1 INTRODUÇÃO
O cometimento de um fato típico, antijurídico e culpável, assim considerado como crime, imprime o dever, quando do conhecimento da autoridade policial, de instauração de inquérito policial, para apuração de sua autoria e materialidade, na busca da verdade real, haja vista que a referida investigação servirá para formação da opinio delict do autor da ação penal. Logo, o inquérito policial, é apenas peça informativa do processo, concebido como procedimento administrativo pré-processual, que é caracteristicamente inquisitorial, sigiloso, formal e sistemático.
Assim, o inquérito policial não é obrigado a obedecer a um procedimento pré-determinado, podendo as investigações seguir diferentes sentidos, sempre visando o esclarecimento do fato criminoso, e todas suas circunstâncias. Desse modo, por seu caráter inquisitorial, o delegado de polícia, que é presidente do inquérito, é livre para estabelecer a forma de se proceder as investigações, porém o mesmo, deverá observar os preceitos constantes no Código de Processo Penal, bem como na Constituição Federal.
Partindo desse pressuposto, Código de Processo Penal dispõe em seu art. 6º as providências essenciais para apuração da infração penal e sua autoria, o qual demonstra que a autoridade policial não esta vinculada a nenhuma forma de procedimento, tendo por seu turno, caráter discricionário. Todavia, tal fato, não poderá, em nenhuma hipótese dar ensejo a arbitrariedade da autoridade policial, haja vista que a discricionariedade deve atender ao princípio da legalidade, situação essa que impede o cometimento de abusos contra o investigado ou indiciado.
O inquérito policial, como atividade administrativa, em seu desenvolver, deve obedecer a normas e princípios definidores do procedimento e da tutela das garantias fundamentais do indiciado. Nesse passo, o inquérito policial deve ser garantista à medida em que respeita os bens, valores e interesse individuais do indiciado, preservando-o de sofrer ilegalidades. Apesar do inquérito policial não constituir, no Brasil, atividade administrativa garantista, por não apresentar compatibilidade com a Teoria Geral do Garantismo de Ferrajoli, têm alguns aspectos garantistas, embora não comporte o contraditório.
Para tanto, neste trabalho monográfico, enfrentar-se-á a problemática das garantias do indiciado no âmbito do inquérito policial, verificando se este procedimento é garantista ou não à luz da Teoria Geral do Garantismo construída por Luigi Ferrajoli.
Assim, a escolha do tema surgiu a partir das discussões acadêmicas desenvolvidas ao longo da disciplina de Processo Penal e das demais relacionadas a ela, devido a relevância do referido tema para o direito pátrio.
Convém, nesse abordagem das garantias do indiciado no inquérito policial, hipoteticamente, verificar se o agente ao cometer o crime de homicídio e submeter-se a investigação policial, na qual fossem realizados os exames de local do crime, da arma do crime, cadavérico da vítima, depoimento de testemunhas, interrogatório, acareações, verificação dos antecedentes criminais, requerimentos de decretação de prisão e de busca e apreensão, relatório se, ao final de todas essas etapas procedimentais, ele (indicado) teve asseguradas todas as garantias constitucionais e infraconstitucionais delas decorrentes; e se tais garantias efetivadas são suficientes para assegurar-se que o inquérito policial é procedimento garantista, considerando como referência o garantismo penal de Ferrajoli.
A pesquisa desenvolvida nesta monografia, ao investigar o procedimento administrativo policial em cotejo com a Teoria Geral do Garantismo de Ferrajoli, visa a partir de uma atividade administrativa, verificar se no Brasil, é aplicável o garantismo penal e, por consequência, se o Brasil se caracteriza como Estado de Direito ou Constitucional de Direito, considerando que a Teoria Geral Garantista sugere, ao propor a limitação dos poderes do Estado e a tutela dos direitos fundamentais individuais e metaindividuais, um novo modelo de Estado, baseado em normas e princípios constitucionais, que é o Estado de Direito.
Em verdade, este trabalho se propõe, como objetivo geral, ao analisar os universos do inquérito policial e da Teoria Geral do Garantismo, verificar e dimensionar o grau de garantias do indiciado, no curso da investigação policial, destinada a buscar a verdade real acerca da existência do crime e de sua autoria, com a anotação de todas as circunstâncias fáticas, técnicas e jurídicas.
Como objetivo específico, propõe-se no primeiro capítulo, abordar o inquérito policial em todas as suas faces, iniciando por breves notícias históricas a ele relacionadas para em seguida expor seu conceito como procedimento administrativo policial de caráter informativo, destinado a informar, ao autor da ação penal, acerca da existência do crime e de sua autoria. Em seguida, acentuar-se-á as características do inquérito policial, e por ultimo, discorrer-se-á sobre o seu procedimento e arquivamento à luz dos direitos fundamentais e garantias estabelecidas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal.
No segundo capítulo, abordar-se-á a teoria geral do garantismo, com todas as suas nuances, procurando manter fidelidade ao pensamento de Luigi Ferrajoli. Preliminarmente, tecer-se-á considerações sobre o garantismo em todas as suas vertentes e ramificações, em sua funções executiva, legislativa e jurisdicional, para no final identificar os princípios que, na concepção de Ferrajoli, orientam a Teoria Geral do Garantismo.
No terceiro capítulo desta monografia, estabelecer-se-á uma análise do inquérito policial à luz da teoria do garantismo penal, acentuando os princípios constitucionais e infraconstitucionais orientadores do referido procedimento administrativo, algumas orientações jurisprudenciais a ele referentes, as provas renováveis e não renováveis produzidas nessa fase processual, e, finalmente, o enfoque da teoria geral do garantismo em face desse procedimento pré-processual.
Para tanto, o presente trabalho será realizado utilizando-se do método hipotético-dedutivo, na medida em que busca apresentar uma abordagem geral sobre o inquérito e a teoria geral do garantismo, apontando uma visão crítica sobre o inquérito policial brasileiro, no que tange as garantias do investigado, para assim se alcançar uma nova visão sobre o assunto.
Nesse sentido, a análise bibliográfica a ser realizada buscará fundamentar as posições doutrinárias acerca da problemática proposta. A pesquisa bibliográfica percorrerá pela doutrina pátria, bem como pela doutrina alienígena, alcançando artigos científicos, livros, e decisões jurisprudenciais.
2 INQUÉRITO POLICIAL
2.1 Breves notícias históricas
Em verdade, a notícia precisa sobre a origem do inquérito policial é incerta, não se sabendo exatamente quando surgiram as primeiras investigações policiais que redundaram no inquérito policial. Sabe-se, entretanto, que as primeiras investigações desenvolvidas pelo poder soberano, aconteceram em Roma antiga, sem a precisão da data e do contexto histórico. Desse modo, Garcia (2009, p. 8) ressalva que “o inquérito, de forma embrionária, teve sua origem em Roma, com passagens pela Idade Média e referências na legislação portuguesa e, logicamente com aplicação no Brasil”.
É de conhecimento notório que a maioria dos institutos jurídicos existentes, tiveram origem em Roma Antiga, a exemplo do Corpus Iuri Civili e a Lei das XII Tábuas. Em Roma Antiga, ocorreu o berço do direito romano-germânico, que influenciou sobremodo o direito lusitano, que, por sua vez, influenciou marcantemente o direito moderno. Assim, Wolkmer (2007) afirma que ainda que os institutos romanos sofram severas críticas, como é o caso da escravidão, das práticas imperialistas e rigidez formal; não há como se negar a influência no direito moderno ocidental dos marcos jurídicos criados a época, como o Corpus Iuri Civili (Código de Justiniano) e a Lei das XII Tábuas.
Conclui-se, portanto, que o inquérito policial nasceu em Roma Antiga, onde se desenvolveram as primeiras investigações destinadas a apurações de infrações penais. É importante anotar que, àquela época, ainda não havia uma clara definição do que era infração penal e infração não-penal.
Partindo dessa premissa, Wolkmer (2007) explica que naquela época não havia decisões judiciais, posto que não existia uma autoridade determinada e nem coerção Estatal satisfatória para aplicação de uma sanção penal, como punição daqueles que praticassem violência contra os bens jurídicos relevantes, existindo apenas violações em caráter civil. Portanto, não existia um poder coativo, que tivesse a função de aplicar uma sanção jurídica de forma organizada e centralizada, sendo que até mesmo as “citações” feitas pelas próprias pessoas envolvidas no litígio.
Já na Idade Média, principalmente a partir do sec. XII, as investigações, que tiveram origem em Roma Antiga, se intensificaram, quer pelo Estado Absolutista quer pelo Santo Ofício. Tanto os imperadores, como os papas, através de seus agentes, desenvolveram investigações para elucidar infrações, que redundaram em mortes de pessoas. Nesse período, ainda não se fazia diferenças entre infrações penais comuns, infrações políticas e infrações cometidas à doutrina estabelecida pela Igreja Católica Apostólica Romana.
Assim, nesta época não havia uma diferença clara entre direito e religião, tendo origem a Inquisição, época em que foram instaurados os Tribunais Eclesiásticos e Tribunais Seculares, que tinham a função de combater as heresias, consideradas como crime lesa-magestade, e que eram configuradas pelas atividades que não condiziam com os dogmas da Igreja Católica. Desse modo, os tribunais aprisionavam esses hereges com o intuito de obter confissão, e se fossem condenados, dependendo da gravidade do crime ocorreria a punição, que consistia no confisco de bens ou mesmo na morte pelo fogo (WOLKMER, 2007).
Já na Idade Moderna, o direito português adotou as investigações estatais, como forma de apuração das infrações penais. O resultado dessas apurações era remetido aos tribunais. O modelo de investigação adotado em Roma Antiga e na Idade Média não era muito diferente da concepção ocorrida pelo direito português. Esse mesmo modelo de investigação concebido pelo direito português vigorou no Brasil desde a colonização portuguesa até o Império.
No Brasil, a primeira lei a tratar das investigações policias foi a de n. 261, de 1841, que não as denominou de inquérito policial, expressamente, sendo considerada como primeira referência expressa o conteúdo contido no Decreto n. 4824/1871, que regulamentou a Lei n. 2.033/1871, que desta vez, referia-se às investigações policiais utilizando a denominação inquérito policial (GARCIA, 2009).
Dessa forma, é importante ressaltar o que dispõe os artigos referentes ao tema contidos no decreto 4824/71
Art.38 Os Chefes, Delegados e Subdelegados de Policia, logo que por qualquer meio lhes chegue a noticia de se ter praticado algum crime comum, procederão em seus districtos ás diligencias necessárias para verificação da existência do mesmo crime, descobrimento de todas as suas circunstâncias e dos delinqüentes.
Art.42 O inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e dos seus autores e cúmplices; e deve ser reduzido a instrumento escrito. (2011, p.1)
Portanto, o referente decreto buscou denominar e regulamentar de forma sistemática o inquérito policial, que passou a partir desta data a ser exigência legal, no qual atribuiu-se a competência para presidi-lo à autoridade policial.
Assim, conforme ensinamentos de Nucci (2007), o inquérito tem suas funções positivadas muito antes da Lei 2.033/1871, onde foi mencionado pela primeira vez de forma expressa, porém seu procedimento foi especializado com a observância e aplicabilidade efetiva do princípio da separação da polícia e judicatura.
Por fim, o inquérito policial atualmente adotado foi regulamentado pelo Código de Processo Penal de 1941, o qual manteve a nomenclatura existente, tendo tais investigações influências das regulamentações anteriores.
2.2 Conceito e características
O inquérito policial é um procedimento escrito, de natureza administrativa, com o intuito de buscar indícios da existência de crime, esclarecendo sua autoria e materialidade, tendo por destinatários o Ministério Público ou ofendido ou seu representante legal, aos quais será disponibilizado para a eventual propositura da ação penal, seja ela de ação penal pública, seja ela de ação penal privada.
Todavia, verifica-se que o Código de Processo Penal não define ou conceitua o que seria o inquérito policial, tarefa essa desempenhada pela doutrina pátria, a qual o considera como um procedimento preliminar à ação penal, é dizer, trata-se de um procedimento pré-processual, e garantidor, na medida em que busca evitar uma infundada investigação penal (RANGEL, 2010).
Assim, para Garcia (2009, p.9), “trata-se de um procedimento formal de investigação. É peça informativa, compreendendo o conjunto de diligências realizadas pela autoridade para apuração do fato e descoberta da autoria”. A autoridade competente para instaurar e desenvolver o inquérito policial é a policial, isto é, o delegado de polícia.
Dessa forma, a finalidade do inquérito policial é fornecer informações necessárias aos “agentes” legitimados para propor a ação penal, seja para o ofendido ou para o seu representante legal ou para o Ministério Público, dependendo da natureza da ação penal. Assim, verifica-se a característica da unidirecionalidade do inquérito policial.
Esse procedimento formal, no direito brasileiro, constitui fase pré- processual prescindível, porque os titulares da ação penal poderão propô-la sem o seu concurso, ou seja, a ação penal pode ser proposta sem o inquérito policial, desde que ela seja acompanhada de elementos suficientes para demonstrar “nitio litis” a existência do crime e sua autoria. Desse modo, Pacelli em seu Manual de Processo Penal (2011, p. 52) afirma que “o inquérito não é, absolutamente indispensável à propositura de ação penal, podendo a acusação formar o seu convencimento a partir de quaisquer outros elementos informativos”.
Partindo dessa premissa, o artigo 12 do Código de Processo Penal dispõe que “o inquérito acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra”; assim sendo, esta peça informativa somente deverá acompanhar a fase processual, como visto alhures, quando servir de base para a referida ação penal, podendo essa ser proposta apenas com informações suficientes.
Para que seja proposta a ação penal, o titular deverá ter indícios de autoria e a certeza da existência do crime, portanto, meras suspeitas não autorizam a persecução penal. O inquérito policial, como procedimento que antecede a persecução penal, deve verificar a existência do crime e, pelo menos, indício idôneo de sua autoria. Por seu turno, tal procedimento não estabelece juízo de valor acerca do crime, cingindo-se a autoridade policial, ao fim do procedimento, a disponibilizar ao autor da ação penal as informações colhidas no decorrer da investigação, descrevendo, minuciosa e precisamente os fatos apurados, através do seu relatório, cabendo ao destinatário dessas investigações a formação da “opinio delicti”.
Dessa forma, Pacelli (2011) explica que o inquérito policial tem natureza administrativa, instaurado antes de se chegar a jurisdição, sendo considerado uma fase pré-processual, que busca a verdade sobre o caso penal, bem como a formação do convencimento do Ministério Público. Desse modo, também nesta fase, o juiz é totalmente imparcial, somente se manifestando em caso de violações e ameaça de danos aos direitos inerentes as partes, ou mesmo para garantir a efetiva prestação jurisdicional.
Há afirmações no sentido de que o inquérito policial nem deveria existir, considerando o despreparo da polícia judiciária para desenvolvê-lo a contento como também pela existência de corrupção policial; nesse sentido Lima acrescenta “(...) a carência policial de meios e despreparo de pessoal, aliada a casos cada vez mais freqüentes de arbitrariedades, levantam-se vozes pregando a abolição do procedimento” (LIMA, 2006, p. 77).
Apesar da prescindibilidade do inquérito policial e das dificuldades materiais e pessoais vividas pela polícia judiciária, convém anotar sobre sua essencialidade no sistema criminal brasileiro, na medida em que é considerado meio de se alcançar informações concretas sobre o crime e de garantia do agente investigado, não imputando a ele acusações infundadas, se ele for mesmo inocente, posto que se quer alcançar o máximo possível a verdade.
Conquanto, o inquérito policial constitui procedimento administrativo, ele é também orientado pelo princípio da verdade real, haja vista que o estado - administração (polícia judiciária) ao investigar suposta conduta do indiciado não pode fazê-lo arbitrariamente.
A competência para instauração e desenvolvimento do inquérito policial é da polícia judiciária, como dispõe o art. 4º do CPP: “a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e de sua autoria”.
O doutrinador E. Magalhães de Noronha (2002) nessa linha de raciocínio, ensina que a polícia possui função administrativa e judiciária, sendo a primeira preventiva, na medida em que busca garantir a ordem pública, resguardando os direitos inerentes ao indivíduo, para que este não seja lesados por ato ilícito de alguém. Já a judiciária, vem incidir após a prática de um delito, cujo objetivo é colher elementos deste, de modo a impedir que as provas venham a desaparecer, sendo considerada como uma função repressiva auxiliar da justiça.
A Constituição Federal, em seus §§ 1º, IV e 4º do art. 144, determina que a polícia judiciária no Brasil, é exercida pela polícia federal, quando a apuração do fato criminoso for de interesse da União, e das polícias civis dos Estados, em suas respectivas circunscrições, quando a apuração do fato criminoso não envolver interesse da União. Existem outras modalidades de inquéritos ou procedimento administrativos que não são da competência da policia judiciária, que são chamados inquéritos não policiais, ora estabelecidos na Constituição Federal ora em leis especiais, como por exemplo, inquérito estabelecido por Comissão Parlamentar de Inquérito, inquérito para apuração de falta grave de empregado, inquérito administrativo disciplinar, dentre outros. Nesses casos, a polícia judiciária não tem competência para atuar.
A rigor, o procedimento do inquérito policial é estabelecido pelo Código de Processo Penal, em seus artigos 4º ao 23º. Os demais procedimentos administrativos têm outras normas que estabelecem suas desenvolturas, tais como leis especiais e outros atos normativos, situados no campo da administração, como, por exemplo, portarias, resoluções, regimentos internos, etc.
Cumpre ressaltar o que afirma Rangel (2010, p.76) que “o inquérito policial tem apenas valor informativo. Não visa emitir nenhum juízo de valor sobre a conduta do autor do fato, como visto anteriormente, não tendo conteúdo decisório. Diferentemente do inquérito policial é, por exemplo, o procedimento administrativo disciplinar, decorrente do poder hierárquico do Estado, que encerra conteúdo decisório. Por essa razão, o inquérito policial é um procedimento administrativo “sui generis”, porque encerra conteúdo meramente informativo e não decisório, como outras espécies de procedimento administrativo.
Por conveniência e oportunidade, em verdadeiro juízo discricionário, a autoridade policial, verificando a necessidade de resguardar o interesse da sociedade e considerando a complexidade para elucidação do fato criminoso, poderá impor sigilo ao inquérito policial, conforme previsão do art. 20 do CPP. Assim, o sigilo da investigação é “essência do inquérito. Não guardá-lo é muitas vezes fornecer armas e recursos ao delinqüente, para frustrar atuação da autoridade, na apuração do crime e da autoria” (NORONHA, 2002, p. 27-28).
Portanto, a imposição de sigilo às investigações, é essencial em determinados casos, não podendo ser privado tal direito, sob o argumento de que ira cercear consideravelmente o direito de defesa do indiciado, posto que o inquérito visa esclarecer o fato criminoso e os indícios de sua autoria. Neste caso, o interesse público, ocasionalmente, tem o condão de limitar as garantias do investigado.
Assim, para Paulo Rangel (2010) o sigilo no inquérito é necessário quando for para resguardar o interesse da sociedade, posto que em muitos casos, a publicidade das investigações pode frustrar a sua finalidade na busca da autoria e materialidade. Desse modo, este sigilo se estende também ao advogado, por força do disposto no art. 7º, III e XIV da Lei nº 8906/94, na medida em que a presença deste poderá prejudicar o caráter inquisitivo do inquérito.
De outro modo, em inquérito policial sem o caráter sigiloso, cabe ao advogado acompanhar e ter acesso a todo o curso da investigação, tudo isso, antes de tudo, em observância ao princípio da publicidade. Como se verifica, o sigilo constitui exceção, justificável à luz do interesse público e da discricionariedade, com o concurso natural da conveniência e da oportunidade. Portanto, o sigilo no inquérito policial não pode ser fruto da arbitrariedade da autoridade policial, situação, inclusive, que pode ser submetida ao controle do poder judiciário.
Todavia, há quem defenda a possibilidade do advogado participar das investigações mesmo que em caráter sigiloso, na medida em que a este é dado o direito de examinar qualquer ato em repartição policial. Desse modo, Nucci (2008) afirma que o sigilo não pode ir contra o direito do advogado, posto que, mesmo sendo positivado que no inquérito policial não há o exercício da ampla defesa, não significa que ela não possa estar presente no mesmo, posto que o indiciado poderá, sempre que achar necessário, ter acesso por meio de seu advogado, ao andamento das investigações realizadas contra ele.
Convém esclarecer, em relação ao sigilo no inquérito policial, que o advogado, na sua atividade profissional, pode ser atingido pelo sigilo, desde que o interesse público assim recomende. A título exemplificativo cumpre acentuar que, em interceptação de conversas telefônicas, no curso do inquérito policial impõe-se o sigilo, tanto da decisão judicial que determina a interceptação quanto de sua execução, pois do contrário a medida não surtiria efeito.
Uma das principais características do inquérito policial é que o mesmo é essencialmente inquisitivo, concentrando-se sua condução apenas no delegado de polícia, o qual é livre para determinar o modo de seu procedimento, haja vista que no Brasil, é dado a ele certa liberdade para a prática dos atos investigativos. Nesse sentido, Ismar Garcia (2009, p.9) reitera o posicionamento de que a autoridade policial “não está obrigada a obedecer a um procedimento predeterminado, podendo as investigações seguir em diferentes sentidos, visando sempre o esclarecimento da ocorrência criminosa”.
O art. 6º do CPP preceitua as providências que se reputam necessárias para apuração da infração penal, demonstrando deste modo que a autoridade policial ao dar início ao inquérito policial não se vincula a nenhuma forma de procedimento, demonstrando seu caráter discricionário.
No que tange a sua estrutura, deve seguir as regras dispostas no Código de Processo Penal que estabelecem as formalidades legais, dentre as quais a obediência à forma escrita. Desse modo, todas as provas colhidas devem ser “documentadas” e ordenadas em caderno próprio. Partindo desse pressuposto, é que se apresenta como essencial para a correta apreciação do feito que o inquérito policial se organize de forma sistemática, posto que o mesmo tem o objetivo de contar a história do crime, sendo imprescindível para correta compreensão que os fatos estejam em uma ordem cronológica correta para que se entenda como realmente se deu a infração penal (RANGEL, 2010).
2.3 Procedimento do inquérito policial e arquivamento
O inquérito policial “sob o aspecto formal, inicia-se com portaria da autoridade policial ou com auto de prisão em flagrante e termina com o relatório” (NORONHA, 2002, 26). Assim, a portaria será elaborada pelo delegado de polícia, sem nenhuma formalidade legal e o auto de prisão em flagrante deve seguir o que preceitua o artigo 301 e seguintes do CPP. Então, o início deste procedimento pré-processual dar-se-á por um ato administrativo, de natureza discricionária do delegado de polícia, que avaliará no caso concreto a conveniência e a oportunidade de formatar a portaria, visando elucidar, no âmbito administrativo, a existência e autoria do crime. Como visto, o ato administrativo motivador da formatação da portaria não pode ser arbitrário, nem subjetivo, bem como qualquer outro ato desenvolvido nesta fase de investigação, o que desnaturaria o Estado Democrático de Direito.
Nas lições de Garcia (2009), a portaria é cabível sempre que o inquérito for de oficio, quando a autoridade tomar conhecimento do fato, sem que haja postulação de qualquer pessoa; quando for o caso de representação, ou requisição a portaria deve conter esta; e por fim, quando for ação privada a portaria deve conter o requerimento escrito.
Por outro lado, como acentuado acima, o inquérito policial deve iniciar-se também pelo Auto de Prisão em Flagrante, situação que revela ato administrativo vinculado, ou seja, nos casos em que ocorre a prisão em flagrante do agente, a autoridade policial obrigatoriamente tem que instaurar o inquérito policial, porque a prisão em flagrante indica, de pronto, a existência de crime e fortíssimos indícios de sua autoria.
Em caso de prisão em flagrante, a autoridade policial poderá não instaurar o inquérito, nos casos previstos na Lei 9099/95 posto que “nos crimes de menor potencial ofensivo, não haverá inquérito policial, mas um mero termo circunstanciado” (LOPES JUNIOR, 2011, p. 271).
De conformidade com o artigo 4º do Código de Processo Penal, a autoridade policial (delegado de policia), é quem preside o inquérito policial, no âmbito de sua circunscrição, quer seja ela territorial, quer seja ela em razão da matéria, é dizer, havendo a prática de um crime dentro de uma determinada circunscrição, cabe ao delegado de polícia vinculado a ela proceder à abertura do Inquérito Policial.
De outro passo, convém notar, que nem todas as infrações penais são investigadas pela autoridade policial. Assim, se um juiz de direito cometer um crime, caberá ao Tribunal de Justiça, ao qual o agente for vinculado, o procedimento das investigações, considerando, nesse caso, o foro de prerrogativa de função, conforme indica o §1º do referente artigo, combinado com regras específicas do foro de competência por prerrogativa de função, estabelecidas na Constituição Federal, nas Constituições Estaduais e na Lei Orgânica do Distrito Federal.
O art. 5º do CPP, dispõe em seu inciso II, que nos casos de ação pública o inquérito policial será iniciado mediante “requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Publico, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo”. Assim, “recebendo a requisição, a autoridade policial deverá imediatamente instaurar o inquérito policial e praticar as diligências necessárias e as eventualmente determinadas pelo MP”.(LOPES JUNIOR, 2011, p.263).
Porém, o mesmo não ocorre quando se tratar de casos em que o procedimento seja “requerido”, posto que o requerimento pode ou não ser aceito pela autoridade judiciária. Nesse sentido, explica Nucci (2008), que o requerimento pode ser indeferido, pois não possui a mesma força que a requisição, estando presente a possibilidade de interposição de recurso, em caso de indeferimento, podendo o mesmo ser feito, a juízo discricionário, pela autoridade que indeferiu.
Logo após a instauração do inquérito deverão ser desenvolvidas as diligências que se reputem cabíveis, previstas pormenorizadamente no art. 6º do CPP, o qual dispõe que a autoridade deve se dirigir ao local para que não se altere o estado e conservação das coisas, devendo apreender os objetos necessários que tiverem ligação com o fato, ouvir o ofendido, ouvir o indiciado, bem como proceder ao reconhecimento de pessoas e coisas e acareações, determinando as diligências necessárias referentes à propositura dos exames, averiguando também a vida pregressa do indiciado.
Tais providências investigativas, entretanto, não podem causar constrangimento ilegal ao indiciado, respeitando, inclusive, e especialmente, o princípio constitucional, segundo o qual o agente não está obrigado a produzir prova contra si mesmo.
Insta esclarecer que nesta fase pré-processual o agente recebe a denominação de indiciado, já que diferente do processo, não há contraditório, não havendo consequentemente culpado ou réu. Logo, no que concerne a condição do agente, este pode ser considerado suspeito, quando ainda não se tem indícios suficientes de sua autoria, porém na medida em que o cometimento do delito passa de mera suspeita para uma probabilidade desta autoria o agente se torna indiciado. Nesse sentido, Marcellus acrescenta que “é certo que se houve prisão em flagrante ou se existiram motivos para prisão preventiva, se mostra induvidoso ser cabível o indiciamento, até porque houve flagrância ou indícios suficientes de autoria” (LIMA, 2006, p.113).
O Código de Processo Penal não estabelece qual seria o momento do indiciamento, devendo tal problema ser resolvido, como já exposto acima, quando houver a probabilidade maior de que aquele agente é o autor do crime, não devendo nunca se basear na mera possibilidade de autoria.
Na feitura do caderno pré-processual, se necessário, poderá haver, conforme o art. 7º do CPP, a reprodução simulada dos fatos, também chamada de reconstituição do crime. Nessa prova, se pretende repetir a cena criminosa, em todas as suas circunstâncias, porém o indiciado não é obrigado a participar dela, em atenção ao referenciado princípio constitucional, segundo o qual o agente não é obrigado a produzir prova contra si próprio.
Assim, a reconstituição do crime é considerada como uma das mais importantes fontes de prova, posto que demonstra para o juiz e jurados, bem como para o Ministério Publico e o defensor como realmente se deu o crime, o que facilita a formação de suas convicções (NUCCI, 2008).
No que concerne a prisão em flagrante, esta obedecerá ao procedimento estabelecido nos artigos 301 e seguintes do CPP. É o que anuncia a regra descrita no art. 8º da referida lei procedimental penal. A prisão em flagrante do agente, “(...) esta justificada em casos excepcionais, de necessidade e urgência, indicados taxativamente no art. 302 e constitui uma forma de medida pré-cautelar pessoal que se distingue pela sua absoluta precariedade” ( LOPES JUNIOR, 2011, v.II, p.71).
Assim, por comportar matéria de restrição do direito fundamental de liberdade, deve observar rigorosamente as prescrições legais, inclusive, as garantias constitucionais, a exemplo do direito de silêncio do preso, sua comunicação com o advogado ou defensor publico, respeito a sua integridade física e moral, comunicação a sua família, comunicação imediata ao juiz e ao representante do Ministério Público, entre outras garantias asseguradas na Constituição Federal e na lei processual penal.
No art. 9º da lei adjetiva penal estão expressas as características da formalidade e da sistematização, dispondo a referida norma que o inquérito deve ter forma escrita, devendo todas as páginas serem rubricadas pela autoridade competente, posto que por ser um procedimento administrativo e burocratizado, deve obedecer às exigências formais para correta legitimidade do feito. Nesta senda, Garcia (2009, p. 12) explica que “a forma, aqui, não diz respeito à maneira de se iniciar e sim à seqüência dos atos praticados. Inexiste rito ou procedimento predeterminado para o inquérito”.
Por seu turno, o artigo 10º, caput, e seus §§, do CPP indicam claramente que o inquérito policial tem, para sua conclusão, o marco da temporalidade, considerando a liberdade ou não do indiciado. Se o indiciado estiver preso, o prazo para conclusão será de 10 dias, caso o indiciado esteja solto o prazo será de 30 dias, portanto, um prazo mais alargado, ou seja, três vezes maior que o primeiro.
Pacelli (2011), em seu Manual de Processo Penal, afirma que o excesso desses prazos não ocasionará o encerramento do inquérito ou mesmo o arquivamento, como é de se concluir, na medida em que tratam-se de prazos administrativos, relacionados ao bom andamento da atividade do Poder Público. Conclui-se assim, que somente a prescrição poderá encerrar o inquérito policial, por desídia ou por insuficiência operacional da administração.
Convém ressaltar, que caso o indiciado esteja preso, o prazo de 10 dias para a conclusão do inquérito é obrigatório, portanto, o seu descumprimento gera consequências jurídicas. Esses 10 dias adicionados com outros prazos, na fase processual, em caso de prisão do agente, gera constrangimento ilegal, por excesso de prazo em caso de seu descumprimento. Assim sendo, conclui-se que embora esse prazo de 10 dias seja descumprido, por si, não gera excesso de prazo, porque tanto a jurisprudência quanto a doutrina têm entendido que para a configuração do excesso o prazo deve ser contado em sua totalidade e não fracionadamente.
A jurisprudência pátria, principalmente, tem enfocado que mesmo o excesso total do prazo, que é de 81 dias, quando o agente estiver preso, para a conclusão da formação da culpa, isto é, da instrução criminal, não configura automaticamente o constrangimento ilegal, considerando que, em cada caso deve ser observado o princípio constitucional implícito da razoabilidade.
Dependendo do caso este prazo pode ser outro, posto que as leis especiais estabelecem prazo diverso, como é o caso previsto na Lei 11343/06, que determina em seu art. 51, que os prazos serão de 30 e 90 dias, sendo o primeiro referente ao agente que está preso e o segundo ao que está em liberdade, podendo os referidos prazos sofrerem duplicação por determinação do juiz, a depender de cada caso.
Após a realização da coleta de provas, o delegado de policia fará um relatório minucioso através do qual deve expor, objetivamente e impessoalmente, como o crime foi investigado, apontando as provas obtidas, após o que enviará os autos do inquérito policial ao juiz competente. Assim, juntamente com o inquérito policial serão enviados os instrumentos apreendidos, que foram utilizados para a prática do delito, os quais servirão de base para o julgamento. Logo após o recebimento pelo juiz, o mesmo será enviado ao membro do Ministério Público, para que este dê vista, procedendo de acordo com suas atribuições, podendo oferecer denúncia, pedir novas diligências ou mesmo o arquivamento (LOPES JUNIOR, 2011, v I).
Calha citar aqui que os instrumentos do crime ou “instrumenta sceleris”, a exemplo de um revólver utilizado pelo homicida, pela leitura do art. 11 do CPP deve ser apreendido, submetido à perícia, pelo Instituto de Criminalística, e encaminhado com o inquérito policial para que o Ministério Público exerça a “opinio delicti”. O Auto de Apreensão e o Laudo Pericial devem compor sistematicamente o caderno do inquérito policial.
Dessa forma, todos os meios de prova colhidos na fase de investigação devem ser juntados para auxiliar posteriormente o julgamento, sendo relevante verificar em cada caso se as provas obtidas são renováveis ou não, posto que a depender do caso estas só terão seu preterido valor se feitas novamente em juízo.
Partindo desse pressuposto, cumpre esclarecer o que seriam as referidas provas sendo as renováveis aquelas que podem ser repetidas em juízo, na presença do membro do Ministério Público e do advogado, como a testemunhal, e as não-renováveis “são aquelas que por sua própria natureza, têm que ser realizadas no momento de seu descumprimento, sob pena de perecimento ou impossibilidade de posterior análise” (LOPES JUNIOR, 2011, p.295).
No que concerne a legitimidade dessas provas ditas não-renováveis, se faz necessário que o referido ato de colheita cumpra alguns requisitos mínimos de legitimidade, pois só poderá assim ser considerado se decorrer de uma autoridade que também seja legítima, como é o caso do exame de corpo delito elaborado pelo perito criminal (RANGEL, 2010).
Acerca da sua finalidade, o inquérito policial deve ter como principal objetivo fornecer instrução à denúncia ou a queixa. Em verdade, o fim principal do inquérito policial é subsidiar o Ministério Público ou o ofendido ou seu representante legal, de elementos informativos capazes de autorizar a propositura da ação penal, razão pela qual o inquérito deve sempre acompanhar a denúncia ou a queixa, como seja.
Assim, Pacelli (2011) ressalva em sua obra que para a propositura da ação penal não é indispensável a existência do inquérito policial, posto que a mesma pode ser pretendida apenas com elementos de informação que se reputem necessários para tanto. Desse modo, na ação penal deve estar presente a justa causa, que constitui o suporte mínimo de prova para evitar que se tenham ações arbitrárias.
A autoridade policial, no exercício de sua atividade, além de desenvolver suas atividades investigativas próprias, auxiliará o Juízo, prestando-lhe as informações que lhe forem requisitadas, a respeito de investigações realizadas ou por realizar, sobre objeto de processo em curso; proceder a diligências requisitadas pelo poder judiciário ou pelo Ministério Público, na titularidade da ação penal ou como fiscal da lei; cumprir os mandados de prisão de acusados foragidos; requerer ao juízo a decretação de prisão preventiva ou temporária, conforme o caso. É o que se pode constatar na leitura do art. 13 da lei adjetiva penal
Constata-se que o referido artigo ao dispor sobra à atividade da autoridade policial o faz de forma exemplificativa, vez que, outras atividades podem ser desenvolvidas, pela polícia, e que não estão arroladas no referido dispositivo. Desse modo, Nucci (2007, p. 101) reitera afirmando que “além das diligências expressas no artigo ora proposto, a autoridade policial possui outras funções, mas todas elas ligadas direta ou indiretamente, a instrução futura- ou presente- do processo, garantindo uma escorreita produção de provas”.
Em sede de inquérito policial, o delegado de polícia, como amplamente destacado anteriormente, é a autoridade competente para presidi-lo, e como tal, decide em seu âmbito, todos os requerimentos e incidentes nele existentes. O art. 14, do CPP, nessa esteira, acentua que os requerimentos do ofendido ou de seu representante legal serão decididos pelo delegado de polícia, podendo tal autoridade deferi-los ou indeferi-los.
Acaso o Ministério Público requerer ou requisitar qualquer diligência, em sede de inquérito policial, que seja absurda, inconveniente ou inoportuna, pode a autoridade policial indeferi-la, porque a natureza da decisão é discricionária, situação em que deve ser analisada, no caso concreto, sua conveniência e oportunidade. A autoridade policial, ao decidir acerca de requerimentos, incidentes e requisições, deve sempre observar o princípio constitucional implícito da razoabilidade.
Desse modo, o que se verifica é a discussão sobre a presença de contraditório na investigação, haja vista a “intervenção” do ofendido ou seu representante, e do indiciado no curso da investigação. Sendo assim, Pacelli (2011), em seu Comentários ao Código de Processo Penal, ressalva que apesar de ser dado o poder decisório a autoridade policial de deferir ou não a indicação de providências a serem tomadas pela defesa e pelo ofendido, as mesmas devem ser deferidas, uma vez que tal medida não violaria a Constituição Federal.
Após o recebimento do inquérito policial pelo membro do Ministério Público, os autos só poderão ser devolvidos à autoridade policial se houver necessidade da feitura de diligências imprescindíveis para a propositura da ação penal. A marca desse dispositivo revela a lógica jurídica, porque não há necessidade de devolução do inquérito policial, pelo representante do Ministério Público, para a autoridade policial, se existirem elementos suficientes para a propositura da ação penal. O princípio da obrigatoriedade impele o representante do Ministério Público a propor a ação penal pública se existirem elementos suficientes para seu exercício. Qualquer diligência outra, que seja imprescindível para o oferecimento da denúncia, pode ser requerida em Juízo, quer na fase postulatória, quer na fase instrutória, pelo representante do Ministério Público.
A autoridade policial não poderá arquivar autos de inquérito policial, diz o art. 17 do CPP, considerando que o referido procedimento administrativo tem caráter meramente informativo e destina-se a prestar informações ao Ministério Público, ao ofendido ou seu representante legal, caso se trate de ação penal pública ou privada. Entretanto, uma vez arquivado pela autoridade judiciária, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver conhecimento.
Ante o exposto conclui-se que o arquivamento do inquérito policial não possui caráter absoluto nem é marcado pela definitividade, pois se a autoridade policial, após o arquivamento, tiver novas informações sobre o crime poderá continuar as investigações, instaurando novo procedimento administrativo sobre o caso. Sendo assim, o arquivamento tem caráter relativo.
A decisão judicial que determina o arquivamento do inquérito é irrecorrível, entretanto, “(...) não gera, em regra, coisa julgada material, podendo ser revista a qualquer tempo, inclusive porque novas provas podem surgir” (NUCII, 2007, p.107). Assim, é de conhecimento que o arquivamento do inquérito policial é orientado pela cláusula romana “rebus sic stantibus”, ou seja, a cláusula que dispõe que o arquivamento poderá ser revisto, caso apareçam novos elementos esclarecedores do crime, submetido às investigações.
Todavia, podem ocorrer casos em que não será possível a autoridade desenvolver novas investigações, posto que poderá a decisão gerar coisa julgada material, como é o caso da conduta ser considerada atípica, ou em casos em que se verificar a presença de excludentes de ilicitude e culpabilidade, o qual tais decisões devem ser consideradas definitivas (NUCCI, 2007).
Logo, o mesmo poderá ocorrer em casos em que se verificar o fenômeno penal da prescrição da pretensão punitiva, no qual impede a autoridade policial de desenvolver investigação tendente a esclarecer a existência e sua autoria, sob pena de caracterizar constrangimento ilegal ao indiciado, em razão de tratar-se de hipótese de extinção de punibilidade, prevista, no inciso IV, do art. 107, do CP.
O pedido de arquivamento deverá assim ser feito pelo Ministério Público, o qual será dirigido ao juiz competente que analisará os motivos expostos, e se assim acolher será arquivado, não podendo em qualquer caso ser procedido pela autoridade policial, como visto alhures. Todavia, se o pedido de arquivamento não for acolhido o rito seguirá conforme o art. 28 do CPP, que prevê que se o juiz considerar como improcedentes as razões apresentadas para o arquivamento, este designará as remessas do inquérito ao procurador-geral, que vai decidir se oferecerá denúncia logo, ou designará a outro membro do Ministério Público, ou ira proceder mesmo com o arquivamento, ficando assim a critério deste o procedimento a ser tomado.
Dessa forma, ao juiz e ao procurador-geral é vedado arquivar o inquérito e peças de informação de oficio, sem a manifestação do Ministério Público, por ser o inquérito um ato administrativo complexo, podendo se assim o fizer subtrair a formulação de sua opinio delicti. Sendo justificável o arquivamento sem a verificação pelo Ministério Publico, somente em casos onde se verificar alguma de suas atribuições ou quando se tratar de competência originária dos tribunais (JARDIM, 2005).
O art. 20, caput, do CPP, que trata do sigilo no inquérito policial, dispõe que este deve ser mantido nos casos em que for verificada a necessidade de preservação do interesse social, como já mencionado anteriormente, sendo assim, considerado uma exceção.
O principio da verdade real, orientador do processo penal alcança o inquérito policial, e, por isso, torna inútil a disposição do parágrafo único, do art. 20, do CPP, dispõe que “nos atentados de antecedentes que lhe forem solicitados, a autoridade policial não poderá mencionar quaisquer anotações referentes à instauração do inquérito contra os requerentes, salvo no caso de existir condenação anterior”.
Para Pacceli (2011), em seus Comentários ao Código de Processo Penal, a referente regulação sobre o atestado de bons antecedentes se torna inútil, posto que mesmo que a autoridade policial esteja impedida de fornecer o referido atestado, quando ainda não transitado em julgado os inquéritos policiais e decisões, o mesmo poderá ser feito pelo poder judiciário, quando houver relevante interesse.
O indiciado, mesmo em sede de inquérito policial tem direito à ampla defesa, podendo silenciar; indicar qualquer versão acerca do fato criminoso, inclusive, mentir. Portanto, no exercício da auto defesa o indiciado tem direito de assistência de advogado ou de defensor público; de comunicar-se com a família e de produzir todos os meios de provas que possam demonstrar que ele não é o autor do crime ou de apresentar qualquer justificativa penal, como causa de excludente de criminalidade ou de culpabilidade. Desse modo, não pode o indiciado ser impedido de comunicar-se com seu advogado ou seu defensor público e com a própria família.
Nessas condições, o art. 21, do CPP, se encontra revogado pela Constituição Federal, que adotou, entre outros, o princípio da ampla defesa, como se verifica do inciso LIV do art. 5º e do inciso IV, §3º, do art. 136, da referenciada Constituição Cidadã. Antes do advento da Constituição Federal de 1988, era permitido ao juiz decretar a incomunicabilidade do indiciado, pelo prazo de 3 dias, quando indicar-se o interesse público ou a conveniência da investigação, situação absolutamente vedada atualmente, em decorrência do surgimento do Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, Garcia (2009) acrescenta que a incomunicabilidade tanto do advogado quando da família é inconstitucional, posto que antes mesmo da constituição já se verificava positivado esse proibição quanto ao defensor, porém após o advento da referida Carta Constitucional é que se verificou de forma expressa tão vedação para o caso de familiares, o qual esta expressa em seu art. 5º, LXII. Sendo assim, o referido assunto deve ser tratado de forma ampla abrangendo não só as hipóteses já mencionadas, como também deve ser observada a assistência médica, de material de higiene, de alimentação e etc., que não podem ser privados do indiciado, sob pena de confrontar a ordem constitucional vigente.
Os princípios da celeridade e da informalidade orientam autoridade policial, no exercício de suas atividades investigativas, a aturarem de forma mais livre em suas circunscrições, facilitando-lhes a colheita de provas, como se verifica na redação do art. 22 do CPP.
Como visto anteriormente, o princípio da verdade real também alcança o inquérito policial, pelo que deve a autoridade policial prestar todas as informações necessárias ao Ministério Público, para que ele forme suficientemente a opinio delicti, é nessa perspectiva que se deve proceder a interpretação da regra descrita no art. 23, do CPP.
Partindo dessa premissa, Pacelli (2011) explica que embora à autoridade policial seja vedada a prestação de atestado de antecedentes antes de condenação anterior, como previsto no art. 20, parágrafo único, do CPP, o mesmo possui a atribuição de apresentar em juízo os antecedentes criminais do indiciado, para a correta apreciação do feito, tanto pelo Ministério Público, quanto pelo Judiciário.
Neste capítulo, abordou-se o inquérito policial, em todas suas nuances, como procedimento administrativo pré-processual que o é, para só a partir daí tratar da Teoria Geral do Garantismo, produzida por Ferrajoli, para que, ao final, se possa verificar se o inquérito policial é ou não garantista. A exposição a ser formulada no próximo capítulo deverá manter-se fiel ao pensamento de seu autor, embora guarde a necessária síntese, em virtude da natureza desta monografia.
3 TEORIA DO GARANTISMO PENAL SEGUNDO LUIGI FERRAJOLI
3.1 Considerações preliminares
Na Itália, mais precisamente na década de 90, o professor de direito Luigi Ferrajoli construiu uma teoria destinada à proteção dos direitos de primeira geração, é dizer, direitos fundamentais individuais e metaindividuais, com repercussão nos campos político, social e jurídico.
Dessa forma, Norberto Bobbio ao discorrer sobre a Teoria do Garantismo Penal no prefácio da obra Direito e Razão de Ferrajoli (2010, p. 7) reitera o entendimento afirmando que “[...] um sistema geral de garantismo ou, se preferir, a construção das vigas-mestras do Estado de direito tem por fundamento e por escopo a tutela da liberdade do indivíduo contra as várias formas de exercício arbitrário do poder.”
Nesse sentido, conclui-se que “o garantismo é um modelo ideal do qual a realidade pode mais ou menos se aproximar. Como modelo representa uma meta que pertence tal mesmo quando não é alcançada, e não pode ser nunca, de todo, alcançada.” (FERRAJOLI, 2010, p. 9)
Para tanto, é necessário que se defina muito bem tal modelo para que se alcance o objetivo primordial de se estabelecer um sistema jurídico pautado por uma modelo normativo garantista, que assim se expresse tanto no conteúdo das normas jurídicas quando na sua aplicação prática, haja vista que os ordenamentos jurídicos dos Estados Democráticos expressam o garantismo apenas nas normas positivadas. Desse modo, tal alcance dependerá também da efetividade na utilização das técnicas judiciais e legislativas.
Verifica-se, com isso, que, originalmente, a teoria construída por Ferrajoli (2010) não só tem natureza penal e processual penal, as quais foram consideradas o marco dessa teoria, como também revela índole eminentemente constitucional. Desse modo, a teoria se expandiu também para outras áreas do direito, com o intuito de auxiliar o ordenamento jurídico a proporcionar uma sociedade melhor.
Ferrajoli (2010) ao construir a teoria do garantismo desejou a concepção de um Estado vocacionado a agir em conformidade com um direito, no qual se busca alcançar um Estado Constitucional de Direito, é dizer, um Estado mais avançado do que o Estado Democrático de Direito. Com essa concepção, o garantismo restringe o Estado, ao conceber bens, valores e interesses constitucionais, direitos esses inscritos no texto da Constituição Federal. Assim sendo, o Estado deve ser Constitucional de Direito, porque os direitos dos cidadãos devem ter o grau máximo de efetividade. Uma das marcas fundamentais do pensamento de Ferrajoli é a efetividade dos direitos, devendo o Estado se submeter às normas constitucionais e a princípios garantidores de direitos de primeira geração.
A concepção da Teoria Pura do Direito de índole positivista, de Hans Kelsen, e o pensamento de Norberto Bobbio condensado em a Era dos Direitos, influenciaram sobremodo a construção da teoria do garantismo concebida por Ferrajoli.
Assim, na Era dos Direitos, Norberto Bobbio (1992) começou a observar a necessidade de se proteger os direitos dos homens, afirmando que o problema grave em relação a eles, não era mais fundamentá-los, mas sim protegê-los. Assim, o referido problema iria muito além de filosófico, seria de caráter jurídico e, num sentido mais amplo de caráter político, no qual a preocupação não estava em torno de quais direitos precisavam ser garantidos, mas qual seria o modo mais seguro para garanti-los, no sentido de evitar que, apesar das declarações existentes sobre este direito, eles não fossem violados.
Desse modo, Ferrajoli (2010) ao propor sua teoria, a fez no sentido de apresentar um novo modelo de Estado, que acabasse com a crise existente nos Estados Modernos, crise esta, que se configurou pela falta de observância dos direitos fundamentais, seja no conteúdo das normas existentes, seja na aplicabilidade dessas normas.
A ordem jurídica de um Estado, para a teoria do garantismo, deve explicitamente conter todo um sistema de garantias de um direito de primeira geração. Porém, o garantismo não se satisfaz apenas com a ordem jurídica garantista, sendo necessária sua efetivação, quer pelo poder judiciário, quer pelo poder executivo, quer pelo legislativo no âmbito da atividade administrativa. Portanto, o garantismo concebe o referido Estado, como um tudo, envolvendo o poder legislativo, como construtor de uma ordem jurídica garantista, e os poderes executivo e judiciário como aplicadores, em seus respectivos campos de atuação da ordem jurídica garantista. Nesse passo, o garantismo exige que o Estado, em seus poderes, órgãos e instituições, efetive o sistema de garantias concebido pela ordem jurídica.
Nesse diapasão, o garantismo evita que o Estado, em sua relação com os cidadãos, pratique arbitrariedade, em atentado a bens, valores, e interesses individuais e metaindividuais. Logo, o garantismo limita o Poder do Príncipe. A rigor, em sua concepção original, garante a cidadania e, por consequência, restringe o poder do Estado, que deve se revelar concretamente como Estado de Direito. (FERRAJOLI, 2010)
A Teoria Geral do Garantismo, por ser uma construção doutrinária, comporta interpretações diversas, muitas delas transbordantes do pensamento original de seu autor, fenômeno esse natural na apreciação de obras humanas; é natural que haja, no estudo de uma teoria, diversas interpretações, devendo ocorrer o mesmo com a Teoria Geral do Garantismo. Apesar disso, este trabalho tentará no estudo e na interpretação da teoria garantista, ser fiel ao pensamento do professor italiano Luigi Ferrajoli, dentro do possível. Tais dificuldades da manutenção, da fidelidade ao pensamento original do autor, ocorreram, por exemplo, em relação a várias outras teorias, a saber: no positivismo de Kelsen; na Constituição Dirigente de José Joaquim Gomes Canotilho; na tipicidade conglobante de Raul Eugenio Zafaroni, entre outros.
3.2 Conceito e acepções da teoria do garantismo penal
A Teoria Geral do Garantismo, portanto, sugere como visto alhures, a proteção de direitos fundamentais, impedindo que o Estado, em suas relações dinâmicas e complexas com os cidadãos, pratique violações a tais direitos nos campos político, social e jurídico.
Como dito anteriormente, o garantismo concebe um Estado Constitucional de Direito, o qual deve expressar o sistema de garantias, concebido pela ordem jurídica, em todos seus campos de atuação, de forma efetiva. Na concepção garantista o Estado não pode se apresentar, em seus atos, de modo diferente daquele constante em seu sistema de garantias. Portanto, o garantismo concebe o Estado constituído, em sua totalidade, envolvendo todas as suas atividades e alcançando todos os seus campos de atuação (FERRAJOLI, 2010).
Partindo desse pressuposto, Cademartori (2007) acrescenta que o Estado de Direito concebido pelo garantismo, é constituído por um sistema de normas que tem presente conteúdos limitadores do poder político. Assim, apresenta um modelo ideal de Estado de Direito que deve servir de modelo para os demais estados, no qual estes devem seguir, sob pena de deslegitimação. Desse modo, os referidos estados devem postular valores que devem apresentar como finalidades, sendo estes considerados como a dignidade da pessoa humana, a paz, a liberdade plena e a igualdade substancial.
Esse Estado, no exercício da atividade garantista, no campo específico da função jurisdicional convoca, inclusive, a jurisdição ordinária para garantir os direitos inerentes aos cidadãos. A jurisdição constitucional, por seu turno, também e especialmente exercerá sua atividade para a aplicação da proteção dos direitos fundamentais individuais e metaindividuais, tanto quanto a jurisdição ordinária. Por conseguinte, o Estado Constitucional de Direito, ao exercer a jurisdição, deve aplicar as garantias dos cidadãos, tanto na jurisdição ordinária, quanto na jurisdição constitucional, respectivamente.
Não há dúvida de que o garantismo tem uma incidência relevante nos campos do direito penal e do direito processual penal, e, nesse passo, convém denominá-lo de garantismo penal. Grande parte da doutrina, brasileira e estrangeira, denomina a teoria geral do garantismo, de garantismo penal, por entender que ela se refere nomeadamente aos direitos penal e processual penal, como já disposto anteriormente.
Nesse sentido, Pacelli (2011) acrescenta que o garantismo disponibiliza sólidos elementos para a filosofia do Direito Penal e Processual penal, no qual também estabelece limites ao poder de punir, ou melhor, limites estes mais ou menos objetivos para conter a liberdade judiciária.
Então, nesse particular, o garantismo penal se compatibiliza com a teoria minimalista, segundo a qual, o direito penal só tutela bens, valores e interesses jurídicamente relevantes. Para o minimalismo, o direito penal é a “ultima ratio”, só incidindo em situações não resolvidas pelos outros ramos do direito. Nessa senda, Luiz Flávio Gomes (2007, p. 1) afirma que o minimalismo “não se confunde, de outro lado, com o garantismo, embora ambos sejam convergentes e complementares, uma vez que se baseiam nos mesmos ideais e pressupostos (e contam, ademais, com os mesmos objetivos).”
Paulo Rangel (2002) reitera o referido entendimento quando se refere ao garantismo penal, afirmando que é defensor de um Direito Penal Mínimo, que tem por objetivo conter os abusos estatais, devendo sua presença na esfera individual, ser tão-somente, subsidiária e proporcional ao referido bem jurídico. Assim, se faz necessário, a observância do princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, o qual restringe a atuação do Direito Penal a casos estritamente necessários, no que tange a manutenção da convivência em sociedade em detrimento à falência de outros meios disponíveis, bem como ao alcance do Estado para a solução de conflitos. Nesse sentido, para que a atuação do Direito Penal seja legítima, o Estado antes terá que adotar outras medida previstas em outros ramos do direito para solucionar o referido conflito, posto que a aplicação do direito penal é gradual e extrema.
À sua vez, o garantismo penal não reconhece o movimento que proclama o abolicionismo penal, porque, segundo ele o agente que praticar uma conduta, definida em lei, como criminosa, deve sofrer a interferência do Estado através da aplicação de uma sanção penal, assegurando-lhe, entretanto, todas as garantias notificadas no sistema jurídico respectivo. A concepção garantista compreende que o direito penal deve existir para tutelar determinados bens, valores e interesses da cidadania e que nenhum outro ramo do direito teria o alcance de tutelá-los; nenhum outro ramo do direito poderia substituir o direito penal. Assim, o Estado Constitucional de Direito, como proposto pela teria do garantismo, deve ter, em seu sistema normativo, a definição de crimes ou ilícitos penais e as respectivas penas a eles atribuídas.
Portanto, Ferrajoli (2010) considera o abolicionismo penal como um utopia regressiva que dispõe de pressupostos totalmente ilusórios de que uma sociedade que é considerada boa ou de um Estado Bom, considerados assim como modelos que são autorreguláveis ou desrreguláveis tanto de vigilância, quanto de punição, sendo assim considerado o sistema penal uma alternativa progressista, historicamente e axiologicamente.
A Teoria Geral Garantista, na forma adotada por Luigi Ferrajoli, se apresenta em três acepções distintas, mas que se interrelacionam, indicando que a mesma tem aplicação em toda a seara do direito, e não somente no âmbito do direito penal e processual penal. Poder-se-ia até dizer, em aprofundado olhar para as acepções do garantismo, como colocadas por Ferrajoli, que ele tem incidência além da área jurídica, com repercussão intensa nas áreas social e política.
A primeira acepção do garantismo é constituída pelo modelo normativo de direito, adotado pelo Estado, e que demanda um estudo complexo e de rica dimensão. Sobre esta acepção, buscou-se, como em todo conteúdo desta monografia, ser fiel ao pensamento revelado por Ferrajoli.
O modelo normativo de direito se expressa essencialmente nas áreas política e jurídica, concebendo o Estado constitucional de direito e suas atividades, notadamente em suas relações diretas com os cidadãos.
Dessa forma, Ferrajoli (2010) esclarece tal entendimento afirmando que o modelo normativo de direito, principalmente quando se refere ao direito penal, deve ser concebido como um modelo de “estrita legalidade”, que está inserido no Estado de Direito, no qual se caracteriza em três planos, primeiramente o epistemológico, que se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo; o plano político, que se caracteriza por uma técnica destinada a minimizar a violência e maximizar a liberdade e, por fim sob um plano jurídico, que se configura como um sistema de vínculos a função do Estado de punir em garantia dos direitos dos seus cidadãos.
Portanto, na área política, o modelo normativo de direito é entendido como aquele que sugere que o Estado, em suas políticas públicas próprias, atinja, como meta, a minimização da violência e, como consequência natural, a maximização da liberdade. Desse modo, o modelo normativo de direito requer um caráter preventivo, que diminua a incidência de crimes e com isso possam os cidadãos desfrutar o máximo possível do bem jurídico liberdade. Como se pode observar, tal expressão do modelo normativo de direito, em que pese ter uma índole política, expressa-se com forte conteúdo na área social. Do ponto de vista sociológico o modelo normativo de direito, tem também conotação social, com razoável expressão (FERRAJOLI, 2010).
No plano jurídico, o modelo normativo de direito, se apresenta como um sistema de vínculos estabelecidos com conteúdo punitivo pelo Estado, porém garantidor dos direitos dos cidadãos.
Convém, ainda, gizar que o modelo normativo de direito formata o Estado de Direito, que comporta o Governo “sub leges”, que é submetido ao sistema de leis; e o governo “per leges”, que edita leis gerais e abstratas, e que se organiza por constituição rígida e de conteúdo substancial garantista. Tal modelo normativo sugere a questão referente à legalidade, que pode ser considerada em seu aspecto lato, e ai se situa no campo da validade em sentido formal; e legalidade estrita que se comporta no campo substancial e se manifesta como validade substancial (FERRAJOLI, 2010).
O garantismo, em verdade, sugere um Estado de Direito que se submeta à legalidade em sentido estrito ou validade substancial, ou como Ferrajoli denomina de estrita legalidade, como já abordado anteriormente. Nessa perspectiva, o Estado de direito deve se submeter a um modelo normativo de validade substancial e possa condicionar legitimamente de seu exercício, porque tais conteúdos determinados são essencialmente substanciais. Para o garantismo, então, considerado o modelo normativo de direito, o Estado deve nascer e se reger no modelo das modernas constituições (FERRAJOLI, 2010).
Tais estados de direito, se vinculam a modernas constituições e se caracterizam em dois planos, a saber: um plano formal, baseado no princípio da legalidade, pelo qual o poder público, compreendido esse, nos aspectos legislativo, judiciário e administrativo, que se submete a leis gerais e abstratas, de conteúdo legítimo, que determinam as formas de exercício dos poderes e que devem ser submetidas a controle de legitimidade por partes de juízes independentes e imparciais; no plano substancial, os poderes do Estado devem funcionar para garantir a efetividade dos direitos fundamentais dos cidadãos, em virtude da imposição, pela Constituição, de deveres públicos e limitações, que impeçam a lesão aos direitos a liberdade e obriguem a satisfação de direitos sociais (FERRAJOLI, 2010).
Assim, entende-se que o Estado Absoluto, seja ele democrático ou não, não está limitado para o exercício dos poderes públicos, por Constituição Moderna, nem tem obrigação de efetivar direitos fundamentais do cidadão.
Portanto, o garantismo, na acepção do modelo normativo de direito admite que se verifique em um determinado sistema constitucional se há descompasso entre normas ordinárias e princípios constitucionais. A avaliação possível de eventuais antinomias entre normas inferiores e normas constitucionais, determinarão o grau de garantismo do sistema legal, submetido à avaliação, ou melhor, o grau de efetividade constitucional (CADEMARTORI, 2007).
Deve, por isso, a autoridade policial, como intérprete e aplicadora do direito, em sede de inquérito policial, na seara administrativa, realizar o devido cotejo das normas processuais aplicáveis com as normas constitucionais fundamentais, no sentido de evitar que bens, valores ou interesses, do investigado, considerados relevantes, venham a sofrer constrições que possam restringi-los. Exemplo disso o art. 21 e seu parágrafo único, do CPP, perderam eficácia, não se admitindo mais sua aplicação, porque a incomunicabilidade do indiciado é absolutamente incompatível com a garantia da autodefesa; a autodefesa, garantida ao indiciado e aos acusados em geral, assegura o direito de defesa, em sua amplitude, inclusive, o direito de mentir e de silenciar, resguardado na constituição.
Nesse passo, o garantismo se vale da pirâmide de Hans Kelsen, segundo a qual as normas constitucionais têm mais valia do que as normas inferiores.
A segunda acepção do garantismo, denominada teoria jurídica de validade e efetividade, indica, em categorias distintas, não somente entre si, mas também acerca da existência e vigência de normas jurídicas do sistema, notadamente quando forem aplicadas e interpretadas, a fim de averiguar-se se elas estão ou não congruentes com as normas constitucionais de proteção dos direitos fundamentais. Nessa análise da tensão entre as normas, o garantismo delineia uma aproximação teórica que mantém em vertentes diversas o “ser” e o “dever ser” na seara do direito (FERRAJOLI, 2010).
Assim, em breve conclusão, pode-se dizer que o juiz não tem obrigação jurídica de interpretar e aplicar normas inválidas, conflitantes com o ordenamento constitucional garantidor, ainda que tais normas sejam vigentes.
No dizer de Luigi Ferrajoli (2010,), a teoria jurídica de validade e efetividade, corresponde à realidade jurídica da validade, da efetividade e da vigência das normas, quando se defronta com a realidade estabelecida no sistema entre o “ser” e o “dever ser” em direito, isto é, entre o que existe e o que deveria existir, no campo da validade e da efetividade das normas jurídicas. Portanto, essa diferença é estabelecida no descompasso entre os modelos normativos: o tendentemente garantista, que notifica normas válidas, mas ineficazes; e tendentemente antigarantista, de práticas reiteradas, que identifica normas inválidas mas eficazes.
Nessa tensão normativa, identificada por Ferrajoli, que, estabelece as diferenças no plano concreto, busca conciliar os elementos identificados, ao entender que, no sistema, é possível existir normas válidas sem efetividade e, por outro lado, numa vertente propriamente antigarantista, normas efetivas, mas sem a devida validade.
É de todo imperativo, num Estado de Direito, que mesmo em se tratando de procedimento pré-processual, deva prevalecer princípios e normas constitucionais em detrimento de normas hierarquicamente inferiores, quando entre eles houver confronto ou incompatibilidade. Para o garantismo, essa equação hermenêutica é necessária para o fim de garantir a tutela de direitos fundamentais do indiciado, tais como a liberdade, o patrimônio, dentre outros.
Diante disso, Ferrajoli propõe uma reformulação do enfoque tradicional de validade e vigência das normas jurídicas, ao perceber que Hans Kelsen (1998), considera válida uma norma, se essa norma está numa outra, que lhe é anterior no tempo e lhe é superior, na pirâmide que estabelece a hierarquia das leis. Nesse sentido, para Kelsen (1998), no plano eminentemente formal, as normas são válidas e se submetem a um mecanismo de derivação, que identifica uma ordenação superior e uma ordenação inferior, na realidade piramidal, próprias das espécies normativas. Assim, para Kelsen, para que as normas sejam válidas, basta que elas se submetam a este processo de derivação de normas jurídicas num plano temporal e vertical, ou seja, num plano exclusivamente formal.
Ferrajoli (2010), por seu turno, na perspectiva do garantismo, não se conforma, com o método formal estabelecido por Kelsen e adiciona à equação Kelsiniana um novo elemento verificado no conceito de validade da norma, proclamando que esta não se satisfaz somente pela sua adequação formal às normas estabelecidas pelo ordenamento jurídico primitivo. Nesse caminho, Ferrajoli, adiciona para verificação de normas jurídicas válidas, elementos de conteúdos materiais, que constituem fundamentos normativos pautados nos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição.
Nessa esteira, o garantismo pretende redefinir as categorias tradicionais estabelecidas por Kelsen, que reconhece como vigentes, num plano estritamente formal, as normas estabelecidas pelo legislador ordinário conforme os procedimentos previstos em normas hierarquicamente superiores, em vertente identificada num plano de verticalização. Este esquema é de ordem formal, proposto por Kelsen, revelando o juspositivismo dogmático.
Entretanto, enriquecendo este postulado tradicional Ferrajoli (2010) agrega, no plano da validade das normas, a validade substancial dos atos normativo inferiores, exigindo que eles estejam de conformidade com a racionalidade material estabelecida em normas constitucionais, que protegem os direitos fundamentais individuais e metaindividuais. Vê-se, pois, que Ferrajoli não aceita, considerada a teoria do garantismo, a validade das normas, apenas no plano formal, conforme a concepção de Hans Kelsen, mas, agora, exigindo também a validade normativa quando verificada sua conformidade com a racionalidade material das normas constitucionais protetoras de direitos fundamentais.
O garantismo, ao apresentar, a teoria jurídica de validade e efetividade das normas, estabelece uma nova doutrina jurídica de legitimação, notadamente de perda de legitimação interna do direito, no âmbito do ordenamento jurídico, ao propor aos aplicadores e intérpretes ou explicadores das normas, o estabelecimento de uma tensão crítica, para que eles incluam, na verificação da validade das leis, a aproximação metodológica delineada aqui, no plano substancial, buscando sempre, nessa equação, a conformidade com a racionalidade material com as normas constitucionais (FERRAJOLI, 2010).
Nesse novo plano de redefinições proposto pelo garantismo, entende Cademartori (2007) que, no processo de verificação das normas, elas revelam quatro predicados distintos, quais sejam: os predicados de justiça, de vigência, de validade e de eficácia.
Nessa perspectiva inovadora o garantismo revela um novo modelo positivista adequado às exigências do Estado Moderno, que sugere uma releitura do princípio da legalidade, que deve se conformar com o conceito de um jus positivismo crítico e não como antes, orientado por um juspositivismo dogmático concebido por Hans Kelsen. Após essa proposição inovadora do garantismo pode-se perfeitamente estabelecer a diferença substancial, na perspectiva material, entre normas vigentes, válidas e eficazes (CADEMARTORI, 2007).
Essa segunda acepção do garantismo revela nitidamente o objeto para construção de uma teoria positivista crítica, em contraposição ao postulado dogmático, revelando uma natureza interna, que quer dizer integrante do processo científico e indagador, que se observa da atividade jurisdicional, na qual o juiz desenvolverá a equação destinada a identificar, no processo de interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, as normas vigentes, válidas e eficazes, a fim de que esta atividade jurisdicional possa adequar-se ao Estado de Direito proposto pela Teoria Geral do Garantismo.
Fundamentado, em toda essa doutrina exposta, Ferrajoli (2010) entende que as imagens exteriores dos sistemas jurídicos apresentados, a partir de suas representações normativas e com a confiança difusa da ciência jurídica, que revela, na aparência exterior, a adequação natural entre normatividade e efetividade, a perspectiva garantista sugere, de modo contrário, a dúvida, o espírito crítico e a incerteza permanente sobre a validade das leis e de suas incidências em casos concretos. Além disso, o garantismo se dispõe a identificar as fontes de legitimação jurídica, num processo de intensa investigação científica.
Nestas condições, o garantismo, ao dispor fórmulas para verificar distinção entre normatividade e efetividade das leis, não tem a intenção de estabelecer certezas que se consideram como absolutas, destinadas a verificação da unidade e coerência inerente ao ordenamento jurídico, mas deseja fazer indagações, desenvolver o espírito crítico dos interpretes e aplicadores do direito, deixando-os sempre em estado de alerta, na percepção dos conteúdos das normas, na perspectiva de sua validade e de sua aplicabilidade eficaz.
A terceira acepção do garantismo designa uma filosofia política, que ao abordar o direito e o Estado se justifica pelo aspecto externo, isto é, impõe ao direito e ao Estado uma justificação externa, considerando os bens jurídicos e os interesses, tutelados e garantidos para suas próprias finalidades.
Essa terceira, e última acepção do garantismo é exposta por Ferrajoli, sob a denominação de ponto de vista externo, segundo a qual advoga que a Teoria Geral do Garantismo também é composta por uma filosofia do direito e uma crítica política. Nessas condições, o garantismo notifica o fenômeno de uma filosofia política, que impõe ao direito e ao Estado a carga de sua justificação externa, panorama fático esse que admite a valoração do ordenamento jurídico, como dito, do ponto de vista externo. Considerando a valoração do ordenamento jurídico, o referido autor, a concebe a partir da dualidade fenomênica do ser e do dever ser do direito, do ponto de vista externo. O ponto de vista externo, na concepção de Ferrajoli, corresponde à assunção, com a finalidade de legitimação e da perda de legitimação ético-política do Direito e do Estado, externamente considerada (FERRAJOLI, 2010).
Nessa perspectiva garantista, Ferrajoli acentua que uma doutrina filosófica-política, permite não apenas a crítica, mas revela-se responsável pela perda da legitimação, acentuando o ponto de vista exterior, das instituições jurídicas positivistas, com fulcro na rígida separação entre direito e moral, ou entre validade e justiça, ou entre o ponto de vista jurídico ou interno e o ponto de vista político externo do ordenamento.
O autor em voga ao continuar a apresentação da terceira acepção do garantismo, afirma que a confusão e separação entre legitimação interna ou jurídica e legitimação externa ou moral, equivale a duas vertentes próprias das doutrinas políticas, que, a rigor, baseiam os sistemas políticos existentes em todo o decorrer da humanidade, quais sejam: o do primeiro tipo é chamadas de autopoiéticas, e as doutrinas do segundo heteropoiéticas. Assim entendidas as primeiras, sendo o Estado considerado um fim, no qual possui valores ético-politicos que se constituem por apresentarem característica supra social e supra individual, no qual a conservação e reforno, no que tange o direto deverão de ser funcionalizados. Já para as doutrinas heteropoiéticas, o Estado é considerado um meio, no qual tem legitimidade na medida em que garante os direitos fundamentais dos cidadãos, podendo ser considerado ilegítimo se não observar ou violar tais direitos. Logo, conclui-se que as doutrinas do primeiro tipo é aquele interno do Estado, sendo o segundo externo, no qual considera o Estado um meio para tutelar dos valores desta sociedade e das pessoas que a compõe (FERRAJOLI, 2010).
Convém ressaltar que as doutrinas autopoiéticas de legitimação correspondem ou mesmo fundamentam a razão de ser do Estado em seus aspectos metafísicos, como religião, natureza e outros de categoria similar. As doutrinas autopoiéticas de legitimação, correspondem também às doutrinas idealistas, representadas por expressões políticas do juspositivismo ético-liberal-nacionalista, como, por exemplo, as doutrinas idealistas do facismo e do stalinismo.
Tais doutrinas idealistas, por seu turno, adotaram o princípio da legalidade, como princípio jurídico interno e como princípio axiológico externo acentuando a sobreposição da legitimidade jurídica em relação à legitimidade política. Nesse contexto, se expressa à atribuição de valor às leis, que não se conformam apenas com a validade e vigência, unicamente com base no valor associado a sua forma, ou pior, à sua fonte, no qual se constituem o soberano, ou o ditador, ou a assembléia, ou o partido, ou o povo, ou similares (FERRAJOLI, 2010).
Nesse diapasão, Ferrajoli (2010) é enfático a assegurar que a perda de um ponto de vista ético-político externo, tem, como consectário, a negação da legitimidade, oportunizando a existência de uma doutrina de ausência de limites aos poderes do Estado (autopoiética). Nesse particular, o garantismo, na acepção filosófica-política, se conforma com a doutrina heteropoiética do direito, essencialmente, separado da moral.
O garantismo, pela sua abrangência, alcança até, em sua terceira acepção, uma filosofia política, que, a rigor, exige uma atuação legítima do Estado, em suas relações com os cidadãos, limitando aquele de agir, arbitrária ou abusivamente contra esses, de acordo com um ordenamento jurídico, ao mesmo tempo limitador e garantidor. Nessa acepção, focada na seara política e doutrinária, com base no direito, exige que, no inquérito policial, o investigado seja respeitado em sua integridade física e moral, como expressão da doutrina dos direitos humanos e do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, conforme informam os postulados constitucionais dispostos nos artigos art. 1º, inciso III, e art. 5º, inciso XLIX, da CF.
Após a abordagem resumida das acepções do garantismo, pela qual se pôde mensurar a extensão da teoria geral garantista, importa adiante, especificar os princípios ou axiomas que orientam a referenciada teoria, a fim de que se possa compreendê-la razoavelmente, procurando sempre ser fiel à construção de seu pensamento original.
3.3 Princípios da Teoria Garantista
Ferrajoli (2010), ao articular o garantismo ou sistema garantista (SG, como ele mesmo denomina), estabelece seus pilares sedimentados em dez axiomas ou princípios axiológicos, que ordenados, conectados ou harmonizados sistematicamente, instituem a realidade procedimental fundamental da atividade concreta do direito penal e do direito processual penal. Em verdade, esses princípios ou axiomas são proposições, assertivas e não prescrições, porque eles rigorosamente observados, identificam o sistema garantista. A seguir, tratarei de cada, particularmente, com o objetivo de demonstrar a verdadeira feição do sistema garantista, em reprodução do pensamento de Ferrajoli.
Assim, o autor ao apresentar os princípios, refere-se a estes não como um ser em direito, mas como um dever-ser, ou seja, são desse modo, consideradas implicações normativas. Nesse sentido, entende ele como um sistema penal a junção desses princípios ou axiomas, que se expressam como uma garantia jurídica para que se aplique a pena de forma correta.
Nesse passo, Ferrajoli (2010, p.91) dispõe os referidos princípios na seguinte ordem:
1) Princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; 2) princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; 3) princípio da necessidade ou da economia no direito penal; 4) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; 5) princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; 6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; 7) princípio da jurisdicionariedade, também no sentido lato e no sentido estrito; 8) princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9) princípio do ônus da prova ou da verificação; 10) princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade.
Segundo o principio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito, verifica-se que ele em primeiro lugar se apresenta como legitimação do direito penal, ao estabelecer que a pena é uma sanção cominada sempre que haja o cometimento de um delito; portanto, o delito é causa ou condição necessária para aplicação da pena; e a pena é efeito ou consequência jurídica do cometimento do delito. Compreende-se, por esse princípio retributivo da pena, que a sanção penal tem o nítido caráter de resposta ou de consequência do delito cometido (FERRAJOLI, 2010).
O referenciado princípio é considerado, em sede doutrinária, como a primeira garantia do direito penal, significando que ele não tem o caráter finalista, limitando-se, porém, a expor critério para se distribuir e aplicar as penas.
Para o sistema garantista considerado este princípio, o ilícito será uma condição necessária para a existência da sanção penal, entretanto, não terá força suficiente para aplicá-la ou implementá-la, pois, para isso, há necessidade de condição posterior de punibilidade e de procedibilidade, em concurso com outras garantias penais e processuais penais, que possam verificar sua validade.
O princípio da legalidade, a rigor, se expressa de uma forma lata e de uma forma estrita, tendo para garantismo ambas expressões, grande e profunda significação.
Na forma lata, o princípio da legalidade exige a lei como condição indispensável para existência da pena e para existência do delito, no campo fenomênico do direito (Nullum crimen sine lege). É a norma de legitimação de todos os preceitos penais, do ponto de vista de sua existência e de sua vigência; estabelecendo de modo imperativo que somente as leis positivas, ou legitimamente positivadas, podem definir delitos e cominar penas respectivas a eles, desconsiderando, de forma absoluta, a moral ou qualquer outra fonte valorativa externa. Desse modo, o princípio da legalidade é condicionante, porque impõe aos juízes a sua obediência e observação, pois eles só poderão, no exercício da atividade jurisdicional, interpretar e aplicar leis vigentes, isto é, positivadas (FERRAJOLI, 2010).
O referido princípio da legalidade, considerado em sentido estrito, ocupa uma posição central e eminente no sistema de garantias, situação essa que o caracteriza sobremodo; exigindo, por conseguinte, todas as outras garantias como condição essencial à legalidade penal. De outro ponto, expressa-se como norma condicionada, porque dirige-se ao legislador como formação válida de leis penais.
Em continuação, o princípio da necessidade ou da economia do direito penal, constitui o resultado do pensamento iluminista, no âmbito do direito penal, segundo o qual a finalidade da pena não deve ser castigo, vingança ou retribuição, e sim necessária e mínima dentre as alternativas possíveis de resposta penal, considerando o objetivo da prevenção de novos delitos.
O referido princípio destina-se, sobretudo, para impedir a aplicação de penas desumanas e excessivas, contrárias ao pensamento iluminista.
Convém, ainda, adicionar ao o que foi dito, que o referenciado princípio da necessidade prestigia o respeito à pessoa humana, ao recomendar penas brandas e mínimas, compatível com o discurso e a doutrina desenvolvida pelo movimento penal reformador, que inspirado pelo iluminismo, baseou-se num postulado ético racional utilitarista. Assim, “jamais pode o direito penal ter incidência senão quando absolutamente necessário (princípio da intervenção mínima)” (GOMES, 2007, p. 1).
O princípio da lesividade ou da ofensividade do evento indica a necessidade das leis penais e que a existência dessas leis penais se condicionem ao grau da lesividade causada a terceiros; o dano causado a terceiros, portanto, definirão os critérios e a medida proporcional das proibições e das penas. A adoção desses critérios baseados no dano causado, implica a minimização da violência e proporcionará a tutela dos mais fracos contra o arbítrio dos mais fortes, situação necessária à proteção dos direitos fundamentais do cidadão. A prática jurídica, segundo o princípio da lesividade, demonstrará o dano causado a terceiros; pois o bem jurídico significa o interesse ou objeto que, lesionado, reflete um dano, esse dano decorre de um juízo de valor sobre o bem jurídico, de natureza relevante, a justificar sua tutela e aplicação da pena.
Assim, o bem jurídico deve consistir em interesse ou objeto julgado e considerado para que se justifique sua tutela penal. Nestas condições, o bem jurídico deve revelar valor superior ao valor atribuído a outros bens, cuja ofensa não justifique aplicação de pena.
O princípio da lesividade é considerado fundamental na configuração do Estado de Direito e na estruturação de um direito penal mínimo. Em decorrência disso, o Estado é orientando em sua atuação, na defesa dos direitos dos mais fracos, ao tutelar os direitos e interesses fundamentais, com base numa fundamentação laica jurídica estruturante do direito penal mínimo.
Segundo o princípio da materialidade e da exterioridade, nenhum dano, inclusive, grave, pode ser considerado crime apenas como efeito de uma ação humana; a ação humana, para ser penalmente relevante, deve ser física, material ou exterior, de observação indiscutível, bem como descrita pela lei penal. Com isso, constata-se que os delitos, como pressupostos da pena, não se configuram em atitude ou estado de ânimo interiores, nem por fatos alheios à ação humana; tem, necessariamente, de existir a ação humana.
Assim, Ferrajoli (2010) acrescenta ainda que o princípio da materialidade a rigor, se fundamenta em dois critérios, quais sejam: o critério da utilidade ou o critério do utilitarismo jurídico e o critério da separação entre direito e moral.
O critério da utilidade assegura que somente as ações exteriores podem causar danos a terceiros e configurar a relação de causalidade entre a ação e o resultado danoso como elemento objetivo do delito; desse modo, a materialidade e exterioridade da ação humana na esfera penal, constituem pressuposto da lesividade do resultado. Por outro lado, os pensamentos e intenções humanas não são capazes de prejudicar ou causar danos a terceiros.
O critério da separação entre o direito e a moral, em resumo, demonstra que o papel do direito não é impor a moral. Por este critério, o princípio da materialidade construiu a figura moderna do cidadão, como sujeito suscetível de vínculos e cuja atuação exterior apresenta-se visível, mas podendo usufruir normalmente sua liberdade exterior, imune de limites e controles. Aqui, o princípio proclama o respeito à pessoa humana e sua dignidade pessoal.
O princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal, ao contrário do princípio da materialidade, exige o elemento subjetivo ou psicológico do delito para fundamentar a punição. Por ele, nenhum fato ou comportamento humano terá relevância penal, se não foi realizado, com consciência e vontade, por uma pessoa que possua capacidade, no sentido de saber discernir a conduta praticada.
Assim, Ferrajoli (2010) acrescenta que o referido princípio remete a presença do elemento subjetivo ou psicológico no cometimento do delito, no qual se considera que nenhum fato pode ser imputado a alguém, se este não for decorrência de uma decisão do agente consciente; consequentemente, não poderá o agente ser considerado criminoso, se o mesmo não teve a intenção de praticar o delito.
O princípio da jurisdicionariedade expressa no sentido lato, que não haja culpa sem juízo (axioma A7), e, em sentido estrito, que não haja juízo sem que a acusação se sujeite a refutação (FERRAJOLI, 2010).
Assim, o referido princípio dá o direito ao imputado de contraditar a acusação contra ele dirigida como ato prejudicial e delimitador do juízo. A acusação contraditada deve ser deduzida de forma precisa, idônea e clara para expressar circunstanciadamente o fato atribuído ao imputado, vinculando a ele o objeto do juízo e da sentença, em verdadeira congruência entre a acusação precisa e a prestação jurisdicional correspondente.
A acusação contraditada deverá basear-se em indícios idôneos de culpabilidade e integrada pela contradita de todos os indícios que a sustentam, possibilitando ao imputado as condições de conhecê-los e refutá-los devidamente. A acusação, por tanto, deve ser precisa, a fim de que o imputado possa defender-se dela, conhecendo toda a sua extensão. O imputado, ao defender-se deverá dispor do tempo necessário para tal fim e para produzir a devida contraprova.
Dessa forma, este princípio tem estreita ligação com o princípio da presunção de inocência, no qual deve sempre se considerar que o agente que cometeu um referido delito só poderá ser considerado culpado depois de submetido a um juízo. Nesse sentido, Nucci (2008, p. 81) acrescenta que o princípio da presunção de inocência “significa que todo acusado é presumido inocente, até que seja declarado por sentença condenatória, transitada em julgado”.
O princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação se conforma como garantia processual expressa a presunção de inocência do imputado, além de proclamar a não derrogação do juízo, quando este é provocado por uma ação penal, que pretende demonstrar a existência de um crime e, por isso, requerer a imposição de uma pena ao seu autor.
Assim, Ferrajoli (2010) delineia esse principio que ele não exprime somente a presunção de inocência do imputado, mas também o valor que uma norma traz de organização da não derrogação do juízo no momento em que a este se apresenta uma ação que apresenta a prática de um crime e que é necessário que se estabeleça uma pena devida. Nesse sentido, conclui-se que o juiz não pode em nenhuma hipótese se abster de julgar, sendo considerado o julgamento indeclinável; bem como infungível, na medida em que não pode ser substituídos por outras formas de atividade cognitiva ou potestativa.
Dessa forma, não derrogação do juízo penal significa que o juiz não pode eximir-se de julgar a ação penal e nem ser substituído por outras formas de atividade cognitiva ou potestativa de outros sujeitos públicos ou privados. Por isso, que se diz que o juízo é indeclinável e infungível.
O princípio do ônus da prova ou da verificação, por seu turno, entende que a verdade real buscada, no processo penal, em sistema acusatório, deve ser colhida mediante procedimento de prova e erro, com a verificação da idoneidade das provas produzidas pela acusação. Esse procedimento é garantista, porque exige a verificação da prova apresentada pela acusação, com sua avaliação, em busca da verdade real, em garantia do imputado.
O processo penal, nesse diapasão, expõe o conflito de interesses entre as partes, refletindo pontos de vistas e interesses opostos. No panorama do conflito entre a acusação e o imputado, cabe a primeira movimentação a o acusador, assegurando-se ao imputado a inocência presumida até que a verdade real se apresente em contrário. Aqui, a prova deverá ser apresentada pela acusação, de forma necessária.
Na consideração da prova, no sistema garantista, despreza-se a segurança do direito penal máximo, pelo qual nenhum culpado ficará impune, mas se adota o direito penal mínimo, que não permite a punição do inocente. Assim, “não há acusação sem provas, ou seja, não se derruba a presunção de inocência sem provas válidas e indiscriminadas” (GOMES, 2007, p.1).
Por derradeiro, o princípio do contraditório, da defesa ou da falseabilidade assegura ao imputado o direito de manifestar-se no sentido de solicitar e controlar o procedimento de produção de provas e contraprovas, enfim, de defender-se da acusação contra si dirigida.
Desse modo, Pacelli (2011) acrescenta que o referido princípio é considerado como uma garantia das partes de participar do processo, apresentando-se como uma contribuição para a formação do convencimento do juiz, para que se alcance a efetiva igualdade processual, sendo considerado assim como um verdadeiro requisito de validade do processo.
Portanto, o processo acusatório, que exprime uma controvérsia, adota valores nitidamente democráticos, como o respeito ao imputado, o equilíbrio entre as partes, a presunção de inocência e a necessidade de refutação da pretensão deduzida na acusação.
Após a sumária exposição da Teoria Geral do Garantismo, em todas suas vertentes, conforme a concepção de Ferrajoli, cumpre no capítulo a seguir, estabelecer-se uma confrontação entre a teoria exposta e o inquérito policial, considerando esse sempre como procedimento administrativo pré-processual. Far-se-á então a confrontação proposta, entre a teoria e o procedimento, para que se constate se entre ambos há relação, compatibilidade e necessidade.
4 O INQUÉRITO POLICIAL E O GARANTISMO PENAL
4.1 Princípios aplicáveis ao inquérito policial
Ao tratar do inquérito policial, numa abordagem doutrinária e sua relação com o garantismo penal, convém verificá-lo à luz de princípios que lhes são aplicáveis, a fim de que se tenha a sua real feição, como atividade administrativa pré-processual, e que tem repercussão extraordinária em toda a processualística penal, por envolver, inclusive, o direito de liberdade, considerado, pelo ordenamento jurídico, como direito fundamental.
Desse modo, o princípio da legalidade, de ordem constitucional, ínsito nos artigos 5º, II e 37 caput da Constituição Federal, merece destaque, indicando, a rigor, que o agente público no exercício da atividade administrativa, só pode agir dentro dos limites estabelecidos em lei. Ao limitar a atividade pública, o princípio da legalidade constitui uma das principais garantias de respeito aos direitos individuais fundamentais.
Assim, o princípio em análise tem o condão de limitar o poder arbitrário do Estado, o qual é composto por espécies normativas que são criadas através de processo legislativo próprio, estabelecido constitucionalmente, e que expressa a vontade geral dos cidadãos. Desse modo, através da predominância da lei, o soberano não terá mais o privilégio da imposição de sua vontade sobrepondo a importância da lei (MORAES, 2007).
No âmbito do inquérito policial, o princípio da legalidade impõe a autoridade policial a prática de atos administrativos quer vinculados quer discricionários. Os atos vinculados são decorrentes da imperatividade da lei, não permitindo ao delegado de polícia praticá-lo senão nos limites estritos estabelecidos pela lei; os atos discricionários, por seu turno, embora circunscritos ao mandamento da lei, permitem ao delegado de polícia certa liberdade, atendendo aos requisitos da conveniência e da oportunidade, mas visando sempre atender ao interesse público. Portanto, o princípio da legalidade também existente na fase pré-processual veda, absolutamente, a prática de atos arbitrários, ilegais e abusivos, evidenciando, dessa forma a sua estreita relação e vinculação com a Teoria do Garantismo, mormente o Garantismo Penal.
Exemplificativamente, o delegado de polícia pratica atos vinculados, quando, requer ao juiz medida de busca e apreensão, quando requer a quebra de sigilo telefônico, quebra do sigilo bancário, decretação de prisão preventiva, decretação de prisão temporária, quando prende alguém em flagrante delito, assim como em outros atos que afetem direitos de liberdades individuais do investigado. Os atos discricionários podem ser considerados, quando o delegado de polícia inquire testemunhas, determina acareação, requisita documentos, e etc.
O princípio da impessoalidade, previsto no art. 37 caput da CF e no art. 2º, parágrafo único, III da Lei 9784, de 1999, estabelece que o responsável pela administração, é apenas um agente que executa um ato, sendo considerado apenas como veiculo de manifestação da vontade Estatal, no qual todas as realizações administrativo-governamentais são, na verdade, da entidade pública, e não do agente público (MORAIS, 2007).
Assim, no que concerne ao inquérito policial, o referido princípio, impede, neste particular, que o delegado de polícia e os demais agentes públicos envolvidos na apuração dos fatos, adotem critérios pessoais, particulares, destinados a beneficiar ou prejudicar o investigado, ou, ainda, que adotem qualquer outro critério que não o interesse público de buscar a verdade real referente a existência do crime e sua autoria. O interesse eventual da vítima ou de seus familiares, ou de quaisquer outras pessoas, ou de quaisquer grupamentos sociais, por mais justo que seja, pelo princípio da impessoalidade, não pode suplantar o interesse público da busca da verdade real.
O princípio da moralidade, por sua vez, de raiz constitucional, tem previsão no art. 37 caput da CF e no art. 2º, parágrafo único, inciso IV da lei 9784/99, estabelece que deve o agente público manter um comportamento lícito, em conformidade com a moral, os bons costumes, os princípios da justiça, equidade e a honestidade. O decreto lei nº 2.300/86 previa no seu art. 3º o presente princípio com o nome de princípio da probidade, correspondente à honestidade no modo de proceder do agente público (DI PIETRO, 2010).
Portanto, tal princípio impõe ao delegado de polícia e aos demais agentes públicos envolvidos no inquérito, em sede de investigação, um padrão de conduta moral, baseado em postulados éticos de probidade, decoro e boa-fé objetiva, no sentido de impedi-los de agir com abusos, arbitrariedades ou de quaisquer formas que possam atingir a dignidade pessoal do investigado, quer moral quer física, atingindo seus direitos e garantias individuais fundamentais. Além disso, o princípio da moralidade impede que os referidos agentes públicos envolvidos na investigação policial desenvolvam condutas destinadas a benefício próprio, benefícios de terceiros, enriquecimento ilícito, com violação de qualquer dever funcional, ou quaisquer das prescrições estabelecidas nos artigos 9º, 10º e 11º da Lei 8429/92, que estabelece os atos de improbidade administrativa.
A violação do princípio da moralidade, por exemplo, ocorre quando o delegado de polícia colhe provas ilícitas, desvia o rumo correto das investigações ou busca resultado diverso da verdade real a ser perseguida, em relação à existência do crime e de sua autoria.
O princípio da publicidade, de ordem constitucional, inserto no art. 37 caput da CF, determina que todos as atos do inquérito policial sejam de conhecimento do investigado, de seu advogado, de seus familiares e de demais pessoas que tiverem interesse de conhecê-los. Todavia, por tratar-se o inquérito policial de procedimento administrativo inquisitorial, o princípio em comento sofre marcada relativização, pois, o art. 20 do CPP, admite a decretação de sigilo de determinados atos, quando indispensáveis a investigação e o interesse público o recomendar, conforme visto no primeiro capítulo deste trabalho monográfico.
Nesse diapasão Moraes (2007, p. 314) acrescenta que “a regra, pois, é que a publicidade somente poderá ser excepcionada quando o interesse público assim determinar, prevalecendo esse em detrimento do princípio da publicidade.
Porém, observada a necessidade da decretação do sigilo e realizado a contento o ato, ser-lhe-á dado a devida publicidade, após a juntada da prova no caderno do inquérito policial. Assim, no caso de interceptações telefônicas, após sua juntada ao caderno do inquérito policial, os interessados delas tomarão conhecimento.
O princípio da eficiência, também de natureza constitucional, previsto no art. 37 caput. da CF e no art. 2º caput da Lei 9784/99, determina a autoridade policial que no exercício da função investigativa, se desincumba das suas atividades da melhor forma possível, em menor espaço de tempo e com maior êxito.
Partindo desse pressuposto, Di Pietro (2010) ressalva que o referido princípio da eficiência poderá ter dois aspectos, quais sejam: um modo de atuação do agente público, ou um modo de organizar, disciplinar e estruturar a administração pública. Assim, nestas duas hipóteses se espera o melhor desempenho possível das atribuições do referido agente público.
O princípio ora analisado recomenda compatibilidade com o princípio da legalidade, pois que a legalidade não se sustenta se apresentar ineficiente. Nessa senda, se o delegado de polícia colher provas suficientes capazes de demonstrar, por exemplo, a existência do crime de homicídio e sua autoria, não precisa esperar meses a fio pela remessa do laudo de exame cadavérico pelo instituto médico legal. Deve enviar logo o inquérito policial ao poder judiciário, oportunizando ao Ministério Público a propositura da ação penal pública.
Em casos dessa natureza, para não ocorrer prejuízos e perda desnecessária de tempo, o princípio da eficiência serve de limitador ao princípio da legalidade, pois a ineficiência revela-se incompatível com a legalidade, tornando-a irrazoável e ineficaz.
O princípio da celeridade, alçado ao patamar constitucional pela emenda constitucional nº 45/04, em relação ao inquérito policial, apresenta-se como uma verdadeira garantia do investigado, na medida em que estabelece prazo razoável para a sua conclusão, evitando, desse modo, o fenômeno da morosidade, que eventualmente poderá causar constrangimento a direito fundamental individual. De outro passo, a duração razoável da investigação acerca do crime e de sua autoria, garante também à sociedade um resultado em tempo possível, evitando a morosidade, que tanto tem causado desgaste à reputação da polícia judiciária.
Portanto, o núcleo do princípio da celeridade, como dito, garante a tramitação e a conclusão do inquérito policial em tempo razoável, preservando, inclusive, a legalidade e a eficiência; assim, a celeridade do procedimento policial não prejudicará a obediência ao sistema normativo, nem o bom desempenho da atividade investigatória. Com isso, percebe-se a estreita afinidade entre os princípios da legalidade, da eficiência e da celeridade, que, inclusive, se entrelaçam.
O princípio do controle ou da sindicabilidade das atividades administrativas, se revela em sua essência como aquele em que “ a Administração Pública direta fiscaliza as atividades dos referidos entes, com o objetivo de garantir a observância de suas finalidades institucionais” ( DI PIETRO, 2010, p. 69).
Logo, no âmbito do inquérito policial, se materializa quando se exige que os atos investigatórios levados a efeito pelo delegado de policia estarão sujeitos a fiscalização, que pode ser interna e externa.
A fiscalização interna, também conhecida como autocontrole, é aquela desenvolvida internamente pela própria polícia judiciária, através da Corregedoria respectiva, que, para isso, lança mão do mecanismo da correição.
De outro modo, o inquérito policial se submete a fiscalização externa que poderá ser levada a efeito pelo poder judiciário, pelo Ministério Público e pelas partes ou pessoas interessadas. O controle feito pelo Poder Judiciário se fundamenta no art. 5º, inciso XXXV, da CF, e nos artigos 4 a 23 do CPP, que indicam, a seu modo, que qualquer ameaça ou lesão a direito, ensejam a atuação do poder judiciário, pelo comando do princípio da inafastabilidade do poder judiciário ou do acesso à justiça.
A fiscalização ou o controle poderá ser implementado pelo Ministério Público que, pelos artigos 129, VIII da CF, e 9 e 10 da Lei complementar 75/93, em atribuição para requerer abertura de inquérito policial, requisitar diligências, bem assim acompanhar sua tramitação, inclusive, porque é o destinatário natural do resultado das investigações policiais, na qualidade de titular da ação penal pública, sendo considerado tal controle como externo. Dessa forma, “reforça-se o sistema acusatório, onde ao Ministério Público entrega-se a função de controlar as atividades policiais, visando a uma melhor colheita do suporte probatório mínimo que irá sustentar eventual imputação penal” (RANGEL, 2010, p.100).
Por fim, a sindicabilidade poderá ser exercida pelas partes ou pessoas interessadas que, por força do princípio da publicidade, têm acesso às informações das provas e atos realizados no inquérito policial, podendo, em casos de ilegalidade ou irregularidade, proceder “reclamação” á própria autoridade policial, ou a corregedoria de polícia civil, provocar o Poder Judiciário ou, ainda, comunicar ao Ministério Público.
Partindo-se para a análise dos princípios infraconstitucionais, inicia-se com o princípio da economia processual. Para tanto traz-se os escólios de Nucci (2008, p. 93) para quem “é incumbência do Estado procurar desenvolver todos os atos processuais no menor tempo possível, dando resposta imediata a ação criminosa e pautando tempo e recursos das partes”.
Tal princípio tem serventia em sede de inquérito policial na medida em que assegura a implementação dos princípios constitucionais da eficiência e da celeridade, evitando que a autoridade policial eleja linhas investigativas ou proceda diligências que poderiam resultar em conclusões inócuas ou tardias, em vez de outras mais céleres e mais eficientes. Nessa sentido não é conveniente ao delegado de polícia reproduzir provas e indícios que foram realizados por outros órgãos administrativos, como auditorias da Controladoria Geral da União (CGU) ou do Tribunal de Contas de União (TCU), por absoluta desnecessidade.
Em relação ao princípio da oficialidade, o mesmo sugere que a persecução penal é considerada uma função obrigatória e primordial do Estado, no qual incumbe à Polícia Judiciária, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, as funções respectivas na concretização do direito, sendo distribuídas de acordo as suas características, que se estabelece pela investigação, instauração da ação penal e punição do agente do crime (NUCCI, 2009).
Partindo dessa premissa, cabe ainda ressaltar que é de competência do Estado atuar, quando ocorre o fenômeno criminoso, pois o ius puniendi é atribuição estatal e cabe a ele desenvolver a persecução penal. Em nossa estrutura estatal, o primeiro passo da persecução penal, que busca o ius puniendi, é exercitado pela polícia judiciária que, utilizando-se do inquérito policial, desenvolve investigação oficial e essencial, para demonstrar a existência do crime e sua autoria. Então, a polícia judiciária, ao investigar a existência do crime e sua autoria, desenvolve atividade oficial, atribuída ao Estado, pelo ordenamento jurídico; essa atividade policial não pode ser desenvolvida por particulares, nem admite substituição, salvo exceções previstas em lei.
O princípio do impulso oficial, também de natureza infraconstitucional, proclama, que “ uma vez iniciada a ação penal, por iniciativa do Ministério Público ou do ofendido, deve o juiz movimentá-la até o final, conforme procedimento previsto em lei, proferindo decisão”(NUCCI, 2008, 109).
Logo, tal princípio também deve ser observado no inquérito policial, na medida em que a autoridade policial, para instauração do inquérito e desenvolvimento das investigações, nos casos de crimes de ação pública incondicionada não precisa ser provocada, isto é, pode e deve agir de ofício, logo que tome conhecimento da existência da prática de crime. Em regra, em sede de investigação policial, o delegado de polícia age de ofício, sem prejuízo eventualmente de requisição promovida pelo juiz ou por membro do Ministério Público. Desse modo, Garcia (2009, p. 17) explica que “em caso de dúvida, a autoridade policial sempre deve instaurar o inquérito, caso a dúvida seja sanada posteriormente, os autos deverão ser remetidos ao judiciário”.
Em casos de crimes de ação penal privada ou de ação pública condicionada a representação, por envolver excepcionalidade, cabe a vítima ou ofendido ou seu representante legal provocar o delegado de polícia para instauração do inquérito policial, considerando o princípio da disponibilidade, justificado pela natureza dos bens e interesses jurídicos submetidos à tutela.
O princípio da indisponibilidade, ainda de caráter infraconstitucional, aplicável ao inquérito policial, determina que a autoridade policial, depois de iniciada as investigações, não pode arquivar o respectivo procedimento administrativo, em nenhuma hipótese, sendo, portanto, obrigado a concluí-lo e enviá-lo ao Poder Judiciário, para que esse remeta ao Ministério Público. Somente o juiz poderá determinar o arquivamento do inquérito, após manifestação do Ministério Público.
Assim, acrescenta Garcia (2009), que o delegado poderá em seu relatório final, dar sua opinião sobre o arquivamento, o qual não possui caráter vinculativo, cabendo ao Ministério Público levar em consideração ou não. Da mesma forma, a opinião do Ministério Público também não é a ultima palavra em relação ao arquivamento, sendo de competência do exclusiva do juiz de decidir se o determinado caso comporta o arquivamento.
Este princípio da indisponibilidade tem previsão no artigo 17 do CPP, ao lançar que “a autoridade policial não pode arquivar autos de inquérito”, sem aludir exceção e imperativamente.
Por fim, o princípio da comunhão das provas dispõe que as provas pertencem ao processo e pode ser utilizada por quem dele participar, independente de qual parte tenha apresentado a referida prova. Desse modo, o objetivo ora aludido é a busca da verdade dos fatos alegados, para que a causa seja corretamente apreciada pelo juiz competente (NUCCI, 2008).
Partindo desse pressuposto, conclui-se que o referido princípio deve também ser observado durante a feitura do inquérito policial. Para tanto, todos os indícios e provas colhidos pela autoridade policial, ao serem juntados no caderno procedimental pertencem a todos os personagens nele envolvidos ou vinculados, como o Ministério Público, o indiciado, a vítima ou outras pessoas eventualmente interessadas.
Calha registrar, por oportuno, que a interceptação telefônica, depois de transcrita e juntada aos autos do inquérito policial, por conta do princípio da comunhão das provas, interessa ou pertence a todos; tal prova pode servir ao Ministério Público, na dedução da pretensão punitiva, ou, ao contrário, pode servir ao indiciado, caso venha demonstrar sua inocência ou comprovar, por exemplo, a inexistência de crime, ou, ainda, suscitar dúvidas acerca do crime e de sua autoria.
Como estabelecido nesta monografia, estão notificados os princípios que orientam a teoria geral do garantismo na terceira parte do capítulo anterior, e os princípios orientadores do inquérito policial, acima expostos, para que se tenha uma idéia clara e dimensional do universo da teoria e do universo do inquérito.
A identificação do princípio do contraditório, da ampla defesa e da falseabilidade, no universo da Teoria Geral do Garantismo, e a identificação do principio da não-contraditoriedade, no universo do inquérito policial, é o suficiente, por si, para concluir-se que o universo da teoria não alcança devidamente o universo do inquérito policial, em razão do antagonismo manifesto entre os princípios do contraditório, da ampla defesa e da falseabilidade, bem como do princípio da não-contraditoriedade.
4.2 Breves anotações jurisprudenciais sobre o inquérito policial
Após a conclusão da abordagem principiológica destinada a demarcar a feição do inquérito policial no direito pátrio, com importantes subsídios doutrinários, convém grafar nesta monografia algumas anotações jurisprudenciais relevantes, considerando a importância fenomenal da jurisprudência no Brasil nos últimos tempos, pela forte influência do direito Americano, inclusive, com a adoção do poder vinculante sumular.
Nessa esteira, a súmula vinculante nº 14, do STF, determina que “é direito do defensor no interesse do representado, ter acesso, amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão competente de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
A referida súmula vinculante ressalta respeito e garantia ao investigado, no âmbito do inquérito policial, ou de procedimento administrativo similar, de ser representado por advogado, de ter acesso a todos os indícios e provas produzidos, podendo, com isso, eventualmente, aproveitar ou contraditar tais elementos.
Deste modo essa súmula vincula ao seu comando todos os órgãos jurisdicionais brasileiros, evidenciando que na seara da investigação policial, os princípios da publicidade, de natureza constitucional, e o da comunhão das provas, de natureza infraconstitucional, impõem, por assim dizer, uma marca garantista ao procedimento pré-processual, por entender que se encontram em jogo direitos constitucionais fundamentais do investigado.
Nos escólios de Rangel (2010) o conteúdo da referida súmula é claro no sentido de estabelecer que o advogado poderá ter acesso às provas no decorrer do procedimento investigatório, mas apenas às diligências que já foram realizadas, e não àquelas que ainda serão produzidas e que deverão, assim ser, sigilosamente, na medida em que seja necessária a sua consecução.
Assim sendo, é de fácil percepção que pela ótica do Supremo Tribunal Federal (Tribunal Constitucional Brasileiro), o inquérito policial, apesar de ser procedimento administrativo pré-processual, deve garantir ao investigado amplo acesso às informações já produzidas, para que por representação de advogado possa, eventualmente, na fase processual, defender-se amplamente. Como dito, o STF, pela observância dos princípios da publicidade e da comunhão da prova, imprime, neste particular ao inquérito policial, forte víeis garantista.
No mesmo sentido Paccelli (2011) acrescenta que todas as diligências a serem realizadas em sede de inquérito policial, estabelecidas pelo art. 6º e seguintes do CPP, a exemplo da inquirições de testemunhas, das vítimas e dos supostos autores, o acompanhamento de eventuais acareações, bem como a realização de perícias e reconhecimentos de pessoas devem, quando protegidas pela reserva da jurisdição, ser precedida por ordem judicial anterior, para que sejam legítimas.
Portanto, a súmula vinculante nº 14, para sua melhor compreensão, não veda o sigilo, por exemplo, das interceptações telefônicas determinadas judicialmente ou outras diligências similares, porque sem o sigilo elas não atingiriam seus objetivos investigativos, pois se assegura ao indiciado todas as informações a elas referentes, quando forem realizadas, e após a juntada de suas transcrições nos autos da investigação policial respectiva.
Portanto, nas diligências policiais sob sigilo, o investigado delas tomará conhecimento, após suas realizações, quando forem juntadas no caderno do inquérito policial. Porém, somente as diligências absolutamente necessárias ao êxito da investigação poderão ser executadas com sigilo, caso contrário, revelar-se-ão ilegais e abusivas, caracterizando constrangimento ilegal ao investigado.
Nessa mesma esteira garantista, o Superior Tribunal de Justiça, em sua súmula 444, edita: “é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”. Entende o STJ que o indiciado não pode sofrer prejuízo, com gravação da pena-base, pelo fato de ser investigado em inquérito policial. Tal entendimento revela-se como relevante garantia ao investigado, à consideração de que o inquérito policial é mero procedimento pré-processual, e, por isso, não tem o condão de maculá-lo em sua dignidade, a ponto de atingi-lo na análise de sua personalidade, de seus antecedentes ou de qualquer outra apreciação judicial.
A matéria sumular levantada, expressa que o Superior Tribunal de Justiça, nesse passo, ao consolidar sua jurisprudência, que culminou com a edição da referida súmula 444, desprestigia o direito penal máximo, direito esse que entende que nenhum culpado ficará impune, livrando-se de quaisquer consequências penais. O STJ ao desprestigiar o direito penal máximo, adotou posição acorde com o pensamento de Ferrajoli, pois o autor italiano, construtor da teoria do garantismo, também repudia o direito penal máximo, ao lançar mão do direito penal mínimo próprio do modelo garantista, que assegura que nenhum inocente será punido. Tal consideração de desprezo ao direito penal máximo e a adoção do direito penal mínimo, é suporte do garantismo. Desse modo, Ferrajoli justifica tal teoria, versando que a mesma deve ser concebida “[...] enquanto doutrina axiológica de justificação e, e ao mesmo tempo, de deslegitimação dos concretos sistemas penais” (2011, p. 320).
Importa registrar, sem o risco de incorrer em repetição desnecessária, que o entendimento do STJ é garantista, ainda, porque observa o princípio da presunção de inocência, previsto no Art. 5º, LVII, da CF, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Este princípio constitucional expresso constitui direito fundamental constitucional do cidadão e impede o Estado de considerar culpado quem ainda não foi condenado por sentença transitada em julgado. Vê-se aqui que tal princípio “reforça, ainda, o princípio penal da intervenção mínima do Estado na vida do cidadão, uma vez que a reprovação penal somente alcançará aquele que for efetivamente culpado” (NUCCI, 2008, p. 82).
Assim, Ferrajoli, ao construir a teoria geral do garantismo, enunciando a acepção do modelo normativo de direito, concebe a teoria garantista como aquela em que a Constituição limita a atuação do Estado, em todos seus poderes, e garante a implementação dos direitos fundamentais constitucionais do cidadão, pontuando a efetividade das normas constitucionais. Com isso, o garantismo constitui o Estado de Direito, e mais, o Estado Constitucional de Direito equivalente “[...] à democracia, no sentido que reflete, além da vontade da maioria, os interesses e necessidades vitais de todos” (FERRAJOLI, 2011, p. 797).
Pois bem, no Estado em que o poder judiciário efetiva uma garantia constitucional do cidadão, por limitação constitucional de sua atuação consistente em erro ou abuso, a atuação estatal qualifica-se como garantista. É o que se comprova a partir da leitura e análise da súmula 444, do STJ.
A jurisprudência brasileira, ainda no que se refere ao inquérito policial, tem admitido, ainda que excepcionalmente, o trancamento do inquérito policial, por via do habeas corpus, quando a autoridade policial, na instauração ou no curso das investigações policiais, cometer qualquer abuso ou ilegalidade violadores de qualquer direito fundamental do investigado.
Assim sendo, Garcia (2009) explica que não é lícito se impedir o delegado de propor investigação, porém se a investigação for depender de alguns requisitos, ela poderá não ter continuidade por determinação do juiz. Desse modo, como é de conhecimento, é cabível habeas corpus em caso de trancamento de processo, sendo o mesmo cabível, ainda com mais ênfase, para o trancamento do inquérito policial, o qual deve ocorrer quando for verificada a extinção de punibilidade, a atipicidade do fato, ausência de justa causa, ilegitimidade da parte e etc.
Cabe ainda ressaltar, que o poder judiciário – juízes e tribunais – ao admitir pretensão do investigado tendente a trancar o inquérito policial, por abuso ou ilegalidade da autoridade, cumpre atividade garantista, por observar o princípio do controle ou da inafastabilidade do poder judiciário, previsto no art. 5º, XXXV, da CF que diz: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Este princípio também denominado de princípio do Acesso a Justiça, constitui garantia constitucional do cidadão e se destina a vedar desvio de conduta da autoridade policial, na atividade investigatória; aqui, ocorre o fenômeno da sindicabilidade do poder judiciário ao exercício de atividade administrativa, que, quando se refere a direitos fundamentais do cidadão, apresenta a feição garantista. Só para documentar, antigamente o poder judiciário no Brasil não admitia a possibilidade jurídica do trancamento do inquérito policial.
Concretamente, o investigado, quando pretende trancar o inquérito policial, se vale do habeas corpus, que, em verdade, representa o instrumento processual garantidor do investigado contra atos atentatórios a sua liberdade, bem como ilegais e abusivos. A Constituição Federal, em seu artigo 5º LXVIII, expressa que “conceder-se-á Habeas Corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Os artigos 647, e seguintes, do CPP, também se ocupam do instrumento do habeas corpus, anotando que ele é um instrumento que tutela direitos e garantias individuais. Não há conflito normativo entre a Constituição Federal e o Código de Processo Penal, quando tratam do Habeas Corpus.
O Estado brasileiro, quando admite, eventualmente, o controle pelo poder judiciário da atividade desenvolvida pela autoridade policial, por meio de Habeas Corpus impetrado por investigado, se apresenta, nesse ponto, conforme o Estado de Direito formatado pela Teoria Geral do Garantismo.
O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça entendem que cabe habeas corpus, excepcionalmente, para trancar inquérito policial, quando, de plano, for demonstrado ilegalidade ou abuso praticado pela autoridade policial contra o investigado. Assim, no julgamento do HC 106314, a Ministra Carmen Lúcia firmou o referido entendimento, o qual dispôs que
EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. JUSTA CAUSA NÃO DEMONSTRADA. NECESSIDADE DE APROFUNDAMENTO DOS TRABALHOS INVESTIGATÓRIOS. AUSÊNCIA DE PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DAS ALEGAÇÕES APRESENTADAS NESTA IMPETRAÇÃO. PRECEDENTES. DENEGAÇÃO DA ORDEM. 1. É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal no sentido de que, o trancamento de inquérito policial pela via do habeas corpus, constitui medida excepcional só admissível quando evidente a falta de justa causa para o seu prosseguimento, seja pela inexistência de indícios de autoria do delito, seja pela não comprovação de sua materialidade, seja ainda pela atipicidade da conduta do investigado. 2. O exame da alegada imprecisão do nome ou inocência do Paciente diante da hipótese de suposto constrangimento ilegal não se coaduna com a via eleita, sendo tal cotejo reservado para processos de conhecimento, aos quais a dilação probatória é reservada 3. Ordem denegada. (RHC 106314, Relatora Cármen Lúcia, primeira turma, julgado em 21/06/11, DJe-162 DIVULG 23-08-2011 PUBLIC 24-08-2011)
Cabe ainda ressaltar o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, que corroborando com o entendimento do STF, dispôs no HC 130058 / RJ, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Junior
TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. APURAÇÃO DE EVENTUAL PRÁTICA DE ESTELIONATO E DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA. PRÉVIO WRIT DENEGADO NA ORIGEM. PRETENSÃO DE NULIDADE DO ACÓRDÃO. FUNDAMENTAÇÃO. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA E DE ATIPICIDADE DA CONDUTA. INEXISTÊNCIA DE DOLO. ANÁLISE DE QUESTÕES DE FATO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA.EXISTÊNCIA DE ELEMENTOS SUFICIENTES A INDICAR A PRÁTICA DE DELITO. INEXISTÊNCIA DE COAÇÃO ILEGAL. 1. Não há falar em nulidade por falta de fundamentação do acórdão proferido pelo Tribunal local se o Colegiado trata do que deve e com motivação suficiente, como na espécie. 2. Mesmo na estreita via do habeas corpus, é lícito ao Poder Judiciário verificar se existe, ou não, justa causa para o prosseguimento da investigação policial. Para que tal excepcionalidade se viabilize, todavia, é preciso que se constate, de plano, ser absurdo o procedimento inquisitorial em andamento, ou por total atipicidade da conduta ou pela ausência de elementos mínimos indicativos de autoria, o que na hipótese não ocorreu. 3. No caso, para se reconhecer a atipicidade da conduta dos
pacientes, sobretudo no que tange à dita ausência de dolo, seria necessário o exame aprofundado de provas, providência que é inadmissível aqui e agora. Ademais, os fatos narrados no relatório da delegacia de defraudações, em tese, configuram delito, o que é mais do que suficiente para ensejar a continuidade das investigações, não havendo falar em falta de justa causa. 4. Habeas corpus denegado. (HC 130058 / RJ
HABEAS CORPUS, Relator Sebastião Reis Junior, quinta turma, julgado em 15/09/11, DJe 24/10/2011)
Então, a jurisprudência pátria como visto, acentua aspecto garantista ao permitir, mesmo que excepcionalmente, o trancamento do inquérito policial, por via de Habeas Corpus, desde que a conduta administrativa da autoridade policial não se exprima na justa causa, ou seja, que não haja elementos mínimos de autoria ou demonstração da materialidade do crime ou ainda que a conduta praticada pelo investigado seja manifestamente atípica.
Corroborando com esse entendimento, Nucci (2008) acrescenta ainda, que o trancamento do inquérito se apresenta como legítimo quando se verificar nítido abuso na instauração do inquérito ou quando for constatado que no decorrer das investigações, esta se direciona a determinada pessoa sem a menor base de prova. Assim, tal medida coíbe, em verdade, um abuso e não atividade regular da polícia judiciária.
Portanto, a referida posição jurisprudencial, de traço garantista, constitui avanço, porque somente com o advento de garantias individuais trazidas pela Constituição Federal de 1988, o poder judiciário, em exercício da função jurisdicional, na aplicação de normas constitucionais, passou a adotar entendimentos diversos da tradicional jurisprudência brasileira, que, anteriormente, adotava uma postura conservadora, considerando que o poder judiciário não poderia sindicar a conduta da autoridade policial, na instauração do inquérito policial, entendendo que tal matéria constituiria invasão do mérito administrativo.
Portanto, em tempos pretéritos o poder judiciário, mesmo que por via de habeas corpus, em caráter de excepcionalidade, não podia trancar o inquérito policial. Tal mudança no enfoque jurisprudencial só ocorreu com o advento da Constituição Federal.
4.3 Provas produzidas no inquérito policial: renováveis e não renováveis
Quando o tema é inquérito policial não se pode deixar de abordar os elementos de provas colhidos em seu âmbito, em razão da sua inevitável repercussão na conclusão da autoridade policial, como também da repercussão deles no curso do eventual processo penal estabelecido.
A prova produzida no inquérito policial constitui elemento essencial para a formação da opinio delicti do autor da ação penal, em virtude de seu caráter informativo. Todavia, há prova que, por sua natureza, só é produzida no âmbito do inquérito policial, com repercussão em todo processo penal, caso venha ele a existir.
Na verificação da prova produzida no inquérito policial, constata-se que ela pode ser renovável ou repetível ou não renovável ou não repetível, de acordo com sua reprodução ou não na fase processual. A denominação de prova renovável ou repetível, não renovável ou não repetível, tem o cunho eminentemente doutrinário.
A prova dita renovável ou repetível, em sede de inquérito policial, é aquela que o autor da ação penal, pode requerer sua reprodução na instrução criminal, a exemplo do depoimento de testemunhas, acareação entre testemunhas, entre testemunha e vítima, entre testemunhas e acusado (indiciado), etc.. Desse modo, Lopes Junior (2011) ressalva que estas provas, para serem elementos valoráveis na sentença devem ser produzidas novamente na fase processual, na presença da defesa, da acusação e do juiz, com observância de todos os critérios de forma que regem a produção de prova no processo penal.
Assim, toda prova produzida no inquérito policial, em regra, pode ser reproduzida eventualmente na fase processual da instrução, quer seja ela requerida pelas partes – autor da ação penal ou acusado – ou determinada de oficio pelo juiz.
Dessa forma, também em sede de inquérito policial, há prova que, por sua natureza, é produzida na fase policial e não é renovável ou não repetível na instrução processual. Estas provas “são aquelas, que por sua própria natureza, têm que ser realizadas no momento de seu descobrimento, sob pena de perecimento ou impossibilidade de posterior análise” (LOPES JUNIOR, 2011, p. 295).
As pericias em geral, são exemplos delas, assim como o exame do local do crime que em regra, não se repetem ou renovam na fase processual, as vezes pela impossibilidade de sua reprodução, pelo desaparecimento dos vestígios ou elementos materiais. Por isso, a polícia judiciária se vale de laudos de exames periciais, de fotografias, de filmagens ou de outros recursos tecnológicos que possam documentar ou memorizar tais elementos materiais ou vestígios.
Por outro lado, há a possibilidade, em caráter complementar, em alguns casos, de que se reproduzam algumas perícias, na fase judicial, valendo-se da técnica, como, por exemplo, a exumação do cadáver, que pode confirmar ou contrariar conclusões do exame de cadavérico ou da autópsia.
A questão fundamental a ser meditada é se, no inquérito policial, no tratamento da prova não renovável ou não repetível, o investigado pode contraditá-la, em exercício efetivo do contraditório. Na prática, quando produzidas, no inquérito policial, as provas não renováveis ou não repetíveis, ao investigado somente cabe a informação e o acompanhamento de sua produção; ainda não se admite, no Brasil, em sede de inquérito policial, ao investigado o exercício do contraditório em relação às provas não renováveis ou não repetíveis.
Corroborando com o referido entendimento, Rangel (2010) acrescenta que não poderá haver contraditório no inquérito, na medida em que pela sua própria natureza, no qual é considerado um procedimento administrativo, que em face disto, possui atributos que lhe são próprios, o qual não podem ser desconsiderados.
Parte da doutrina pátria tem advogado o cabimento do contraditório, no inquérito policial, quando da produção de provas não renováveis ou não repetíveis, porém, na prática, tal garantia não tem sido implementada. Tanto isso é verdade, que um dos princípios que orientam o inquérito policial, no Brasil, é o princípio da não-contraditoriedade, como acentuado já acentuado anteriormente.
A circunstância anotada de que não se aplica, no âmbito do inquérito policial, o princípio do contraditório, da defesa e da falseabilidade, implica concluir-se que ele não é garantista, porque, segundo Ferrajoli, para verificar-se um sistema garantista é necessário, absolutamente necessário, a existência efetiva da aplicação do contraditório, da defesa e da falseabilidade, situação essa não ocorrente em sede de investigação policial.
4.4 O inquérito policial e o Garantismo
Diante de tudo o que já foi exposto, parte-se, agora, para uma análise mais pormenorizada acerca da Teoria do Garantismo em cotejo com o Inquérito Policial.
A primeira verificação é de que o inquérito policial constitui-se procedimento administrativo destinado a informar, ao autor da ação penal acerca da existência do crime e de sua autoria, mas tal procedimento é marcadamente inquisitorial e, por isso, não admite o exercício efetivo do princípio constitucional do contraditório, como previsto no art. 5°, inciso LV, da CF. Conforme afirma Rangel (2010, p. 94) “o caráter inquisitorial do inquérito faz com que seja impossível dar ao investigado o direito de defesa, pois ele não está sendo acusado de nada, mas, sim sendo objeto de uma pesquisa feita pela autoridade policial”.
Assim, consultando a doutrina brasileira, verifica-se, na seara principiológica, que o principio da não-contraditoriedade é um daqueles que orientam e caracterizam o inquérito policial.
A segunda verificação é a de que o inquérito policial não é garantista, consiste em consultar Ferrajoli, que, ao elaborar a Teoria Geral do Garantismo, na parte específica de sua principiologia, anotou que o garantismo é orientado, além de outros relevantes princípios, pelo princípio do contraditório, da defesa ou da falseabilidade, considerando-o como a principal epistemologia da prova, assentando, que esse princípio permite que a defesa possa se manifestar no sentido de solicitar e controlar o método de provas e contra provas; que a falseabilidade que está na base desse principio, não permite juízos de poder supremo; que esse princípio do contraditório exige, como forma de defesa da presunção de inocência do imputado, o processo de investigação baseado no conflito, ainda que regulado entre as partes contrapostas (FERRAJOLI, 2011).
Nesse sentido, cabe ainda ressaltar que esse princípio ainda se conforma com o processo acusatório moderno, visto ele como uma disputa ou controvérsia, que passa a exprimir, de forma clara, os valores democráticos, do respeito ao imputado, do equilíbrio entre as partes e da necessidade de refutação da pretensão punitiva e controle do acusado.
Dessa forma, Ferrajoli (2011) ressalva que, para que se tenha legalmente uma igualdade de armas entre as partes, se faz necessário que a defesa tenha as mesmas capacidades e os mesmos poderes da acusação; e também, que sua função de contraditar tenha reconhecimento em todo o Estado e grau do procedimento e em relação a todo ato probatório, bem como, assim seja, referente a todos os atos de colheita de prova, como o reconhecimento aos testemunhos e as acareações, as averiguações judiciárias e as pericias ao interrogatório do imputado.
Então, para concluir que o inquérito policial não é garantista, basta olhar para o conteúdo do princípio do contraditório, da defesa, ou da falseabilidade, que é um dos princípios que orientam a teoria geral do garantismo. Para se chegar a essa assertiva, não há necessidade de expor a teoria geral do garantismo, em suas considerações, acepções ou outros princípios que a orientam, pois, pelo prisma observado, desenganadamente se pode afirmar que o inquérito policial não se ajusta ao garantismo penal.
Cabe ainda salientar, que a atividade investigatória ora estudada, não pode ser, nem mesmo, equiparada com um processo, no qual são resguardadas todas as garantias ao indiciado, na medida em que “a atividade carece de mando de uma autoridade com potestade jurisdicional e por isso não pode ser considerada como atividade judicial e tampouco processual, até porque não possui estrutura dialética de processo” (LOPES JUNIOR, 2011).
Dessa forma, Nucci (2008) acrescenta que não caberá contraditório no inquérito, devido, também, a presença do sistema acusatório adotado pela legislação pátria, no qual atribui ao Ministério Público a função de acusar e consequentemente de promover a ação penal. Desse modo, a ausência da acusação no decorrer das investigações torna desnecessária a defesa do investigado, posto que se busca, nesta fase, apenas a averiguação de fatos, não incidindo o art. 5º, inciso LV, da CF.
Entretanto, apesar do inquérito policial se constituir de procedimento administrativo informativo, sem caráter decisório, isso não o dispensaria de ser garantista vez que ele revela forte possibilidade ou até mesmo probabilidade de dedução de pretensão punitiva contra o investigado, através de proposição da ação penal, em potencial ameaça ao direito de liberdade, direito esse fundamental, de cunho constitucional, e tutelado pelo direito penal. Além do direito e liberdade do investigado, o inquérito policial pode indicar, dependendo do caso, potencial ameaça à violação de domicílio, busca e apreensão de bens móveis, indisponibilidade de bens imóveis, entre outras constrições.
Partindo dessa premissa, só para argumentar, a decretação de prisão preventiva, a decretação de prisão temporária, a busca e apreensão de bens móveis, por exemplo, quando requeridas pelo delegado de polícia, não têm o contraditório do indiciado, ou seja, nas constrições pessoais e patrimoniais, apesar de envolverem bens jurídicos tutelados pelo direito penal, bens esses relevantes, não há o contraditório.
Nestas condições, em que o indiciado potencialmente pode sofrer constrições, de ordem pessoal e de ordem patrimonial, o inquérito policial deveria ser garantista, comportando a aplicação do inciso LV, do art. 5°, da CF, que diz: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Desse modo, clara são as lições de Nucci (2008) para quem o inquérito, tem em si, função garantidora, na medida em que a referida investigação tem o caráter de evitar a instauração de uma de uma ação penal infundada pelo Ministério Público diante do fundamento do processo penal, que é, em verdade a instrumentalidade e o garantismo penal.
As conseqüências graves que podem sofrer o indiciado, em sede de inquérito policial, ou em decorrência dele, no panorama garantista, exigem o contraditório e a ampla defesa, a fim de evitar o desrespeito a direitos fundamentais, inscritos na Constituição Federal. Caso contrário, negar-se-á o Estado de Direito ou o Estado Constitucional de Direito, porque o garantismo se projeta como teoria limitadora das atividades do Estado, em seus poderes, órgãos e instituições, assegurando a tutela dos direitos fundamentais constitucionais individuais e metaindividuais dos cidadãos e da sociedade.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa monográfica tratou de abordar todos os aspectos do inquérito policial, envolvendo suas considerações históricas, conceito, características, procedimento e arquivamento, princípios que o orientam, natureza produzida em sua seara e apreciações doutrinárias e jurisprudenciais.
Com isso, verificou-se que o inquérito policial se constitui em procedimento administrativo, informativo, sem cunho decisório, destinado a informar o autor da ação penal acerca da existência do crime e sua autoria; contudo, tal procedimento administrativo não comporta a aplicação do princípio constitucional do contraditório, caracterizando-o como procedimento administrativo “sui generis”, porque, a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso LV e a Lei 9789/99, determinam que, no procedimento ou no processo administrativo assegurar-se-á sempre o contraditório e a ampla defesa.
Cabe, ainda, ressaltar que o inquérito policial é procedimento pré-processual e destina-se a fornecer informações ao autor da ação penal, para que ele forme a opinio delicti, acerca da existência do crime e da identificação de seu autor, para poder propor a competente ação penal.
Então, na busca da verdade real acerca da existência do crime e de sua autoria, a autoridade policial nesse desiderato, colherá provas periciais, testemunhais e documentais, além de outras atividades, investigativas, todas destinadas a desvendar as circunstâncias que envolveram o crime. Todavia, a atividade investigativa desenvolvida pelo delegado de polícia e demais agentes policiais devem, em observância ao princípio da legalidade e aos demais aplicáveis ao inquérito policial, evitar ilegalidades, abusos ou arbitrariedades, prejudiciais aos direitos fundamentais do indiciado, definidos em normas constitucionais e infraconstitucionais.
A autoridade policial, após empreender todas as atividades investigativas próprias do inquérito policial, o concluirá e o encaminhará, como informação circunstanciada acerca do crime, ao poder judiciário, que, por sua vez, o encaminhará ao autor da ação penal, que, em exercício a opinio delict, promoverá a competente ação penal, ou requererá a devolução do inquérito policial para realização de novas diligências, ou, ainda, requererá seu arquivamento, quando o fato praticado pelo indiciado for atípico, ou quando inexistir o crime, ou, ainda, quando for desconhecida a autoria da atividade criminosa.
O outro foco do trabalho visou expor, em seus pontos importantes a Teoria Geral do Garantismo, tal como produzida por Luigi Ferrajoli, procurando manter-se fiel ao pensamento doutrinário de seu autor. Na exposição da teoria garantista, fez-se uma abordagem sobre sua extensão conceitual, suas três acepções, finalizando com a exposição dos dez princípios que a orientam, buscando dimensionar o alcance de cada um.
A rigor, a teoria garantista, busca estabelecer paradigmas no Estado e no Direito, causando conseqüências limitadoras para o Estado e efetivando um sistema de garantias de direitos fundamentais dos cidadãos, orientado pela Constituição. Daí, não é exagerado afirmar que a teoria garantista sugere um Estado Constitucional de Direito, considerando que as garantias dos direitos fundamentais dos cidadãos, são estabelecidas pela Constituição.
Então, convém anotar que o enfoque ao inquérito policial e a teoria geral do garantismo, teve como finalidade estabelecer a verificação, objetiva e imparcial, na análise detalhada de um e de outro, para saber se o inquérito policial é ou não garantista, e se não o for, se deveria sê-lo, expondo, para isso, a devida fundamentação.
O inquérito policial, principalmente, após o advento da Constituição Federal de 1988, por obra da interpretação e aplicação normativas, em sedes doutrinária e jurisprudencial, mudou, sobremodo, sua feição, inclusive, adotando um víeis principiológico, pois são a ele aplicáveis, os seguintes princípios: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, celeridade, controle, economia processual, oficialidade, impulso oficial, indisponibilidade e comunhão da prova; fazendo-se, em relação a eles, individualmente, um breve comentário.
Apesar da robustez do inquérito policial, no período pós 1988, ele ainda é eminentemente inquisitorial e ocasionalmente sigiloso, além de se conformar com o princípio da não-contraditoriedade. Diante disso, conclui-se que o inquérito policial não é garantista, pois, segundo Ferrajoli, um dos princípios que orientam o garantismo penal, é o princípio do contraditório, da defesa ou da falseabilidade. O indiciado em sede de inquérito policial, não tem a oportunidade de contraditar a prova contra si produzida, e nem exercitar o direto de defesa, razão pela qual se conclui que o referido procedimento não é garantista. Até mesmo as provas não renováveis ou não repetíveis produzidas no inquérito policial não têm merecido o crivo do contraditório.
A realidade principiológica incidente no inquérito policial; a súmula vinculante nº 14 do STF; a súmula 444 do STJ, e a possibilidade jurídica do trancamento do inquérito policial, mesmo que em caráter excepcional, imprimem a ele aspectos garantistas, porém, tais aspectos não autorizam a conclusão de que ele seja um procedimento garantista. Para Ferrajoli, ou o sistema é garantista, assegurando a efetividade dos direitos fundamentais individuais, em sua inteireza, ou não o é; nesse caso, o inquérito policial, apesar de adotar um sistema de garantias ao indiciado, como visto no decorrer deste trabalho monográfico, não o garante, porém, o direito ao contraditório das provas produzidas contra si e o direito de defesa. A constatação da não aplicação dos crivos do contraditório e da defesa do indiciado no inquérito policial, implica indiscutivelmente em negação ao garantismo penal, como no pensamento de Ferrajoli.
Após tudo isso, cabe indagar: se o inquérito policial não é garantista, ele deveria sê-lo, considerando ser procedimento pré-processual? A resposta deve ser desenganadamente positiva. Embora o inquérito policial seja procedimento pré-processual, ele potencialmente ameaça ou contribui para concretização da constrição de direitos fundamentais do indiciado, a exemplo do direito de liberdade, direito de resguardo do domicílio e direito de posse ou propriedade.
Para melhor explicitar essa ideia, basta dizer que a decretação da prisão preventiva ou da prisão temporária do indiciado, quando requerida pela autoridade policial, o mesmo não tem oportunidade de manifestar-se sobre ela, quase sempre ele tem ciência, no momento da prisão. O mesmo ocorre na medida cautelar penal de busca e apreensão, dentre outros exemplos.
Portanto, diante da vulnerabilidade de direitos fundamentais do indiciado, deveria o inquérito policial ser garantista; situação essa reveladora de que, sob a ótica garantista, o Brasil ainda não é um Estado de Direito ou um Estado Constitucional de Direito.
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Acadêmica do Curso de direito da Universidade Dom Bosco no Maranhão.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Teresa Raquel Maciel. Inquérito policial em cotejo ao garantismo penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jan 2012, 08:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/27553/inquerito-policial-em-cotejo-ao-garantismo-penal. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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