1- Introdução e Delimitação do Objeto
Em que pese a inexistência de um Código de Processo Penal Societário ou, ao menos, a previsão de um capítulo específico no estatuto processual vigente, atento às idiossincrasias próprias de um procedimento voltado ao tratamento da criminalidade econômica, é patente a existência de um regramento supralegal, de índole doutrinária e jurisprudencial, dirigido à adequação das normas adjetivas à realidade corporativa[1].
As medidas cautelares e as características da sentença condenatória garantem, de certa forma, um signo individualizante deste ramo do direito penal, em regra marcado pelo estabelecimento de pesados encargos patrimoniais e por um arrefecimento nas exigências de culpa. Tais circunstâncias geralmente são apresentadas de forma sutil, emolduradas sob um discurso de resposta às expectativas sociais de justiça e excelência na repressão ao crime.
A questão recebe tratamento mais objetivo e direto, contudo, quando voltada aos requisitos inerentes à denúncia e à queixa nos referidos crimes econômicos, primeiro objeto de análise deste trabalho. Após, ultrapassadas as questões gerais, passar-se-á à apresentação de um requisito específico necessário à regularidade da denúncia relativa aos crimes fiscais.
2- Do Requisito de Individualização
Feita uma leitura do art. 41 do CPP, constata-se, como fator preponderante à validade da inicial acusatória, a exigência de descrição do fato em todas as suas circunstâncias, sendo necessário, para o concurso de agentes, a especificação da conduta de cada um[2].
Desnecessário alertar que a redação do dispositivo comentado não foi elaborada com os olhos voltados para o fenômeno criminal-societário, praticamente desconhecido em 1941, época da elaboração da Lei.
Isso não impediu, entretanto, a busca de um enfrentamento adequado do problema, podendo ser estabelecidas três fases distintas de abordagem. A primeira vai até o fim da década de 1960 e apresenta-se marcada por um alheamento da questão[3]; a segunda ainda conta com ampla adesão da doutrina e jurisprudência, sendo caracterizada por um recrudescimento punitivo, com diminuição das exigências de individualização da conduta relativa a cada autor[4]; finalmente, a terceira apresenta-se caracterizada por um retorno à letra do art. 41 do Código de Processo Penal, aproximando a denúncia nos crimes societários daquela preconizada para a criminalidade comum.
Como dito, os dois últimos posicionamentos ainda disputam a aceitação no cenário nacional, havendo tanto quem defenda a diminuição do rigorismo individualizante (corrente relativista)[5], como quem postule a unicidade procedimental entre os crimes comuns e os delitos societários (corrente absolutista).
A corrente relativista fundamenta-se em critérios de ordem prática, sustentando a inviabilidade do conhecimento e separação de condutas praticadas no âmbito corporativo. Em sentido diametralmente oposto, a corrente absolutista busca uma postura garantista, valendo-se da ideia de que as normas processuais visam justamente à imposição de limites ao jus persequendi.
Pode-se afirmar que este é, atualmente, o ponto nodal para o qual convergem as discussões a respeito dos requisitos da denúncia nos crimes societários, havendo indicativos de prevalência da corrente absolutista, adotada pelo Supremo Tribunal Federal em decisão que estabeleceu verdadeira mudança de orientação sobre o tema[6].
A nosso ver, está correto este último posicionamento, não apenas pela natureza teleológica das normas processuais penais, conforme retro asseverado, mas também pela inexistência, no ordenamento brasileiro, de dispositivo processual em sentido diverso, necessário à validade das pretensões advogadas pela corrente relativista.
Sem a pretensão de esgotar a matéria anterior, e tendo-se em vista a natureza investigatória do presente trabalho, passa-se à especialização do tema, com enfoque direcionado à denúncia nos crimes fiscais, espécie do gênero crimes econômicos. Salienta-se, contudo, a importância do estudo voltado ao requisito geral denominado “justa causa”, decorrente da confluência das condições da ação e previsto no art. 395, III, do Código de Processo Penal[7].
3- Crimes Fiscais e Requisito Específico
Conforme a ótica estampada no posicionamento adotado anteriormente, é possível concluir que a denúncia envolvendo os sócios de uma sociedade empresária pela prática de sonegação fiscal deve ir além da simples indicação da existência de poderes de gerência estabelecidos no contrato social.
Faz-se necessário indicação determinada, certa, relativa a cada denunciado, com menção às provas da imputação e demonstração lógica do nexo causal entre a conduta e o resultado perseguido pela ação penal.
A estas circunstâncias agrega-se a possibilidade jurídica do pedido, estampada na exigência de tipicidade da conduta apontada pela denúncia ou queixa. Se o fato for atípico, não haverá possibilidade jurídica e, consequentemente, justa causa para a ação penal.
É exatamente neste ponto que reside uma das questões de maior relevância em relação aos crimes fiscais, que exigem, do aplicador da lei, a elaboração de um diálogo fluente entre as ciências penal e tributária para a determinação dos conceitos de tributo, contribuição social, acessórios, prazo legal e documento (de natureza fiscal).
Seguindo essa toada, o Supremo Tribunal Federal determinou, por meio do HC 81.611-8/DF, que o processo penal por delito tributário depende, para sua instauração, do término do procedimento administrativo, pois somente após tal ato estaria configurado o tributo, tido por parte da Corte Suprema como elemento normativo do tipo[8].
Há, contudo, um ponto carente de análise mais acurada, tanto pela doutrina como pela jurisprudência, em relação aos crimes fiscais praticados no âmbito empresarial.
Trata-se da necessidade de explicitação, já na denúncia, de elemento normativo implícito, decorrente da sistematização imposta pelo Código Tributário Nacional para a responsabilização dos sócios administradores da sociedade empresária.
Explica-se.
Ao determinar que a denúncia deve apresentar a descrição do fato em todas as suas circunstâncias, o art. 41 do CPP estabeleceu um dever de fidelidade do acusador à figura típica perseguida pela ação penal, cabendo-lhe atentar para a existência de circunstâncias específicas (não acidentais) inerentes a cada delito. Dentre tais circunstâncias, há aquelas “para as quais não basta o simples emprego da capacidade cognoscitiva, mas cujo sentido tem de ser apreendido através de particular apreciação por parte do juiz”[9]. Trata-se dos elementos normativos do tipo, os quais compreendem parte integrante e indissolúvel da figura delitiva.
Seguindo-se o raciocínio supra, faz-se imprescindível, na denúncia por tráfico de drogas, a menção à circunstância “falta de autorização legal ou regulamentar” (art. 33, Lei 11.343/06), da mesma forma que é exigível, na denúncia de comércio ilegal de arma de fogo, referência ao elemento “no exercício de atividade comercial ou industrial”[10] (art. 17, Lei 10.826/03).
Ausente o elemento normativo constitutivo do tipo penal, deve a denúncia ser julgada inepta, por cuidar de fato atípico[11].
De retorno aos crimes fiscais, é possível estabelecer a existência de um elemento normativo implícito decorrente da letra do art. 135, do CTN, que condiciona a responsabilização dos sócios e administradores por atos praticados “com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos”.
Não se trata, em absoluto, de uma questão marginal, mas intimamente ligada ao conceito de culpa, havendo julgado do Supremo Tribunal Federal determinando a inconstitucionalidade do art. 13 da Lei 8.620/93[12], que estabelecia, na esfera cível, responsabilidade total e solidária dos sócios de sociedade limitada pelas dívidas junto à Seguridade Social.
Decidiu-se, à oportunidade, que não é dado ao legislador estabelecer presunção absoluta de responsabilidade fiscal, uma vez que o Código Tributário Nacional, ordenamento apto ao estabelecimento de regras gerais para a matéria, é claro ao condicionar dita responsabilidade às circunstâncias específicas do art. 135.
Por óbvio tal exigência, incontestável nos âmbitos cível e administrativo, não pode ser relegada no momento da instauração de uma ação penal, onde se tem um altíssimo potencial de infringência da dignidade e da liberdade do indivíduo e, consequentemente, exigências maiores de cautela.
Note-se, ademais, que embora seja patente a existência de princípios diversos entre as esferas criminal e fiscal, é igualmente inegável a dependência das normas penais tributárias em relação às regras estabelecidas pelo Código Tributário Nacional[13], ao ponto de JUARY C. SILVA classificar as normas em questão como verdadeiras normas penais em branco[14].
De fato, sem a indicação das circunstâncias presentes no art. 135 do CTN fica, inclusive, difícil – senão impossibilitada –, a pré-visualização do dolo para a conduta, o qual representa outro requisito insuprimível do juízo de tipicidade e consequente legitimidade da acusação.
Conclusão.
Novamente alertando para o fato de que o presente artigo não se presta a uma abordagem completa do tema, dedicando-se, ao invés, a um tratamento minimamente aprofundado das questões ora entendidas como de maior relevo à matéria, é possível concluir pela exigibilidade, na denúncia e na queixa promovida por crimes econômicos, da individualização da conduta de cada participante arrolado como coautor ou partícipe dos fatos.
A este requisito pode ser somada a exigência de demonstração (ainda que parcial) do dolo para a conduta, nexo de causalidade, bem como da possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e legitimatio ad causam.
No que tange aos delitos fiscais praticados no âmbito das sociedades empresárias, além das circunstâncias acima referidas, faz-se necessária a menção ao elemento normativo implícito decorrente da letra do art. 135, do CTN, sob pena, inclusive, de infringência ao princípio constitucional da ampla defesa.
Referências Bibliográficas
AMARAL, Leonardo Coelho. Crimes sócio-econômicos e crimes fiscais, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 43, setembro-outubro de 2010, p. 208.
BRUNO, Aníbal. Direito penal, T. 1, v. 1, Rio de Janeiro: Forense, 1978.
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 17 ed., São Paulo: Saraiva, 2010.
GRINOVER, Ada Pellegrini. As condições da ação penal, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 69, nov./dez. de 2007, p. 179/199.
LYRA, Roberto. Criminologia. 4 ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 1991.
SILVA, Juary C. Elementos de direito penal tributário, São Paulo: Saraiva, 1998.
[1] É certo que existe um rol considerável de leis especiais com enfoque voltado à criminalidade econômica, mas é justamente o seu caráter extravagante que impede a adoção de um tratamento processual com níveis ótimos de segurança jurídica. No mais, a tônica destas normas estabelece uma preocupação primária com o direito material, restando o direito processual relegado a um segundo plano.
[2] CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 191.
[3] Lyra apontava na década de 1960, parece-nos que de forma pioneira, para a existência de uma criminalidade característica de pessoas bem relacionadas social, política e economicamente. LYRA, Roberto. Criminologia. 4 ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 31.
[4] Mirabete sustentava que, para os crimes societários, bastaria à conformidade da denúncia a afirmação da existência de prévio ajuste entre os denunciados. (MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 1991, p. 123.
[5] STJ, 5ª Turma, Habeas Corpus 48.611/SP, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 06.05.2008.
[6] STF, 2ª Turma, Habeas Corpus nº 86.879-7/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 21.02.2006, D.J. 16.06.2006.
[7] Sobre as condições da ação no direito processual penal, é imprescindível a leitura de artigo intitulado “As condições da ação penal”, de autoria de Ada Pellegrini Grinover e publicado na RBCCRIM n.º 69.
[8] HC 81.611-8/DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 10.12.2003, DJ 13.05.2005.
[9] BRUNO, Aníbal. Direito penal, T. 1, v. 1, Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 346.
[10] TJMG, Ap. 0024566-67.2005.8.13.0012, rel. Des. Hélcio Valentim, j. 25.03.2010.
[11] Nesse sentido, Mirabete estabelece a necessidade de menção às “expressões grosseiras no crime de desacato, o sentimento pessoal que moveu o agente no delito de prevaricação, a forma de inobservância do cuidado objetivo na infração culposa”. Op. cit., p. 122.
[12] Art. 13. O titular da firma individual e os sócios das empresas por cotas de responsabilidade limitada respondem solidariamente, com seus bens pessoais, pelos débitos junto à Seguridade Social.
[13] “O substrato fático dos crimes fiscais parte, portanto, da normatividade própria do tributo, cuja compreensão leva à constatação da mais importante, sem dúvida alguma, característica de tais delitos, de modo a deixar evidente de que se tratam de crimes sócio-econômicos. (AMARAL, Leonardo Coelho. Crimes sócio-econômicos e crimes fiscais, RBCCRIM 43, p. 208).
[14] Elementos de direito penal tributário. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 65.
Advogado Criminal em São Paulo, especializando em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (GVLaw), membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e da Comissão de Direito Criminal da OAB/SP, sócio do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOULART, Douglas Lima. Particularidades da Denúncia nos Delitos Econômicos - Crime fiscal e elemento normativo implícito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 ago 2011, 02:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/25389/particularidades-da-denuncia-nos-delitos-economicos-crime-fiscal-e-elemento-normativo-implicito. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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