A Cracóvia, importante cidade polonesa, foi ocupada por tropas nazistas em 1939, há 73 anos. Imediatamente, eles iniciaram a perseguição aos judeus lá residentes. Em 1941, foi construído um gueto para abrigar aqueles que lá restavam, isto é, os que ainda não haviam partido para os campos de concentração - Auschwitz, por exemplo, ficava pouco mais de 60 quilômetros distante de Cracóvia. Como todos sabemos, em muitos casos, para, além do gueto, o que esperava os prisioneiros era a iminente execução.
Vinícius de Moraes, sensibilizado por um desenho de Carlos Scliar, abordou o tema do Holocausto em uma crônica intitulada Meninas sozinhas perdidas no mundo e dentro de si. No texto, tão belo quando repulsivo, o poeta nos oferece sua visão de uma das maiores tragédias humanas. São palavras fortes: Meninas perdidas, sozinhas no mundo e dentro de si: ó abstratas, mímicas e galglionares! - feixes de ossos armados para a fogueira de todas as esperanças, todos os votos, todos os desejos. (...) Aparentemente meninas: conservais no rosto a perene crispação de um sorriso. Mas não é sorriso, é magreza. Não vos foi dado lábios nem para sorrir, nem para beijar. Tendes a boca negra como uma cratera e vosso mau hálito suspira: amor!
Corta para nosso Brasil da atualidade. Para as acinzentadas metrópoles, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. Para muito distante dos horrores da Segunda Guerra. Mas, também, para dentro de corações que sangram tragédias humanas tão graves quanto àquelas experimentadas nos tempos dos guetos e dos campos de concentração nazistas.
Súbito, deparei-me com Vinícius de Moraes descrevendo com horrenda semelhança as moças e meninos entregues ao vício das drogas, à dependência do crack. Vi-me diante das macérrimas e sombrias meninas de Carlos Scliar, agora prisioneiras de uma nova atrocidade, numa guerra sem pátria, crença, classe social, idade, sexo ou etnia. Só vítimas. Em qualquer hora do dia ou da noite, basta circular para encontrarmos meninas perdidas, sozinhas no mundo e dentro de si...
Muitas vozes se insurgem denunciando o horror de um gueto chamado vício, no qual, tristemente, as pessoas entram por sua própria vontade. Depois, atrás de um muro de delírios erguido com pedras, seringas ou fumaça, passam a trabalhar e a viver em função daquilo que as aprisiona. Experimentam os atos mais torpes, aviltam-se, criminalizam-se, humilham-se. Sofrem e levam muitos ao sofrimento.
Já não há conforto, não há higiene, não há alimento ou sono. Tudo parece levar à morte. Campanhas publicitárias apelam para que estejamos afastados das pedras que rodeiam o gueto que chamarei de Crackóvia. Um lugar onde, ao entrar, nos perdemos, sozinhos no mundo e dentro de nós...
Porém, há que se ter um cuidado: nossa raiva, nossa indignação, nosso asco deve ser dirigido àqueles que produzem, traficam, lucram com a desgraça dos prisioneiros de Crackóvia - onde há homens e mulheres que ardem na fogueira de toda a esperança, como disse Vinícius. O dependente químico, por mais repugnante que seja sua aparência, por mais violentas que sejam suas atitudes, jamais se libertará sem nossa ajuda. Nas palavras do poeta, tem a boca negra como uma cratera. E o mau hálito suspira: amor!
Quero muito conseguir amar os viciados, prisioneiros de Crackóvia, na mesma medida em que odeio o traficante de entorpecentes. É superdifícil, mas conheço quem é capaz de fazê-lo. E admiro tanta dedicação e esforço em lutar pela liberdade alheia. Por enquanto, suplico a quem consome drogas “socialmente”: pare de financiar o Hitler dessa história.
Rubem Penz
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