Professor Orientador: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós graduação da Unisal.
Ementa: O presente artigo visa analisar a recente divergência de decisões sobre a continuidade de crime entre estupro e atentado ao pudor, que tem rodeado os tribunais de justiça de todo o país; postar as posições dos tribunais estaduais; as conceituações dos doutrinadores, referentes aos tipos incriminadores e atos pertencentes ao crime.
Abstract: This article aims to analyze the recent divergence of decisions about the continuity between crime and rape incident exposure, which hás surrounded the coust thoughout the country; post the positions of the state courts; the concepts os sholars, concerning the types incriminating and acts pertaining to the crime.
Palavra-Chave: Lei nº 12.015/09; Estupro; atentado violento ao pudor; concurso material; continuidade delitiva.
Sumário: Introdução. 1. A modificação no crime de estupro causada pela Lei nº 12.015/09. 2. Conceito de conjunção carnal e atos libidinosos. 3. Bem jurídico tutelado pelo novo tipo penal, art. 213 (estupro). 4. Concurso material de crimes ou continuidade delitiva? Conclusão. Referências.
Introdução.
Em agosto de 2009 a Lei nº 12.015/09, modificou o Título VI do Código penal – “dos crimes contra a dignidade sexual” – modificando vários artigos, um dos quais foi a revogação do artigo 214 (atentado violento ao pudor) e alteração do texto do artigo 213, o qual passou a vigorar nos seguintes termos: “constranger alguém, mediante violência e grave ameaça, a conjunção carnal, ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos”. Mister se faz verificar também que com a modificação dos artigos, referentes à liberdade sexual das pessoas, a Lei nº 12.015/09 unificou os crimes de estupro e atentado violento ao pudor (antigos artigos 213 e 214) no artigo 213, ambos do Código Penal, não havendo, assim, “abolitio criminis”.
Diante da alteração acima citada diversos tribunais de todo o país passaram a decidir de modo divergente. Pois se discute, se a pratica de atos libidinosos e conjunção carnal, ambos descritos no mesmo tipo penal, configurariam dois tipos legais contidos em uma única descrição típica, ou seja, se as condutas do agressor são autônomas configurando concurso material de crimes ou se é um crime que aceita mais de uma modalidade de prática configurando-se crime continuado.
1. A modificação no crime de estupro causada pela Lei nº 12.015/09.
A Lei nº 12.015/09 modificou, no crime de estupro, o artigo 213, e revogou o art. 214, unificando, assim, a ambos. Causando, assim, uma alteração muito clara como se pode ver a seguir:
Diploma Antigo - Art. 213. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:
Pena – Reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
Parágrafo Único. (Revogado pela Lei nº 9.281, de 4-6-1996)
Diploma Antigo - Art. 214. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
Parágrafo Único. (Revogado pela Lei nº 9.281, de 4-6-1996)
Novo Diploma - Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.[1]
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos.
§ 2º Se da conduta resulta morte.
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
Art. 214. (Revogado pela Lei nº 12.015, de 9-8-2009)
Verifica-se que as penas, antes da entrada em vigor da Lei nº 12.015/09 eram as mesmas, ou seja, não houve “novatio legis in pejus”. Também, pode-se averiguar que desde tal época, o criminoso poderia responder por concurso material de crimes, pois se praticasse os dois crimes, mesmo sendo com a mesma pessoa, seria tipificado no artigo 69 (concurso material) do mesmo código. Todavia com essa modificação alguns tribunais passaram a entender que não se passa de crime continuado (art. 71, CP), havendo somente uma “novatio legis in mellius” no caso de concurso de crimes.
Outra modificação relevante é que, não mais somente a mulher poderá ser vítima de estupro, mas também, agora, o homem, pois para que a conduta do delinquente seja tipificada no art. 213, basta que esta vise satisfazer, mediante violência ou grave ameaça, o seu apetite sexual. Também passou a admitir, a nova lei, que a mulher seja sujeito ativo, pois se esta praticar conjunção carnal ou ato libidinoso com qualquer pessoa nas condições do artigo 213, CP, incidirá nas penas do estupro. Tanto o homem como a mulher, se praticar atos libidinosos com um vulnerável (menor de 14 anos, pessoa com enfermidade ou deficiência mental, que não tenha o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa não possa apresentar resistência) incorrerá não no artigo 213, mas no artigo 217-A, configurando, assim, estupro de vulnerável.
2. Conceito de conjunção carnal e ato libidinoso.
Para entender qual é a real diferença entre as condutas que o agressor pode praticar no crime de estupro, deve-se, aqui, conceituá-las.
Conjunção carnal de acordo com Alberto Jorge Testa Woelfert[2] “é a cópula pênis-vagina e tão somente esta. As outras cópulas não caracterizam conjunção carnal. Há necessidade de penetração”. Também no mesmo sentido entende Hungria [3].
Por conjunção carnal, em face do Código, entende-se a conjunção sexual, isto é, a cópula secundum naturam, o ajuntamento do órgão genital do homem com o da mulher, a intromissão do pênis na cavidade vaginal. Não se compreendem, portanto, na expressão legal, o coito anal e a fellatio in ore, pois o ânus e a boca não são órgãos genitais[4].
Já ato libidinoso é tudo aquilo que é diverso da cópula vaginal, é tudo o que satisfaça a vontade sexual por outros meios. “Ato sexual é todo aquele que se apresenta como desafogo (completo ou incompleto) à concupiscência[5]”. São exemplos atuais, de atos libidinosos, os seguintes atos: coito anal, fellatio (sexo oral; ato de chupar o órgão sexual masculino), coito intercrural (sexo interfemoral; colocação do pênis entre as pernas do outro, simulando o coito), coito perineal (colocação do pênis no períneo, ou seja, região entre o órgão sexual e o ânus. Na mulher é entre a vagina e o ânus, no homem, entre o saco escrotal e o ânus), cunnilingus (sexo oral no órgão sexual feminino; estimulação da genitália feminina com a língua e boca), anilingus (literalmente o intercurso da língua de alguém com o ânus de outrem; lamber ou beijar o ânus), heteromasturbação, esfregações torpes de um corpo em outro (mesmo sobre as vestes). Entram nesta modalidade também a contemplação ou visão lasciva (por exemplo, quando o agente surpreende mulher nua e a constrange a permanecer sem roupas, para que possa contemplá-la) e o abraço[6].
Nelson Hungria [7] conceitua, também, ato libidinoso do seguinte modo:
Ato libidinoso é todo aquele que se apresenta como desafogo (completo ou incompleto) à concupiscência. Como elemento constitutivo do atentado violento ao pudor, porém, não deve ter por fim a conjunção carnal (ato libidinoso por excelência), que, quando ilícita e obtida “vi aut minis”, constitui como já vimos o crime de estupro, mais severamente punido. Ora tende à satisfação do apetite sexual, representando um equivalente (fisiológico ou psicológico) ou sucedâneo do coito normal, ora traduz mera depravação moral, sem outro móvel que a indecência por amor à indecência, nada mais significando, como dizia Crisólito de Gusmão, que uma “solicitação autônoma do vício”.
Outra citação importante que Hungria faz é que, a libidinosidade não depende do conhecimento de malícia da vítima, pois um ato não deixará de ser considerado libidinoso, porque a vítima desconhece tal fato, do mesmo modo que um ato inocente não deixará de sê-lo porque a vítima o considerou lascívia, malicioso[8]. Ou seja, deve-se analisar a subjetividade da conduta, isto é, o dolo do agente, como por exemplo, os esbarrões e esfregões. Um exemplo clássico é a do indivíduo que acaba se esfregando em uma mulher dentro de um ônibus ou metrô superlotado. Não se devem generalizar os atos libidinosos, pois o indivíduo pode estar inocentemente espremido, pela quantidade de pessoas, causando assim o atrito. Também se deve entender que não configura o estupro se um indivíduo está se aproveitando da situação, para se esfregar em uma mulher, porque o Direito Penal deve respeitar o princípio da proporcionalidade da pena, não podendo julgar desproporcionalmente o autor, sendo assim, como o agente que está dentro de um ônibus cheio de pessoas empurrando de um lado para o outro, não configura a tipicidade porque não há o emprego de violência ou grave ameaça, portanto ficando configurado no art. 61 do Dec.-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais).
Concluindo, então, em relação a tais conceitos, conjunção carnal e ato libidinoso, a Lei nº 12.015/09, não inovou, permanecendo o mesmo.
3. Bem jurídico tutelado pelo crime de estupro.
Sobre o bem tutelado pelo tipo penal, a lei também não inovou, permanecendo a liberdade sexual das pessoas, consequentemente a dignidade da pessoa humana. “O estupro, atingindo a liberdade sexual, agride, simultaneamente, a dignidade do ser humano, que se vê humilhado com o ato sexual[9]”.
4. Concurso material de crimes ou continuidade delitiva?
Como visto acima, antes da junção dos artigos 213 e 214, o criminoso que praticasse a conjunção carnal, através de violência ou grave ameaça a uma mulher e logo em seguida praticasse o coito anal ou, ainda, coagisse a mesma a praticar sexo oral, estaria cometendo dois crimes, a saber, o estupro e atentado violento ao pudor, consequentemente incorrendo no artigo 69 da parte geral do código penal. Todavia com o advento da Lei nº 12.015/09, tipificando a conjunção carnal e o ato libidinoso em um mesmo tipo, gerou-se uma dúvida sobre qual modalidade o autor se enquadraria.
No Dec.-Lei nº 2.848 de 7-12-1940 (Código Penal), em seus artigos 69, 70 e 71 estão previstos:
Art. 69, caput. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.
Art. 70, caput. Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até a metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.
Art. 71, caput. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
Mister se faz, após esta leitura, diferenciar as espécies de concursos descritos acima. Concurso material (agente pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, através de duas ou mais condutas); Concurso formal (agente pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, através de uma única conduta) e Crime continuado (agente pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, através de duas ou mais condutas, unidos pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhanças).
A discussão que tem rodeado os tribunais de todo o país é sobre a caracterização da espécie de concurso que o agente incide, pois se for concurso material, o juiz deverá aplicar cumulativamente as penas; se for concurso formal, aplicar-se-á, se crimes diferentes, a pena cabível mais grave, se iguais, aplicar-se-á uma delas, em qualquer caso aumentado de um sexto a metade. Mas se, não se passar de um crime continuado será aplicado uma das penas, se crimes idênticos, ou a mais grave se diversas, aumentada, em qualquer caso de um sexto a dois terços.
Faz-se necessário saber em qual espécie de concurso o agente incide, quando pratica o estupro através de conjunção carnal e outros meios libidinosos, porque caso não seja concurso material, terá ocorrido um novatio legis in mellius, garantindo ao autor uma análise mais branda de seu crime.
Pelas conceituações feitas acima, referentes à conjunção carnal e atos libidinosos e as espécies de concursos, pode-se verificar, claramente, que quando o autor, mediante violência ou grave ameaça, pratica conjunção carnal e outro ato libidinoso pratica mais de uma conduta. Ou seja, a conjunção carnal é totalmente autônoma do ato libidinoso. Rogério Greco, apesar de desconsiderar tais princípios, diz que “o artigo 213 do CP, considera conjunção carnal como um ato libidinoso, ou seja, o agente aflora a sua libido através de sua conduta[10]”. Ele continua dizendo que esta prova se faz no final do caput do art. 213, quando o mesmo se refere a expressão outro ato libidinoso[11]. Todavia analisando a expressão do caput do art. 213, pode-se ver que, quando o agente pratica, por exemplo, cópula anal ou Fellatio in ore (sexo oral, ato de chupar o órgão sexual masculino) com a vítima, está praticando outro ato libidinoso, ou seja, um ato totalmente autônomo da conjunção carnal. Pois fica claro que o agente, quando pratica tais atos possui intenções e prazeres diferenciados.
Contradizendo, Rogério Greco preleciona:
“Hoje, após a referida modificação, nessa hipótese, a lei veio a beneficiar o agente, razão pela qual se, durante a prática violenta do ato sexual, o agente, além de penetração vaginal, vier a também fazer sexo anal com a vítima, os fatos deverão ser entendidos na mesma figura típica, devendo ser entendida a infração penal como de ação múltipla (tipo misto alternativo), aplicando-se somente a pena cominada no art. 213 do Código Penal, por uma única vez, afastando, dessa forma, o concurso de crimes”.[12]
Nesse sentido refere-se Guilherme de Souza Nucci:
“Se o agente constranger a vítima com ele a manter conjunção carnal e cópula anal comete um único delito de estupro, pois a figura típica passa a ser mista alternativa. Somente se cuidará de crime continuado se o agente cometer, novamente, em outro cenário, ainda que contra a mesma vítima, outro estupro. Naturalmente, deve o juiz ponderar, na fixação da pena, o número de atos sexuais violentos cometidos pelo agente contra vítima. No caso supramencionado merece pena superior ao mínimo aquele que obriga a pessoa ofendida a manter conjunção carnal e cópula anal.” [13]
Também no mesmo sentido, se manifestou o STF:
“A tese da absorção do atentado violento ao pudor pelo de estupro (previstos, respectivamente, nos arts. 213 e 214 do Código Penal, na redação anterior à Lei nº 12.015/2009) – sob o argumento de que o primeiro teria sido praticado como um meio para a consecução do segundo – está relacionado à conduta do paciente no momento dos delitos pelos quais ele foi condenado e demanda, por esse motivo, o reexame de fatos e provas, inviável no âmbito da via eleita. Embora o acórdão atacado esteja em harmonia com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cujo Plenário, em 18.06.2009, no julgamento do HC 86.238 (Rel. Min. Cezar Peluso e relator para o acórdão Min. Ricardo Lewandowiski), assentou a inadmissibilidade da continuidade delitiva entre estupro e o atentado violento ao pudor, por tratar-se de espécies diversas de crimes, destaco que, após esse julgamento, deu nova redação ao art. 213 do Código Penal, unindo os dois ilícitos acima. Com isso, desapareceu o óbice que impedia o reconhecimento da regra do crime continuado no caso. Em atenção ao direito constitucional à retroatividade da lei penal mais benéfica (CF, art. 5º, XL), seria o caso de admitir-se a continuidade delitiva pleiteada, porque presentes os seus requisitos (CP, art. 17), já que tanto a sentença, quando o acórdão do Tribunal de Justiça que a manteve evidenciam que os fatos atribuídos ao paciente foram praticados nas condições de tempo, lugar e maneira de execução. Ocorre que tal matéria, até então, não foi apreciada, razão por que o seu exame, diretamente pelo Supremo Tribunal Federal, constituiria supressão de instância. Por outro lado, nada impede a concessão de habeas corpus de ofício, para cenário jurídico trazido pela Lei nº 12.015/2009, devendo, para tanto, proceder à nova dosimetria da pena, afastando o concurso material e aplicando a regra do crime continuado (CP, art. 71), o que, aliais, encontra respaldo tanto na Súmula 611 do STF, quanto no precedente firmado no julgamento do HC 102.355 (Rel. Min. Ayres Britto, DJe 28/5/2010). Não conhecimento do Writ e concessão de habeas corpus de ofíco” (HC 96818/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª T., j. 10/8/2010).
Em sentido contrário e mais correto, Abrão Amisy Neto afirma:
“A alteração legislativa buscou reforçar a proteção do bem jurídico e não enfraquecê-lo; caso o legislador pretendesse criar um tipo de ação única ou misto alternativo não distinguiria ‘conjunção carnal’ de ‘outros atos libidinosos’, pois é notório que a primeira se insere no conceito do segundo, mais abrangente. Portanto, bastaria que tivesse redigido o tipo penal da seguinte maneira: ‘Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso’. Visível, portanto, que o legislador, ao continuar distinguindo a conjunção carnal dos ‘outros atos libidinosos’, não pretendeu impor única sanção em caso de condutas distintas[14]”.
Vicente Greco Filho adota duas posições:
“o tipo do art. 213 é daqueles que a alternatividade ou cumulatividade são igualmente possíveis e que precisam ser analisadas à luz dos princípios da especialidade, subsidiariedade e da consumação, incluindo-se neste o da progressão. Vemos, nas diversas violações do tipo, um delito único se uma conduta absorve a outra ou se é fase de execução da seguinte, igualmente violada. Se não for possível ver nas ações ou atos sucessivos ou simultâneos nexo causal, teremos, então delitos autônomos”.
Continua suas lições trazendo o seguinte exemplo:
“Se, durante o cativeiro, houve mais de uma vez a conjunção carnal pode estar caracterizado o crime continuado entre essas condutas; se, além da conjunção carnal, houve outro ato libidinoso, como os citados, coito anal, penetração de objetos etc., cada um desses caracterizará crime diferente cuja pena será cumulativa aplicada ao bloco formado pelas conjunções carnais. A situação em face do atual art. 213 é a mesma do que na vigência dos antigos 213 e 214, ou seja, a cumulação de crimes e penas se afere da mesma maneira, se entre eles há, ou não, relação de causalidade ou consequencialidade. Não é porque os tipos agora estão fundidos formalmente em um único artigo que a situação mudou. O que o estupro mediante conjunção carnal absorve é o ato libidinoso em progressão àquela e não o ato libidinoso autônomo e independente dela, como no exemplo referido”.[15]
Deve-se levar em consideração o que Abrão Amisy Neto asseverou. Deve-se também aplicar a lógica neste caso. Hoje, diante da grande quantidade de violações da liberdade sexual, através da conjunção carnal ou atos libidinosos, o legislador quis, e com clareza se vê isso, reforçar a proteção, pois manteve a expressão “outro ato libidinoso, configurando assim, condutas diferentes entre conjunção e outros atos libidinosos”.
Observando com mais diligência as conceituações de conjunção carnal e atos libidinosos pode-se verificar que, tais atos são totalmente autônomos, pois o agente não precisa forçar a vítima a praticar sexo oral, para poder chegar à prática da conjunção carnal, ou mesmo fazer do sexo anal um meio para chegar a sua finalidade, que seria a conjunção carnal. É claramente visível que a subjetividade é totalmente autônoma, pois o agente sente diferentes prazeres ao praticar diferentes atos libidinosos, lembrando que a conjunção carnal é considerada, também, um ato libidinoso. Também, pode-se averiguar que a cada ato libidinoso divergente, que o agente força a vítima a praticar, é uma nova fração de liberdade que vai sendo violada. É certo que todas estão dentro da liberdade sexual, mas analisando com mais profundidade, nota-se que são liberdades diferentes. Por exemplo, todo cidadão tem a liberdade de relacionar-se intimamente com o (a) seu (sua) parceiro (a) na rua, como exemplo beijar na boca, é um tipo de liberdade, todavia, a liberdade de praticar sexo oral, que consiste na mesma liberdade de relacionamento íntimo, é defesa sua prática na rua, por se tratar de uma liberdade mais aprofundada no relacionamento; por se tratar de atos sexuais. Pode-se perceber que são liberdades de níveis diferentes, estão dentro de uma liberdade maior, a saber, a liberdade sexual, mas possuem níveis diferentes. Do mesmo modo que a aplicação da pena deve respeitar o princípio da proporcionalidade do delito, as pessoas devem ser julgadas de acordo com os níveis de violações de suas condutas, mesmo que seja de uma só espécie de direito.
Nesta mesma posição o Ministro Paulo Brossard (Min. relator do STF, HC 71.252-5 SP de 21 de junho de 1994, p. 709) assevera:
“Segundo expressa disposição do art. 71 do Código Penal, os crimes da mesma espécie haverão de ser considerados praticados em continuidade desde que, resultantes de mais de uma ação, sejam cometidos em condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhante, de tal forma que os subsequentes possam ser havidos como simples desdobramento dos antecedentes, mera continuação da conduta criminosa anterior”.[16]
Decidiu o Superior Tribunal de Justiça concordando com a posição supra mencionada (STJ, HC 78667/SP. Relª. Minª. Laurita Vaz, 5ª T., DJe 02/8/2010):
“1. Antes da edição da Lei nº 12.015/2009 havia dois delitos autônomos, com penalidades igualmente independentes: o estupro e o atentado violento ao pudor. Com a vigência da referida lei, o art. 213 do Código Penal passa a ser um tipo misto cumulativo, uma vez que as condutas previstas no tipo tem, cada uma, ‘autonomia funcional e repondem a distintas espécies valorativas, com o que o delito se faz plural’ (JIMENEZ DE ASÚA, Luis. Tratado de derecho penal. Buenos Aires: Losada, 1963. t. III, p. 916).
2. Tendo as condutas um modo de execução distinto, com aumento qualitativo do tipo de injusto, não há a possibilidade de se reconhecer a continuidade delitiva entre a cópula vaginal e o ato libidinoso diverso da conjunção carnal, mesmo depois de o legislador tê-las inserido num só artigo de lei.
3. Se, durante o tempo em que a vítima esteve sob o poder do agente, ocorreu mais de uma conjunção carnal, caracteriza-se o crime continuado entre as condutas, porquanto estar-se-á diante de uma repetição quantitativa do mesmo injusto. Todavia, se, além da conjunção carnal, houve outro ato libidinoso, como o coito anal, por exemplo, cada um desses caracteriza crime diferente e a pena será cumulativamente aplicada à reprimenda relativa à conjunção carnal. “Ou seja, a nova redação do art. 213 do Código Penal absorve o ato libidinoso em progressão ao estupro – classificável como praeludia coiti – e não ato libidinoso autônomo, como o coito anal e o sexo oral”.
Fica claro que as posições contrárias à decisão do STJ, quando se referem à continuidade delitiva e, até mesmo a crime único, entre conjunção carnal e atos libidinosos, estão equivocadas, pois a intenção do agente, quando pratica o coito anal, não estabelece um meio para a realização da conjunção carnal, mas sim uma conduta com a finalidade de satisfazer sua libido de outra forma da conjunção carnal, caracterizando, assim, o concurso material de crimes, quando praticadas as duas condutas, mesmo que logo depois da primeira. Necessário é, também, reconhecer que aqueles atos libidinosos que caracterizam progressão ao estupro, ficam absorvidos por este. Como exemplo, o agente com a única finalidade de obter o coito vagínico, passa a mão na genitália ou nos seios da vitima, preparando-se para a conjunção carnal.
Conclusão
O novo diploma legal que tratou dos crimes contra a dignidade sexual não alterou em nada a aplicação da pena quando se trata de conjunção carnal e outros atos libidinosos. Do mesmo modo que os artigos antecedentes à Lei nº 12.015/09 implicavam no concurso material, quando havia conjunção carnal e outro ato libidinoso, assim, no novo tipo de estupro continua a aplicabilidade de tal princípio previsto no art. 69 do Código Penal, por se tratar de condutas autônomas entre si.
Do mesmo modo que as condutas são autônomas, os prazeres do agente o são, pois a sensação, tanto física, como psicológica são claramente diferentes.
Necessário também é observar que, pela junção do artigo 214 ao 213 do CP, gerou-se a possibilidade de um homem, por exemplo, só pelo fato de estar passando, mediante violência ou grave ameaça, o pênis ou as mãos em uma mulher, cometer estupro. Porém, como já foi dito, se as condutas praticadas são uma progressão para se chegar ao coito vagínico, e somente este, serão pelo tipo.
O novo artigo adota a continuidade delitiva quando, e somente quando, houver várias conjunções carnais ou cópulas-vaginais, no mesmo cativeiro e por certo lapso de tempo, de acordo com as condições previstas no art. 71, caput do Código Penal. Importante observar que será crime continuado somente se os atos praticados forem as cópulas-vaginais, caso haja, também cópula anal, cunnilingus, fellatio ou qualquer outro ato libidinoso será concurso material, devendo o juiz somar cumulativamente as penas. Quando se tratar, porém, de atos libidinosos em progressão ao estupro, como exemplo, o ato de chupar os seios, passar o órgão sexual nas pernas ou nas mãos da vítima, serão absorvidos pelo tipo, ficando somente o crime simples.
O que se deve fazer agora é aguardar a decisão de todas as turmas do Superior Tribunal de Justiça, pois a este pertence a responsabilidade de emitir a decisão final sobre a aplicação da pena nos crimes de estupro.
Referências
AMISY NETO, Abrão. Estupro de vulnerável e ação penal Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id-13404, acesso em 15/02/2011.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Especial. Vol. III, 8ª ed. Niterói: Impetus, 2011.
GRECO FILHO, Vicente. Uma interpretação de duvidosa dignidade (sobre a nova lei dos crimes contra a dignidade sexual). Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id-13530>, acesso em 15/02/2011.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. VIII. 5ª ed. Forense – RJ, 1981.
JESUS, Damásio E. de. Código Penal Anotado. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
SILVA JUNIOR, Edison Miguel. Concurso Material de Estupros na Lei nº 12.015/09. Disponível em www.jusuol.com.br, acesso em 13/02/2011, acesso em 13/02/2011.
WOELFERT, Alberto Testa. Introdução à medicina legal. 2ª ed. Canoas: Ulbra, 2003.
[1] Novo artigo, modificado pela Lei nº 12.015/09, a qual causou a junção dos dois artigos, 213 e 214 do CP. É de se observar também que não houve novatio legis in pejus nem novatio legis in mellius, pois a pena continua a mesma.
[2] WOELFERT, Alberto Testa. Introdução à medicina legal. 2º ed. Canoas: Ulbra, 2003, p. 94.
[3] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume VIII. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 105 – 106.
[4] Hungria acrescenta no rodapé do mesmo texto que se o agente usasse os dedos ou algum objeto, para a penetração na vagina da mulher não configuraria estupro, pois a pratica do estupro estava prevista com a conjunção carnal, ou seja, a introductio penis intra vas.
[5] HUNGRIA, Nelson. Op. Cit. p. 121.
[6] JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal Anotado. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 745. No mesmo sentido: JTACrimSP, 66:58; RT, 567:293; RJTJSP, 81:351.
[7] HUNGRIA, Nelson. Op. Cit., p. 122.
[8] HUNGRIA, Nelson. Op. Cit. p. 122.
[9] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal.. Parte Especial. Vol. III, 8ª ed. Impetus, 2011, p. 459.
[10] GRECO, Rogério. Op. Cit. p. 257.
[11] GRECO, Rogério. Op. Cit. p. 257.
[12] GRECO, Rogério. Op. cit. p. 483.
[13] NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual. Comentários à Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 18-19.
[14] Estupro de vulnerável e ação penal. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13404. Acesso em 15/02/2011.
[15] GRECO FILHO, Vicente. Uma interpretação de duvidosa dignidade (sobre a nova lei dos crimes contra a dignidade sexual). Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13530>. Acesso em 15/02/2011.
[16] Disponível em www.stf.jus.br, acesso em 15/02/2011.
Graduando em Direito pelo Centro Unisal de Lorena
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Andrew Giorgi dos. Concurso material de crimes no novo tipo penal de estupro - Lei nº 12.015/09 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 mar 2012, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/28098/concurso-material-de-crimes-no-novo-tipo-penal-de-estupro-lei-no-12-015-09. Acesso em: 22 nov 2024.
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