corrente dos que entendem justas e necessárias as prerrogativas da Fazenda Pública, bem como alguns que pensem que certas prerrogativas ferem a isonomia e a Constituição Federal, por esse motivo, tratar-se-á em apertada síntese das principais garantias da Fazenda Pública em juízo.
4.1 Prazos processuais
É sabido que os atos processuais devem ser praticados em determinado lapso temporal, sob pena de preclusão. Esse lapso que as partes têm para agir se denomina prazo.
Os prazos variam de acordo com os atos a serem praticados, podendo ser dilatórios (quando se pode postergar), peremptórios (quando mesmo com anuência das partes não pode ser dilatado), judiciais (quando o juiz fixa), convencionais (quando as partes fixam) e legais (fixados por lei).
São os prazos legais que serão objeto deste tópico, haja vista que a própria legislação pátria confere prerrogativas de prazo para a Fazenda Pública.
O artigo 188 do CPC7 diz: “Computar-se-á em quádruplo o prazo para contestar e em dobro para recorrer quando a parte for a Fazenda Pública ou o Ministério Público”.
Tal regra é de observância obrigatória em qualquer tipo de procedimento no âmbito cível e os que defendem sua aplicação justificam a necessidade em face do interesse público que está sendo tutelado, haja vista que os procuradores e promotores públicos tem muitas demandas para lidar o que justificaria uma prazo diferenciado.
Conforme Nery Júnior2 (p. 53):
Entendemos aplicável o conteúdo da norma a todas as modalidades de resposta do réu, inclusive quanto à impugnação dos embargos do devedor, que nada mais é do que uma espécie de contestação à pretensão deduzida nos embargos.
Embora seja a regra a aplicação do artigo 188 supramencionado, há exceções, como por exemplo na execução fiscal, na qual o prazo para impugnação da Fazenda Pública é de 30 dias, sendo que a norma especial derroga a geral.
É certo que tal prerrogativa até certo ponto se justifica, no entanto, há certos atos que poderiam ser praticados de forma mais célere, porém, tendo em vista o prazo diferenciado, muitos procuradores públicos procrastinam o processo para cumprir os prazos no seu termo final, o que eleva em muito o tempo de trâmite das ações.
4.2 A Prescrição em Favor da Fazenda Pública
Embora as regras gerais fixadoras da prescrição se encontrem no Código Civil, a Fazenda Pública tem a prerrogativa de prazos diferenciados consoante determina o Decreto nº 20.910 de 6 de janeiro de 1932.
Esse decreto dispõe que toda pretensão formulada em face da Fazenda Pública prescreverá em 5 anos.
Importante mencionar que em se tratando de prestações de trato sucessivo o Superior Tribunal de Justiça (STJ) sumulou o enunciado 85:
Nas relações de trato sucessivo em que a Fazenda Pública figure como devedora, quando não tiver sido negado o próprio direito reclamado, a prescrição atinge apenas as prestações vencidas antes do qüinqüênio anterior à propositura da ação.
4.3 Honorários advocatícios
Os honorários advocatícios de sucumbência pertencem ao advogado da parte vencedora e são devidos pela parte sucumbente na demanda.
As regras de fixação dos honorários advocatícios estão descritas no artigo 20 do CPC e determina que nas ações condenatórias o valor deverá ser fixado entre 10 e 20% sobre o valor da condenação. Já o § 4º do mesmo dispositivo legal assevera que nas causas de pequeno valor ou inestimável, nas causas em que não houver condenação, bem como nas que for vencida a Fazenda Pública e nas execuções embargadas ou não, o juiz fixará os honorários mediante apreciação equitativa de acordo com o zelo, o lugar da prestação dos serviços, a natureza e a importância, o trabalho e tempo exigidos.
Observe-se que o CPC traz uma regra geral para ações condenatórias, excetuando dela a Fazenda Pública, determinando que nas causas que ela for vencida o juiz não precisará se ater aos percentuais legais, podendo equitativamente arbitrá-los, inclusive, tem decidido a maioria da jurisprudência pela possibilidade da fixação abaixo do mínimo de 10%.
Alguns doutrinadores pátrios questionam tal prerrogativa, asseverando que fere o princípio da isonomia. Nesse sentido Nery Júnior2 (p. 57):
Trata-se aqui realmente de privilégio violador do princípio da isonomia, pois os litigantes tiveram despesas com a contratação de advogados e devem ser ressarcidos de forma igualitária. Vencido o adversário da Fazenda, a condenação na verba honorária deve operar-se na forma do art. 20, § 3º, do CPC, não podendo ser inferior a 10% sobre o valor da condenação. Por que poderia haver condenação em percentual inferior ao legal, se vencida, na mesa causa, a Fazenda Pública? Estão sendo tratados desigualmente litigantes que se encontram em pé de igualdade relativamente ao pagamento dos honorários de seus advogados.
Pretende-se com essa norma, na verdade, subtrair do vencedor parcela de honorários a que teria direito, caso litigasse com parte que não fosse a Fazenda Pública.
Realmente faz sentido tal crítica, haja vista que se o particular vence a demanda é porque indiretamente o ente estatal deu origem a ela, motivo pelo qual não há razão para se discriminar a fixação dos honorários quando vencida a Fazenda Pública ou outro particular, pois o prejuízo para a outra parte foi o mesmo.
4.4 Execução em face da Fazenda Pública
A execução, em regra, rege-se por medidas expropriatórias, sendo que se o devedor não paga voluntariamente no prazo estabelecido, o credor tem direito de penhora sobre os bens do inadimplente, exercendo direito de preferência sobre os bens penhorados o que implicará na adjudicação ou alienação desses bens para satisfação do crédito.
Já no que concerne à Fazenda Pública6:
(...) não se aplicam as regras próprias da execução por quantia certa contra devedor solvente, não havendo a adoção de medidas expropriatórias para a satisfação do crédito. Diante da peculiaridade e da situação da Fazenda Pública, a execução por quantia certa contra ela intentada contém regras próprias. Põe-se em relevo, no particular, a instrumentalidade do processo, na exata medida em que as exigências do direito material na disciplina das relações jurídicas que envolvem a Fazenda Pública influenciam e ditam as regras processuais. (p. 226)
Desse modo, não há qualquer medida expropriatória contra a Fazenda Pública, utilizando-se do sistema de precatórios e requisições de pequeno valor.
As requisições de pequeno valor servem para pagamentos de pequenas quantias em prazo não superior a 90 (noventa) dias.
Já os precatórios se referem a valores maiores e são expedidos pelo juízo e após devidamente instruído é encaminhado ao Presidente do respectivo Tribunal, o qual deverá inscrever o precatório até o dia 1º de julho para que possa ser pago até o fim do exercício seguinte, devendo ainda comunicar ao órgão competente para efetuar a ordem de despesa, a fim de que a Administração Pública passe a adotar as medidas necessárias e suficientes à abertura do crédito que irá liquidar a dívida mediante depósito bancário feito à disposição da presidência do tribunal.
Importante ressaltar outra prerrogativa que a Fazenda Pública possui e que está inserida no § 9º do artigo 100 da CF, o qual determina a compensação do crédito com débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra o credor original pela Fazenda Pública devedora, incluídas parcelas vincendas de parcelamentos, ressalvados aqueles cuja execução esteja suspensa em virtude de contestação administrativa ou judicial.
Infere-se mais um tratamento diferenciado dado à Fazenda Pública, haja vista que os precatórios procrastinam em mais de ano o adimplemento das obrigações em que foi condenando o ente estatal e ainda pode compensar valores que sequer foram discutidos em juízo.
4.5 Reexame necessário
Também conhecido como remessa obrigatória, ou até, incorretamente, de recurso de ofício, o reexame necessário nada mais é do que uma condição de eficácia das sentenças proferidas contra a Fazenda Pública.
Está insculpido no artigo 475 do CPC7 o qual assevera:
Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:
I – proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público;
II – que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI).
Conforme dito, não se trata de recurso, haja vista não possuir voluntariedade, interesse em recorrer, preparo, dialeticidade e até mesmo por não estar contido no rol dos recursos do CPC, o qual é taxativo.
Por ser uma condição de eficácia, as decisões proferidas contra a Fazenda Pública não possuem valor, não podendo ser executadas ainda que provisoriamente e nem mesmo transitarão em julgado, independente do tempo que se leve para remeter os autos à instância superior, podendo inclusive a parte interessada requerer ao juízo ad quem para que avoque os autos para apreciação da demanda.
Essa prerrogativa da Fazenda Pública é uma das que demonstra maior embate com a isonomia e celeridade processual, haja vista que além de atrasar a execução de julgados, supre a falta de interposição de recurso da Fazenda sucumbente e ainda por cima não proporciona à outra parte o contraditório, ao passo que o tribunal poderá reformar a decisão em prejuízo da parte vencedora em primeira instância, que sequer será ouvida.
Os parágrafos 2º e 3º do artigo 475 supramencionado trazem ressalvas à aplicação de tal dispositivo, quais sejam, quando a condenação não for superior a 60 salários mínimos e quando a decisão a quo estiver em consonância com jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise do acima exposto, infere-se que a Fazenda Pública, por cuidar de interesses coletivos, deve ter realmente algumas prerrogativas para facilitar a defesa do erário.
A vantagem de ter prazo especial para contestar e recorrer, por exemplo, é uma prerrogativa justificável, haja vista que o Estado, sendo o ente que mais aparece em juízo, não teria condições de responder no mesmo tempo que um particular.
No entanto, algumas prerrogativas se mostram com uma afeição de privilégios, ferindo o princípio constitucional da isonomia.
Diferenciação na fixação de honorários advocatícios, diferença na atualização de débitos, execução com pagamento por meio de precatórios e até mesmo o reexame necessário, se mostram como benefícios em demasia em favor da Fazenda Pública.
Que diferença tem o trabalho de um advogado quando a parte adversa é um particular e quando é o Estado? Por que o juízo ad quem pode rever uma sentença condenatória que a Fazenda sequer recorreu para reformá-la em seu benefício e não pode revê-la para beneficiar um particular que talvez não teve sequer condições financeiras para recorrer?
Esse último caso não é tão difícil de se imaginar. Idealizem uma pessoa carente que ajuíza uma ação previdenciária pelo jus postulandi em face do INSS em que o juízo a quo condene este em valor superior a 60 salários mínimos. A demanda precisará necessariamente ser revista pelo tribunal. Se a parte sequer teve condições de contratar advogado em primeira instância, quem dirá para recorrer, aliás, dificilmente terá condições de vislumbrar uma possibilidade de aumentar o valor da condenação. Nesse caso, mesmo que o juízo de 2ª instância constate um direito que não tenha sido concedido ao popular, não poderá deferir, porque não houve recurso interposto, mas se vir algo que fira os interesses do erário, deverá reformar a sentença. Percebe-se nesse exemplo um típico caso de que nem sempre o interesse do erário deve prevalecer sobre o particular, pois a dignidade da pessoa humana também foi insculpida no texto constitucional como princípio da República Federativa do Brasil e verbas previdenciárias se revestem de caráter alimentar, importando a sua supressão em infrigência à dignidade da pessoa.
Portanto, se faz necessária uma readequação nas prerrogativas concedidas à Fazenda Pública em juízo para que sejam embasadas no princípio da supremacia do interesse público, na continuidade do serviço público, na eficiência, na celeridade processual e que não venham a ferir o tratamento isonômico com direito ao contraditório a qualquer um que litigue contra o Estado.
CITAÇÕES:
1 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil, Vol 1: Teoria geral do Processo. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
2 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
3 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 03/05/2011.
4 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
5 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21ª ed. São Paulo; Atlas, 2008.
6 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Fazenda Pública em Juízo. 6. ed. São Paulo: Dialética, 2008.
7 BRASIL. Lei nº 5.869 de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5869.htm>. Acesso em 03/05/2011.
Servidor público contratado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais; acadêmico do curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Hudson Emanuel Fagundes e. Prerrogativas da Fazenda Pública em juízo: Sumpremacia do interesse público x princípios constitucionais ligados ao processo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 maio 2011, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24353/prerrogativas-da-fazenda-publica-em-juizo-sumpremacia-do-interesse-publico-x-principios-constitucionais-ligados-ao-processo. Acesso em: 22 nov 2024.
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