Notas Introdutórias
A conduta do sujeito passivo, no âmbito da teoria da imputação objetiva, recebe atenção especial no tocante à análise da atribuição do resultado ao comportamento do agente, por reputar a influência da manifestação daquele que sofreu a lesão ao bem jurídico penalmente protegido como relevante para a consecução do resultado, e não tão somente a conduta desvalida do criador do risco proibido.
A priori à contextualização da vítima na imputação objetiva, mister salientar a segmentação teórica da imputação objetiva, cujas correntes doutrinárias capitaneadas por Claus Roxin e Günter Jakobs, que delineiam sob traços eminentemente funcionalistas os moldes da imputação objetiva.
Roxin assevera que para a ocorrência da imputação objetiva necessário se faz a criação de um risco juridicamente relevante, bem como sua realização específica no resultado, sob o alcance do tipo penal, isto é, abrangido pelos casos em que o Direito Penal visa reprimir (ROXIN, 2002, p.310). Neste último, concentra-se a análise da influência da vítima na verificação casuística, no que concerne à contribuição à autocolocação em perigo e a heterocolocação em perigo consentida.
Jakobs esteia sua perspectiva doutrinária na idealização dos papéis sociais, originando a análise da imputação do comportamento, segmentada em instituições dogmáticas, quais sejam, o risco permitido, o princípio de confiança, a proibição de regresso e a competência (capacidade) da vítima (JAKOBS, 2007, p.33). Em momento posterior, investiga-se acerca do fato do risco resultar como explicação do resultado.
Adiante, impender perscrutar a consideração pela imputação objetiva do comportamento engendrado pela vítima.
A Contribuição à autocolocação em perigo e a heterocolocação em perigo consentida
Na análise teórica da imputação objetiva de Roxin, como terceiro estágio de avaliação da imputação objetiva, o alcance do tipo atua como fator de confrontação dos fins do Direito Penal com sua própria pressuposição de criação do risco não permitido e realização deste no resultado, quando não abrangido por tais fins.
Inserido na órbita do alcance do tipo penal, encontra-se a contribuição à autocolocação em perigo e a heterocolocação em perigo consentida, bem como o critério de aferição denominado âmbito de responsabilidade alheio, não sendo objeto deste estudo por não envolver a influência do comportamento da vítima. (vide discussão acerca de hipótese casuística...)
A contribuição à autocolocação em perigo diz respeito à exclusão da imputação objetiva quando houver a inserção da própria vítima em uma situação de perigo concreto, embora tenha havido a colaboração do agente criador de um risco proibido que se realizou no resultado, desde que a vítima tenha plena capacidade e conhecimento dos perigos envolvidos na situação fática (SANTORO FILHO, 2007, p.66). O mesmo não se pode dizer, se o binômio capacidade-conhecimento for preterido no caso concreto. A imprescindibilidade do binômio deve, outrossim, influir na análise da possível verificação da heterocolocação em perigo consentida.
A roleta russa, v.g. configura-se caso de aplicação da contribuição à autocolocação em perigo – no que toca à análise de pretendida imputação de crime de homicídio àquele que incita a conduta, abstendo-se da crítica acerca do auxílio ao suicídio tipificado no diploma penal pátrio, porém, descriminalizado no direito penal germânico, onde surgira a centelha de imputação objetiva – em razão da vítima como sujeito responsável afigura-se apto à assunção do risco que se submete, independente da incitação à prática por outrem de afetação contra si.
Por outra vertente, a heterocolocação em perigo consentida corresponde a mecanismo excludente de imputação, em virtude da assunção do risco pela vítima por meio de outrem, e não de per si, como ocorre na autocolocação. Na heterocolocação, o indivíduo por sponte sua insere-se em circunstância de perigo por conta do comportamento de outrem, criador de um risco juridicamente relevante e não permitido que se realiza no resultado.
A heterocolocação em perigo consentida pode ser abertamente visualizada, nas situações corriqueiras de trânsito, em que o motorista insere os passageiros em uma situação de risco à incolumidade destes, caso seu comportamento constitua violação de seu dever objetivo de cuidado, exempli gratia, dirigir visivelmente embriagado. Cabe consignar, conforme exposto acima, para excluir a imputação objetiva neste exemplo, é preciso que a vítima tenha conhecimento de todos os riscos assumidos e plena capacidade para tanto, isto é, não sendo aplicável nas hipóteses de incapazes e pessoas que não tenham domínio completo do âmbito cognoscível da circunstância de fato.
A competência (capacidade) da vítima
No que alude à concepção teórica de Jakobs, a verificação da influência do sujeito passivo no resultado jurídico se aloja em uma das instituições dogmáticas, qual seja, a competência ou capacidade da vítima.
Consoante Jakobs, nesses casos de competência da vítima, vislumbra-se claramente que esta,
“[...] com seu próprio comportamento, dá razão para que a conseqüência lesiva lhe seja imputada; hipóteses, em que, portanto, a modalidade de explicação não é a fatalidade, mas a lesão de um dever de autoproteção ou inclusive a própria vontade; as infrações dos deveres de autoproteção e a vontade se agrupam aqui sob o rótulo de ação a próprio risco” (JAKOBS, 2007, p.32)
Neste diapasão, a vontade da vítima se dirige no sentido de entrar na situação de risco por conta própria e não de assumir a lesão do bem jurídico a ele correlato, como ocorre na hipótese de causa supralegal de exclusão da antijuridicidade, isto é, no caso de consentimento da vítima, que decididamente não se relaciona com a imputação objetiva, seja no âmbito das teorias de Roxin ou de Jakobs.
Interessante ressaltar a similitude estreita entre os institutos que direcionam o enfoque sob a vítima, ou seja, entre a contribuição à autocolocação em perigo e a heterocolocação em perigo consentida com relação à competência (capacidade) da vítima. No entanto, na abordagem de Jakobs há uma generalização exacerbada do instituto, sem observar detalhes como apresentados na construção doutrinária de Roxin.
Consoante exposição acima, a teoria da imputação objetiva de Roxin avalia a influência do sujeito passivo tendo como pressuposto a criação de um risco relevante e proibido e sua realização específica no resultado, ao passo que a teoria da imputação objetiva de Jakobs analisa a capacidade da vítima na seara da imputação do comportamento, para a posteriori constatar se o risco produzido explica o resultado, na esfera da imputação do resultado.
Contudo, ambas apresentam a resolução dos mesmos grupos de casos, correspondendo à mesma situação aplicável, divergindo no que concerne à percepção analítica de Roxin, que apresenta detalhamento preciso e adequado, em contraponto à visão jacobiana que afigura-se eivada pelo excesso de abstração em sua definição doutrinária.
Destarte, necessário se faz a aplicação da contribuição à autocolocação em perigo e da heterocolocação em perigo consentida em detrimento da competência da vítima, instituição dogmática de Jakobs, que apenas esboça o que os mecanismos de avaliação do alcance do tipo buscam pormenorizar, sobretudo suas diretrizes doutrinárias, bem como balizar sua incidência adequada no âmbito do fato típico.
Referências Bibliográficas
JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no Direito Penal, tradução de André Luís Callegari, São Paulo: RT, 2007.
ROXIN, Claus. Funcionalismo e Imputação Objetiva no Direito Penal – Tradução e Introdução de Luiz Greco. São Paulo: Renovar, 2002.
SANTORO FILHO, Antônio Carlos. Teoria da Imputação Objetiva: apontamentos críticos à luz do direito positivo brasileiro. São Paulo: Malheiros editores, 2007.
Precisa estar logado para fazer comentários.