A delação premiada como forma de persecução da verdade pelo Estado é, desde a Lei nº 8.072 de 1990, quando foi implantada no direto brasileiro, fonte de inúmeras discussões doutrinárias, principalmente acerca da sua incoerência com os valores sociedade, devido ao dilema moral em que se insere o criminoso que se vê coagido à traição. Para dar início ao estudo, faz-se conveniente alocar no sistema penal brasileiro o instituto a ser estudado.
A confissão configura-se como meio de prova, assim como qualquer outro, devido ao sistema do livre convencimento motivado ou persuasão racional adotado pelo Brasil, inserido no artigo 93, inciso IX, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Por este sistema, Távora (2009) ensina que entre as provas não existe hierarquia, nenhuma se sobrepõe a outra, não há valoração, devendo o magistrado fundamentar a decisão do seu convencimento embasado nas provas existentes no processo.
O procedimento probatório foi alterado pela Lei n.º 11.719/2008, deslocando o interrogatório do acusado para o último ato do processo penal no procedimento ordinário e sumário. A audiência, conforme os artigos 400 e 531 do Código de Processo Penal, passou a ser una, concentrando-se nela todas as provas do processo, as declarações do ofendido, inquirição de testemunhas, esclarecimento de peritos, acareações, reconhecimento de pessoas e coisas e o interrogatório.
Aduz Oliveira (2009, p. 366) acerca da nova ordem de recolhimento das provas, tratar-se “efetivamente, de mais uma oportunidade de defesa que se abre ao acusado, de modo a permitir que ele apresente a sua versão dos fatos, sem se ver, porém, constrangido ou obrigado a fazê-lo.” O interrogatório serviria mais como forma de defesa do que propriamente de prova.
Determinados procedimentos especiais, como a Lei n.º 11.343 de 23 de agosto de 2006 – crimes de tráfico de drogas – e a Lei n.º 8.038 de 28 de maio de 1990 – processos de competência originária dos tribunais – entretanto, conservam o interrogatório como primeiro ato da instrução.
Dando-se a confissão no cerne do interrogatório, ensina Capez (2009, p. 367) que “muda sua natureza jurídica de ato de defesa para, exclusivamente, meio de prova”.
Entretanto, ensina Oliveira (2009), que a confissão do réu pode ser feita fora do interrogatório, mas para adquirir valor probatório, deve ser confirmada perante o juiz. O mesmo pode-se inferir da delação. Poderá ser feita inclusive após o trânsito em julgado da decisão.
Adentrando ao instituto da delação premiada, Nucci (2008, p.431) conceitua que:
Delatar significa acusar, denunciar ou revelar. Processualmente, somente tem sentido falarmos em delação quando alguém, admitindo a prática criminosa, revela que outra pessoa também o ajudou de qualquer forma. Esse é um testemunho qualificado, feito pelo indiciado ou acusado. Naturalmente, tem valor probatório, especialmente porque houve admissão de culpa pelo delator.
Assim, para que seja configurada a delação, deve o réu confessar que praticou um crime em concurso com outra ou outras pessoas e revelar quem são essas pessoas.
Segundo Capêz (2009, p.367) a “Delação ou chamamento de co-réu é a atribuição da prática do crime a terceiro, feita pelo acusado, em seu interrogatório, e pressupõe que o delator também confesse a sua participação”. Dessa forma, a delação é intrínseca à confissão.
A delação é assaz discutida no âmbito do Direito Penal brasileiro e será discutida neste estudo, visto que induziria a violação da ética pessoal e do Estado; é acompanhado de um prêmio[1]; e possui características diferentes a depender do crime.
Tal instituto foi instituído para crimes praticados em concurso de agentes e encontra-se previsto no Código Penal, em seu artigo 159, §4º – crime de extorsão mediante sequestro; na Lei n.º 9.034 de 1995 – que trata do crime organizado; na Lei n.º 7.492 de 1986, alterada pela lei n.º 9.080 de 1995 – crimes contra o sistema financeiro nacional; na Lei n.º 9.613 de 1998 – crime de lavagem de bens, dinheiro ou valores; na Lei n.º 9.807 de 1999 – Programa Nacional de Proteção a Vítimas e Testemunhas; na Lei n.º 11.343; na Lei n.º 8.072 de 1990 – que trata dos crimes hediondos;e na Lei n.º 8.137 de 1990 – crimes contra a ordem tributária.
Para o crime de extorsão mediante sequestro, a pena pode ser reduzida de um a dois terços, sendo exigidos três requisitos segundo Greco (2011, p. 120): “a) que o crime tenha sido cometido em concurso; b) que um dos agentes o denuncie à autoridade; facilitação da libertação do sequestrado.”
Deve ser observado que duas ou mais pessoas tenham a mesma unidade de desígnio no cometimento do crime, não sendo necessária a revelação do cúmplice, mas somente do crime e a denúncia deve ajudar na libertação do sequestrado. Caso o agente denuncie o crime, mas este depoimento não conduza à libertação da vítima não pode aquele ser beneficiado. Encontrando-se todos os requisitos é obrigatória a redução da pena, que será quantificada pelo juiz. Ademais, a diminuição de pena é incomunicável com os delatados.
Em outros crimes, como o previsto na Lei n.º 8.072/90 devem ser revelados os cúmplices e não somente o delito. É o que Capez (2005, p. 442) conceitua como “traição benéfica”. Para os crimes hediondos, o artigo 8º, parágrafo único, assevera que “O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços”. Já a Lei de proteção às vítimas, possibilitou em seu artigo 13 o perdão judicial ou a redução de pena de um a dois terços no artigo 14.
A utilização de tal medida em outros crimes, além dos arrolados, vem sendo difundida e se apresenta como válida para os que defendem a legitimidade desse instituto.
Sob o ponto de vista ético, em relação ao comportamento do Estado, afirma Oliveira (2009, p. 714):
Cumpre-nos examinar algumas alegações acerca da revogabilidade da medida (delação premiada), questionada pela doutrina, sobretudo do ponto de vista ético, dado que o Estado estaria se valendo da cooperação do delinquente para realizar a Justiça, ainda que ao preço da sua impunidade.
Entende-se que o Estado tem o dever de encontrar a verdade real, mas também de punir os infratores da lei de forma igual se praticado o mesmo crime. Estaria ele então buscando essa verdade de forma a propiciar ao delator uma possível redução ou extinção da pena que será aplicada aos comparsas sem a referida redução. Dessa forma Boldt (2006) [2] entende que “A delação premiada apresenta impropriedades, visto que rompe com o princípio da proporcionalidade da pena, pois se punirá com penas diferentes pessoas envolvidas no mesmo fato e com idênticos graus de responsabilidade”.
Contudo, não se verifica a impunibilidade do agente delator, visto que deve ser observada a individuação da pena, respondendo ele por sua participação tendo a sua pena atenuada por redimir-se do delito com vistas às consequências dessa confissão. É o que ocorre, por exemplo, na desistência voluntária ou arrependimento eficaz, artigo 15 do CP e no arrependimento posterior do artigo 16 do mesmo diplome legal.
Dessa maneira ensina Nucci (2008, p. 443) que:
não há lesão à proporcionalidade na aplicação da pena, pois esta é regida, basicamente, pela culpabilidade (juízo de reprovação social), que é flexível. Réus mais culpáveis devem receber pena mais severa. O delator, ao colaborar com o Estado, demonstra menor culpabilidade, portanto, pode receber sanção menos grave.
Já quando a ética fizer referência ao comportamento do criminoso, de acordo com Moreira Filho (2007) [3]:
proporcionado pelo Estado, o acusado é incentivado a trair seus comparsas, e ainda se favorecer da sua própria torpeza, haja vista que além de cometer o crime ainda se beneficia do fato de delatar seus companheiros às autoridades.
A traição é utilizada em nosso ordenamento penal como causa de aumento de pena. Ao trair o comparsa, estaria o Estado instruindo que esta conduta, reprovável pela sociedade, na verdade traz benefícios. O réu confessa que praticou o crime e delata os seus comparsas, esperando a redução ou até mesmo a extinção as pena.
De outra forma entende Oliveira (2009, p. 715) ao esclarecer que:
Ocorre que não existe nenhum dever moral do associado criminoso para com o seu bando e/ou organização criminosa. O dever, quando presente, há de encontrar sua justificativa em códigos de conduta meramente individuais, particulares, sem quaisquer pretensões de universalidade, dado que voltadas (as ações) exatamente para a destruição de bens e valores assegurados em lei à comunidade jurídica.
A partir desse entendimento, fica prejudicada a suposta falta de ética trazida pelo instituto. Os valores dos homens bons são diferentes dos que participam das organizações criminosas, onde vigoram as suas próprias leis e não a lei do Estado. A delação atua de forma a proteger um bem jurídico lícito, não se associando à traição como forma de qualificação de um delito, por envolver um ilícito. Cabe ainda ao acusado o direito ao silêncio se não desejar cooperar com a justiça. Ademais, o artigo 206 do CPP, prevê que todas as testemunhas são obrigadas a depor e a falar a verdade sob pena de falso testemunho contido no artigo 342 do CP.
Seguindo esse entendimento, afirma Nucci (2008 p. 433) que: “o benefício constituído por lei para que um criminoso delate o esquema no qual está inserido, bem como os cúmplices, pode servir de incentivo ao arrependimento sincero, com forte tendência à regeneração interior”. O arrependimento é, dessa forma, incentivado.
O estímulo à traição revela-se pequeno em relação à mais rápida e eficaz solução dos casos concretos. O conflito entre a moral do criminoso que pode ou não delatar os comparsas, para possível diminuição ou extinção da pena, não é satisfatório para retirar o instituto da delação premiada do ordenamento jurídico, visto que estaria esta moral contida na organização criminosa e vinculada a causas ilícitas.
Todos têm o dever de colaborar com a justiça, e o Estado apenas premia o delator, a depender do caso concreto, de forma individual, pois este mostra-se capaz de se reinserir na sociedade com maior facilidade em relação aos comparsas. O criminoso pode se arrepender do ato ilícito cometido, sendo estabelecidas causas objetivas e subjetivas para a diminuição da pena ou para o perdão judicial.
A não utilização desse instituto caracterizaria uma regressão na forma de se buscar a solução de um delito e somente as organizações criminosas se beneficiariam com tal prática.
REFERÊNCIAS
FERREIRA, Aurélio Buarque de. Mini Aurélio. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
BODLT, Raphael. Delação Premiada: o dilema ético. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2625/Delacao-premiada-o-dilema-etico>. Acesso em: 02 de junho de 2011.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Especial: volume 2. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
______. Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
GRECO, Rogério. Curdo de Direito Penal: Parte Especial: Volume 2. 8. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.
BRASIL. Lei n.º 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do artigo 5º, inciso XLIII da Constituição Federal e determina outras providências.
MOREIRA FILHO, Agnaldo Simões. Breves Considerações sobre a Delação Premiada. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/2487/1/Breves-Consideraccedilotildees-Sobre-A-Delaccedilatildeo-Premiada/pagina1.html>. Acesso em: 03 de junho de 2011.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
TÁVORA, Nestor; ANTONNI, Rosmar. Curso de Direito Processual Penal. 2. ed. Salvador: JusPodivn, 2009.
[1] Bem material ou moral recebido por serviço prestado, trabalho executado ou méritos especiais; recompensa, galardão, retribuição.
[2]http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2625/Delacao-premiada-o-dilema-etico. Acesso em 02 de junho de 2010.
[3]http://www.webartigos.com/articles/2487/1/Breves-Consideraccedilotildees-Sobre-A-Delaccedilatildeo-Premiada/pagina1.html. Acesso em 03 de junho de 2011.
Graduanda do 5º período da Universidade
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Rita de Cássia Antunes da. O instituto da delação premiada e a sua eficácia no direito penal e processual penal brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jul 2011, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24937/o-instituto-da-delacao-premiada-e-a-sua-eficacia-no-direito-penal-e-processual-penal-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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