Não vou abordar esse assunto da forma como nos impõem os mais modernos que, acendendo a fogueira e puxando a brasa para o seu assado, associam pichação com grafite. Como pesquisadora da pichação com suas motivações e suas consequências, vou separar bem as coisas. Não vou falar em grafite. Vou falar somente em pichação. Talvez esse enfoque, por si só, já seja terapêutico. Não associar crime com arte já esvazia muito as motivações. Os pichadores querem que os associemos aos grafiteiros. Assim, o que é crime passa a ter certo aspecto de arte, de forma de expressão, de contraponto às comunicações urbanas e, se assim não for abordada, pelo menos lança dúvidas e alimenta polêmicas intelectuais que objetivam mais a vaidade da voz do que o pensamento lógico exposto na razão das palavras bem ditas. Sei que existe uma relação entre os dois grupos e poderíamos até pensar em “médico e monstro”, onde o mesmo indivíduo trazia em si um maniqueísmo personificado separado em dois seres internos vivendo em conflito e exibindo ora um, ora outro tendo os dois o mesmo DNA.
Sendo mais moderna, poderia associar esta correlação ao filme “O Feitiço de Áquila”, cujo enredo mostra o homem diurno dando lugar ao lobo noturno, e uma mulher, à noite, transformando-se em uma águia de dia. Mas este ponto em comum não é assunto para os intelectuais.
Não é saudável estabelecermos laços artísticos ou de forma de expressão entre grafite e pichação. Esta última, além da movimentação de dinheiro por meio das apostas que os pichadores fazem entre si para premiarem o mais ousado, o mais destemido e o mais forte, tem como motivações principais a transgressão das leis e a agressão ao cidadão. Os “bondes”, nome dado aos grupos, são constituídos de elementos - às vezes marginais e às vezes bem criados. Quase sempre são usuários de álcool e de drogas. Também traficam entorpecentes para adquirirem as tintas que são muito caras. São meninos e meninas que atuavam durante as madrugadas, mas que, agora, dada a ineficácia e o descaso do poder público, produzem suas manchas à luz do dia.
Porto Alegre, depois de São Paulo, possui um dos maiores pólos de pichadores do Brasil. É famosa no mundo inteiro. Nas redes de relacionamento da internet, os diálogos dos vídeos que exibem as pichações, orgulhosamente postados pelos próprios pichadores, são legendados em inglês, alemão e francês. São mais de 30 “bondes” e, cada um, com extenso número de componentes, sendo um deles com mais de 50, trazendo por inarredável a constatação da formação de quadrilha com todas as suas nefastas características: unidos para prejudicar seriamente a alguém.
Existem dados de pesquisa que apontam como modus operandi dos “bondes” pequenos furtos e até homicídios. Somando-se à formação de quadrilha, pequenos furtos, tráfico de drogas, homicídios, dano aos patrimônios públicos e privados, pergunto: o que falta para que os gestores públicos e as autoridades da segurança pública enxerguem esses elementos como criminosos comuns?
O que está faltando para desenvolverem métodos de vigilância e aplicarem penas mais duras que contemplem todos os crimes que a pichação pratica? O que falta para perceberem que o cidadão, ao contemplar a cidade e, muitas vezes, sua própria casa totalmente pichada, sente insegurança e revolta? Por que o cidadão que trabalha e produz está vivendo aterrorizado pagando a conta com seu patrimônio pessoal ou com seus impostos que são gastos com milhares de reais em tintas especais antipichação que tratam os sintomas e não as causas e, mesmo assim, somente do patrimônio do prefeito e não o do cidadão? Por que as autoridades que tudo sabem e tudo veem não compõem um serviço de inteligência para investigar, punir e coibir esses impunes criminosos? Está faltando coragem? Não vejo outra razão que não seja a velha e boa mãe de todos, a falta de vontade política que gera em seu útero a nova e ameaçadora irmã mais nova dos brasileiros: a impunidade!
O assunto é tão grave que devemos partir para uma reflexão sobre a pichação: os “bondes” não são formados por homens empoeirados, calçando botas envelhecidas, vestindo roupas de couro surradas, tripulando velhas carcaças super velozes que percorrem os desertos americanos em cena do filme Mad Max, chefiados pelo Mel Gibson onde a Tina Turner canta “nós não precisamos de heróis”. Os “bondes” são compostos por nossos filhos arregimentados por um cara que chamam de “cabeça” por ser o mais forte do bando e que, astuciosamente, promete perigo, celebrização e ocupação para uma vida vazia, sem limites e sem perspectivas. São os nossos filhos que, contrariando a música, precisam, sim, de heróis como em qualquer tempo da humanidade; os adolescentes sempre precisaram de um ídolo. Presas fáceis.
Nós, pais, trabalhamos muito para pagarmos quase 50% do que ganhamos em impostos aos cofres públicos para termos boa educação, saúde, transporte, saneamento básico e segurança para nós e nossos filhos, mas não temos. Estamos abaixo dos limites da dignidade nesse Brasil que deu certo! Enquanto isso, nossos filhos, aos quais mal conseguimos sustentar quanto mais dar atenção, são apenas elementos que, ao serem manipulados ou os buscamos em delegacias assinando termos circunstanciados por pichação, ou procuramos clínicas de recuperação de drogados para interná-los ou levá-los ao cemitério. Morto porque caiu do prédio onde estava pichando, ou porque teve overdose, ou, ainda, porque, depois de o mantermos em um quarto acorrentado para distanciá-lo do craque, nós mesmos temos que matá-lo!
Posso estar sendo muito fatalista, mas esta é a triste realidade brasileira e a pichação é, sim, o primeiro degrau dessa escalada. Infelizmente, no Brasil, de uma maneira geral, não há percepção de gestores e legisladores públicos sobre os primeiros degraus. Não existe prevenção, somente calamidade pública decretada depois. Quando percebemos, o primeiro degrau já virou uma escadaria inteira e, não raro, lá em cima está nosso rebento procurando seus heróis ao lado de uma parede pichada, e esta parede é a de nossa própria casa e de nosso coração, de nossa alma.
A pichação não deve nem de perto ser discutida como forma de manifestação artística ou de expressão; enganam-se nossos intelectuais! Enganam-se nossos filhos e nos enganam nossos gestores e nossos legisladores ao não darem a devida importância aos riscos e rabiscos que infestam nossas famílias, nossos prédios e nossa cidade, apesar de saberem da gravidade.
Mas daqui dou um recado aos gestores públicos: não estão nos enganando! Sabemos que os senhores têm consciência de que a pichação é o primeiro degrau. Sabemos que ministrar cursos de grafite, pagode, hip hop e esportes nas comunidades carentes, o que os senhores apontam e incentivam como solução, nada mais é do que a mais cruel forma de exclusão social. O que será que acontece com aquele jovem que não consegue o êxito de um Ronaldinho ou dos gêmeos grafiteiros de São Paulo? Para onde ele vai portando sua frustração? Sabemos que esses cursos lúdicos, largamente ministrados para os jovens de risco social, não preparam ninguém para a vida. Somente os distraem enquanto durarem seus governos. São meras engambelações!
Mas nós sabemos que o lobo noturno não é só o pichador! Nós sabemos!
Alice Prati
Restauradora e autora do projeto e livro “SOS Monumento”
[email protected]
www.galeriadorestauro.com.br
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