A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade.
E a segunda metade voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Carlos Drummond de Andrade[1]
INTRODUÇÃO
Mais uma vez surgem debates fervorosos, informações desencontradas, partidárias, muitas incompletas, relacionado ao uso de conceito jurídico. Desta vez o “principio da verdade real” foi eleito objeto de celeuma durante o processo de julgamento do suposto autor de homicídio doloso, envolvendo defesa e magistrado. Esse ensaio tem como objetivo suscitar a reflexão sobre pontos relacionados ao referido “princípio” e ética.
A VERDADE NO PROCESSO PENAL
O “princípio da verdade real”, normalmente apresentado em oposição à “verdade formal” [2] (ligada ao processo civil, onde o magistrado não esta obrigado a buscar provas, ou em alguns casos a ele tal busca é vedada), relacionado ao processo penal, significa que o juiz não deve se contentar com o que lhe é apresentado, mas deve buscar provas, tanto quanto as partes.
O termo “verdade real” é utilizado, em geral, de maneira superficial, quase como facilitador da compreensão da hipótese da busca do magistrado por provas, independentemente da iniciativa ou vontade das partes.
Assim, utilizado de maneira contextualizada, o “principio da verdade real” é válido e aplicável apenas nesse sentido mais superficial (buscando-se mais a facilidade do que o rigor técnico exigido pela complexidade do tema). Destaca-se que essa denominação é adotada e aceita pela maioria da doutrina nacional [3]. Alguns autores a adotam por convicção de sua perfeita adequação [4], mesmo que modernamente contestada, outros apesar de fazerem ressalva a sua problemática [5] (falta de rigor técnico) a utiliza em respeito ao costume, inclusive dos tribunais.
Em apertado resumo, e nesse ponto pendendo ao rigor técnico exigido, há um importante problema quanto à “verdade” no Processo Penal [6]. Incialmente vale transcrever trecho de Guilherme de Souza Nucci:
“Material ou real é a verdade que mais se aproxima da realidade. Aparentemente, trata-se de um paradoxo dizer que pode haver uma verdade mais próxima da realidade e outra menos. Entretanto, como vimos, o próprio conceito de verdade é relativo, de forma que é impossível falar em verdade absoluta ou ontológica, mormente no processo, julgado e conduzido por homens, perfeitamente falíveis em suas análises e cujos instrumentos de busca do que realmente aconteceu podem ser insuficientes. Ainda assim, falar em verdade real implica provocar no espírito do juiz um sentimento de busca, de inconformidade com o que lhe é apresentado pelas partes, enfim, um impulso contrário à passividade. Afinal, estando em jogo direitos fundamentais do homem, tais como liberdade, vida, integridade física e psicológica e até mesmo honra, que podem ser afetados seriamente por uma condenação criminal, deve o juiz sair em busca da verdade material, aquela que mais se aproxima do que realmente aconteceu”.[7]
Dissertando sobre o mito e o dogma da verdade real, Eugênio Pacelli de Oliveira registra:
“O chamado princípio da verdade real rendeu (e ainda rende) inúmeros frutos aos aplicadores do Código de Processo Penal, geralmente sob o argumento da relevância dos interesses tratados no processo penal. A gravidade das questões penais seria suficiente para permitir uma busca mais ampla e mais intensa da verdade, ao contrário do que ocorreria, por exemplo, em relação ao processo civil. (...) talvez o mal maior causado pelo citado princípio da verdade real tenha sido a disseminação de uma cultura inquisitiva (...)”.[8]
Na mesma esteira, segundo Aury Lopes Jr.: “o mito da verdade real está intimamente relacionado com a estrutura do sistema inquisitório; com o ‘interesse público’ (cláusula geral que serviu de argumento para as maiores atrocidades); com sistemas políticos autoritários; com a busca de uma ‘verdade’ a qualquer custo (chegando a legitimar a tortura em determinados momentos históricos); e com a figura do juiz ator (inquisitor).”[9]
PACELLI registra, desde logo, um necessário esclarecimento:
“Toda verdade judicial é sempre uma verdade processual. E não somente pelo fato de ser produzida no curso do processo, mas, sobretudo, por tratar-se de uma certeza de natureza exclusivamente jurídica. De fato, embora utilizando critérios diferentes para a comprovação dos fatos alegados em juízo, a verdade (que interessa a qualquer processo, seja cível, seja penal) revelada na via judicial será sempre uma verdade reconstruída, dependente do maior ou menor grau de contribuição das partes e, por vezes do juíz, quanto à determinação de sua certeza. (...).”
E mais, Não só inteiramente inadequado falar-se em verdade real, pois que esta diz respeito à realidade do já ocorrido, da realidade histórica, como pode revelar uma aproximação muito pouco recomendável com um passado que deixou marcas indeléveis no processo penal antigo, particularmente no sistema inquisitório da idade Média, quando a excessiva preocupação com a sua realização (da verdade real) legitimou inúmeras técnicas de obtenção da confissão do acusado e de intimidação da defesa.” [10]
Alinhado com essa posição, LOPES JR: “a verdade real é impossível de ser obtida. Não só porque a verdade é excessiva, senão porque constitui um gravíssimo erro falar em “real” quando estamos diante de um fato passado, histórico. É o absurdo de equiparar o real ao imaginário. O real só existe no presente. O crime é um fato passado, reconstruído no presente, logo, no campo da memória, do imaginário. A única coisa que ele não possui, é um dado de realidade”. E continua: “Então, se não se pode afirmar que sentença seja sempre reladora da ‘verdade’, ela é o que? Um ato de crença, de fé. Se isso coincidir com a ‘verdade’, muito bem. Importa é considerar que a ‘verdade’ é contingencial e não fundante. O juiz, na sentença, constrói a ‘sua’ história do delito, elegendo os significados que lhe parecem válidos, dando uma demonstração inequívoca de crença, de fé. O resultado final nem sempre é (e não precisa ser) a ‘verdade’, mas sim o resultado do seu convencimento.”
Em conclusão memorável do tema o mesmo autor disserta: “Por derradeiro, já antecipando-nos à crítica, não estamos incidindo no erro do relativismo absurdo (fruto do ceticismo extremado), pois temos consciência de que isso abre um perigoso espaço para legitimar o decisionismo, o que nos conduziria a um erro similar ao da verdade real. Então, é fundamental destacar que as regras do devido processo penal, fundantes da instrumentalidade constitucional por nós defendida, impõem os limites que devem impedir o decisionismo e o substancialismo. Esse respeito às regras do jogo cria condições de possibilidade para o equilíbrio entre o relativismo cético e a mitológica verdade real.” [11]
O autor ressalta que não se nega a verdade no processo penal, segundo ele:
“o que propomos não é negar a verdade, mas sim um deslocamento da discussão para um outra dimensão, onde a verdade é contingencial e não estruturante do processo. Desta forma, não se nega a verdade, mas tampouco a idolatramos (evitando assim incidir no erro de dar ao processo a missão de revelar a verdade na sentença, o que conduziria a matriz inquisitorial). A verdade assim é contingencial e a legitimação da decisão se dá através da estrita observância das regras do devido processo. São essas regras que, estruturando o ritual judiciário, devem proteger do decisionismo e também do outro extremo, onde se situa o processo inquisitório e sua verdade real.”
CONCLUSÃO
Não é esse o espaço para a discussão da possibilidade ou não do uso, ainda que tecnicamente impreciso, do termo “verdade real”, motivo pelo qual se restringiu o texto a apresentação da divergência. Contudo a pergunta não deveria ser se existe direito real, ou se por sua falta de rigor e devido ao estado de desenvolvimento do direito contemporâneo não é mais tecnicamente correto falar-se em verdade real. A pergunta, ou a busca por respostas que permitem desenvolver a sociedade, é outra.
Lamentavelmente o objeto desejado de debate, não apenas pelo meio jurídico, mas por toda a sociedade, deveria ser as relações entre defensor, acusador e juiz, com foco que vá muito além do debate exclusivamente técnico-jurídico. Essa é mais uma oportunidade de pensarmos acerca das relações pessoais e profissionais, da ética, do efetivo exercício das funções essenciais a justiça e a busca pela eficiência dentro de parâmetros legais, moraise eticamente aceitos.
O debate sobre a “verdade real”, com desprezo as relações profissionais, a ética, deixa passar ótima oportunidade de evolução da compreensão do direito e da própria sociedade, e torna-se “verdade surreal”.
REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Carlos Drummond. Contos Plausíveis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. vol. I. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009.
Marques, José Frederico. Elementos de direito processual penal. vol. II. Campinas: Millennium Editora, 2009.
Mirabete, Julio Fabbrini. Processo Penal. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2000.
Nucci, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
_______. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 7ª ed. Salvador: Juspodivm, 2012.
Tourinho Filho, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
Notas:
[1] Carlos Drummond de Andrade. “A Verdade dividida”, in: Contos Plausíveis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985. Registre-se que o poema de Drummond foi transcrito, relacionando ao princípio da verdade, originalmente por Aury Lopes Júnior (Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional) ao finalizar o estudo da questão da verdade (com utilização de outra edição e editora Corpo – Novos Poemas. Editora Record).
[2] Mesmo no Processo Civil a vedação da busca por provas pelo juiz tem sofrido certa mitigação em decorrência da tendência publicista do Direito Processual moderno, na medida em que tem previsto diligências investigativas que podem ser ordenadas pelo juiz ex officio, mormente quando tratar-se de matéria de ordem pública.
[3] Exemplificativamente, entre outros: Fernando da Costa Tourinho Filho (Manual de Processo Penal), Guilherme de Souza Nucci (Manual de Processo Penal e Execução Penal), Julio Fabbrini Mirabete (Processo Penal), José Frederico Marques (Elementos de direito processual penal. vol. II).
[4] Entre os autores que utilizam o termo “verdade real” sem qualquer restrição ou ressalva, a título exemplificativo: Julio Fabbrini Mirabete (Processo Penal) e.Fernando Capez (Curso de Processo Penal. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005).
[5] Entre eles, a título exemplificativo: Fernando da Costa Tourinho Filho (Manual de Processo Penal, p. 17. Segundo o autor: “quando se fala em verdade real, não se tem a presunção de se chegar à verdade verdadeira, com o se costuma dizer, ou, se quiserem, à verdade na sua essência. (...) na justiça penal, a procura e o encontro da verdade real se fazem com as naturais reservas oriundas da limitação e falibilidade humanas, e, por isso, melhor seria falar de ‘verdade processual’, ou ‘verdade forense’, (...)”. Também ponderando o uso costumeiro da denominação “verdade real” os atualizadores da obra de José Frederico Marques (Elementos de direito processual penal, vol. II, p. 289) registram que: “A busca pela verdade real ainda é fruto de acalorada discussão no processo penal. Modernamente, tem-se entendido que não é possível se atingir a verdade real, visto que esta não é passível de ser encontrada. Modernamente, fala-se em verdade processual, ante o reconhecimento de que não é possível atingir-se o que efetivamente tenha se dado no mundo dos fatos com precisão matemática”. Entre autores mais modernos também Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (Curso de Direito Processual Penal).
[6] Aury Lopes Júnior. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional, vol. I, p. 549-561.
[7] Guilherme de Souza Nucci. O valor da confissão como meio de prova no processo penal, p.65.
[8] Eugênio Pacelli de Oliveira. Curso de Processo Penal, p. 285.
[9] Aury Lopes Júnior. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional, vol. I, p. 550.
[10] Aury Lopes Júnior. Op. cit., p. 551.
[11] Aury Lopes Júnior. Op. cit., p. 561.
Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Pós-graduado em Direito Penal pela Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP). Pós-graduado em Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário. Especialista em Justiça e Sistema Criminal pela Universidade de São Paulo (USP). Avaliador de revistas jurídicas. Professor universitário com docência em Direito Penal, Direito Processual e Penal Militar, e Direitos Humanos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALFERES, Eduardo Henrique. Verdade Surreal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 fev 2012, 07:52. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/27892/verdade-surreal. Acesso em: 22 nov 2024.
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