Antes de adentrarmos ao mérito da questão a ser discutida, necessário é tecer breves considerações sobre o conceito de ordem pública e de prequestionamento, até para esclarecer melhor o tema, que, diga-se de passagem, é complexo. A grosso modo poderíamos dizer que o conceito de ordem pública é obscuro, vago e indeterminado. Por se tratar de instituto indeterminado Fábio Ramazzini Bechara ensina que, a dificuldade de interpretação é maior do que nos conceitos legais determinados.
Segundo o nobre doutrinador a ordem pública enquanto conceito indeterminado, caracterizado pela falta de precisão e ausência de determinismo em seu conteúdo, mas que apresenta ampla generalidade e abstração, põe-se no sistema como inequívoco princípio geral, cuja aplicabilidade manifesta-se nas mais variadas ramificações das ciências em geral, notadamente no direito preservado, todavia, o sentido genuinamente concebido. A indeterminação do conceito sugere uma aparente insegurança jurídica em razão da maior liberdade de argumentação deferida ao intérprete, pois, evidente a eficiência e o perfeito ajuste à historicidade dos fatos considerada. Assim, em simples palavras a ordem pública nada mais é que o estado social que resulta da relação que se estabelece entre os representantes dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como governantes, e os particulares, como governados, no sentido da realização dos interesses de ambos. A ordem pública é uma conseqüência da ação de autoridade sobre os particulares para lhes regular ou modificar a ação. Dessa intervenção, origina-se um estado social, que é a ordem pública.
Por outro lado o prequestionamento conforme declaram José Miguel Garcia Medina e Cassio Scarpinella Bueno, é ainda mais complexo. Conforme ensina Medina, era evidente a existência de dois momentos. No primeiro, “questionava-se sobre a validade de tratado ou lei federal”. No segundo, “a decisão recorrida é contrária à validade de tratado ou lei federal.” Segundo o citado Autor, há hoje, “na jurisprudência, diversas concepções acerca do que se deve entender por prequestionamento”. Nesse sentido, três entendimentos devem ser destacados: a) manifestação expressa do Tribunal a quo sobre tema de direito federal ou constitucional. b) debate anterior à decisão recorrida, acerca do tema, hipótese em que ele é considerado ônus da parte. Há entendimento de que a questão federal ou constitucional já deva constar da petição inicial. c) a soma das duas tendências anteriores. Isto é, prévio debate sobre o tema de direito constitucional ou federal, aditado de manifestação expressa do tribunal recorrido.
Nesse contexto, o mais correto é que o prequestionamento deve ocorrer antes da decisão da qual se recorre. Contudo, independentemente de provocação das partes, se a decisão acarretar o surgimento de questão federal ou constitucional e decidi-la, pode-se neste caso, considerar haver prequestionamento, uma vez que a questão pode ser suscitada pelas partes ou pelo juiz.
Dentre os conceitos já apresentados, podemos dizer que o de ordem pública não apresenta grande dissenso doutrinário. O mesmo não ocorre com o de prequestionamento. Além disso, não há unanimidade quanto à sua necessidade para a interposição dos recursos especial e extraordinário. Tereza Arruda Alvim Wambier, citada por Cassio Scarpinella Bueno, demonstra preocupação a respeito da diversidade de entendimento sobre o conceito de prequestionamento: O que se entende conveniente é que, como se trata de uma zona cinzenta, haja certa dose de tolerância de um órgão em relação àquilo que ao outro parece como sendo prequestionamento. Sugere-se, portanto que, à falta de unanimidade a respeito do que seja efetivamente o prequestionamento, um órgão aceite o entendimento de outro, e considere ter havido prequestionamento, se o que ocorreu, no caso, foi o que outro órgão teria considerado como prequestionamento. Esta sugestão, no fundo, consiste em que haja fungibilidade de entendimentos, para que a parte não acabe por ficar sujeita a uma espécie de ‘loteria’ ou não tenha de se inteirar do entendimento pessoal de cada um dos Ministros dos Tribunais Superiores”.
Feitas essas considerações, passemos a análise do objeto do presente estudo, o qual é saber se é possível suscitar matérias de ordem pública em sede de recurso extraordinário, mesmo a matéria não tendo sido questionada em instância inferior. Note-se que sobre o assunto não há consenso, inclusive o STJ editou a Súmula 211 quanto ao requisito de admissibilidade do REsp, porém o Supremo Tribunal Federal tem admitido tal hipótese.
A Corte Suprema já decidiu, para conhecer do apelo extremo, a questão do prequestionamento, decidindo à unanimidade de seus Ministros, em sessão plenária, no RE 66.103, que: ‘A decadência é matéria de ordem pública e pode ser declarada em qualquer fase processual, mesmo no recurso extraordinário, e ainda que não prequestionada’ (RTJ 56/642 e RT 430/290). Em caso semelhante o douto professor Cássio Scarpinella Bueno comenta que a relevância e a necessidade do “abandono” da técnica (leia-se: técnica de julgamento tradicional do recurso extraordinário pelo STF) por uma boa causa também já foram ouvidas no campo penal. Argúi também que participou de uma palestra em que o Ministro Carlos Velloso fez menção ao Agravo de Instrumento nº 409.055/RJ, também relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, em que Sua Excelência decidiu pela desnecessidade do prequestionamento quando o caso impuser a concessão do habeas corpus de ofício.
De fato, parece-nos que em questões de ordem pública, por sua natureza, não precluem e são suscitáveis em qualquer tempo e grau de jurisdição, além de serem cognoscíveis de ofício, e, bem assim em tema de condições da ação e de pressupostos positivos e negativos de existência e validade da relação jurídica processual (CPC, art 267, §3º), o quesito prequestionamento pode ter-se por inexigível, até em homenagem à lógica do processo e à ordem jurídica justa. De resto, lembre-se que, com tal proceder, se estará evitando o trânsito em julgado da decisão viciada, que poderá ensejar a propositura de ação rescisória (art. 485, V do CPC). Com efeito, Tereza Arruda Alvim Wambier lembra a existência de casos “em que será impossível às partes ‘cobrar’ do Judiciário que conste da decisão discussão em torno da questão federal, pela via dos embargos declaratórios por omissão, já que, por exemplo, esta terá surgido no próprio acórdão pela primeira vez (imagine-se um acórdão ‘extra petita’)”.
Ante o exposto podemos concluir que a questão da admissibilidade ou não do RE, presente matéria de ordem pública ainda que não prequestionada, coloca de um lado como regra o princípio dispositivo (CPC, arts. 2º, 515 e parágrafos: “iura novit curia”), a que se agrega o argumento de que o âmbito de devolutividade desses recursos, na perspectiva vertical, é bem restrita; e de outro lado, como exceção, a cognoscibilidade de ofício de tais temas, a qualquer tempo e grau de jurisdição (CPC, arts. 113; 219, §5º; 267,§3º) o que nos parece ser o mais justo e correto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BECHARA, Fábio Ramazzini. Prisão cautelar. São Paulo: Malheiros, 2005.
BUENO. Cássio Scarpinella. De volta ao prequestionamento: duas reflexões sobre o recurso extraordinário nº 298.695-SP. Material da 3ª aula da disciplina O Processo Civil nos Tribunais Superiores, ministrada no curso de pós-graduação lato sensu televirtual em Direito Processual Civil – IBDP e Anhanguera-Uniderp / Rede LFG.
MEDINA, José Miguel Garcia. O prequestionamento nos recursos extraordinário e especial. 4ª ed. rev. e atual, de acordo com a EC n.45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
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