O Projeto de Lei do Senado nº 216/2008, de autoria do Senador Lobão Filho (PMDB/MA), propõe alterar o art. 56 da Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, para estabelecer critérios de imputabilidade de índios, projeto esse que está em tramitação na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal.
Através da documentação informativa constante do endereço eletrônico do Senado[1], depreende-se a alteração legislativa pretendida, qual seja, a alteração do art. 56 da Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, para estabelecer critérios de imputabilidade de índios, nos seguintes termos:
Art.1 º O art. 56 da Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, o juiz deverá, ao aplicar a pena, considerar o grau de integração do índio, obedecendo também os seguintes critérios:
I- Os índios isolados, conforme o artigo 4º, inciso I, desta Lei, serão considerados inimputáveis.
II- Os índios em vias de integração e os integrados, conforme o artigo 4º, incisos II e III, desta Lei, serão considerados imputáveis e responderão de acordo com as leis penais vigentes no país.”
Art.2º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Passo a transcrever a breve justificativa apontada pelo autor do projeto para a referida alteração legislativa:
Antes do advento do novo Código Civil (Lei 10.406/2002) os índios eram considerados relativamente incapazes. Quanto à imputabilidade penal, que era interpretada à luz do artigo 26 do Código Penal e do artigo 4º do Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), predominava o entendimento no sentido da imputabilidade dos índios integrados, inimputabilidade dos isolados e da necessidade de exame pericial para aferição da responsabilidade penal dos índios em vias de integração.
O novo Código Civil, ao retirar os silvícolas do rol dos relativamente incapazes, determinou que estes teriam a sua capacidade regulada por legislação especial -Estatuto do Índio - que classifica os índios como sendo integrados, isolados ou em vias de integração. No entanto, vale ressaltar, que ao tratar da imputabilidade penal, o artigo 56 do referido estatuto não faz qualquer distinção quanto ao grau de integração dos índios, estabeleceu apenas que haverá atenuação necessária da pena, e que as penas de reclusão e de detenção deverão ser cumpridas em regime especial de semiliberdade, na sede da FUNAI mais próxima da habitação do condenado. A lei, portanto, não faculta, mas impõe ao magistrado a decisão de atenuar a pena a ser aplicada ao silvícola, independente de este ser ou não plenamente integrado.
Exemplo disso foi o voto do Ministro Eros Grau, do Supremo Tribunal Federal que, ao analisar habeas corpus 85198/MA, que deferiu o regime de semiliberdade previsto no Estatuto pela simples condição de se tratar de indígena. No caso em questão, o Ministério Publico Federal impetrou Habeas Corpus (em favor de índio acusado de tráfico de entorpecentes, associação para o tráfico e porte ilegal de arma) requerendo a realização de exame antropológico e psicológico para avaliação do grau de integração do silvícola na sociedade e a aplicação do regime de semiliberdade próximo a sua habitação. Com relação ao primeiro pedido, este foi dispensado tendo em vista o grau de escolaridade, fluência na língua portuguesa e o nível de liderança exercida na quadrilha. Quanto ao pedido de aplicação do regime de semiliberdade, este foi conferido unicamente por se tratar de indígena.
Na tentativa de evitar que episódios como estes voltem a ocorrer, a presente proposta visa alterar a redação do artigo 56 da Lei 6001/73 para definir o grau de imputabilidade dos silvícolas isolados, em vias de integração e integrados. Os isolados - aqueles que não mantêm qualquer contato com a civilização - seriam considerados inimputáveis. Por sua vez, os índios em vias de integração e os integrados, não fariam jus a benefício algum, respondendo, assim, de acordo com as leis vigentes no país.
Passemos a análise pretendida.
A nova disciplina constitucional referente aos índios introduziu modificações no regime tutelar do Estatuto do Índio, consoante se depreende da simples leitura dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal.
A sistemática vigente antes da Constituição Federal de 1988 considerava os índios pessoas relativamente incapazes (Código Civil de 1916[2]). O Estatuto do Índio (Lei nº 6001/73), por sua vez, estabeleceu, em seu art. 7º, que "os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional" ficariam sujeitos a um regime tutelar incumbido à União, que o exerceria através de órgão federal competente.
Vigorava à época do Estatuto do Índio o paradigma integracionista ou assimilacionista, como está evidenciado no art. 1º da Lei 6.001/73:
Art. 1º. Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.
A tutela da União teria a finalidade de incorporar os índios a uma cultura diversa, como condição para que adquirissem capacidade civil e a condição de cidadãos, deixando, portanto, de ser índios. Enquanto não ocorresse a integração, os indígenas permaneciam sob a tutela do Estado, verdadeira tutela de pessoas, a chamada tutela orfanológica ou tutela incapacidade.
A Constituição Federal de 1988 ampliou os direitos dos povos indígenas ao romper com o propósito de impor aos indígenas os valores da nossa sociedade, assegurando-lhes o direito de manter a sua identidade cultural enquanto povos etnicamente diferenciados, reconhecendo permanentemente sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e os direitos originários sobre as terras que ocupam. Enfim, a Constituição de 1988 garantiu aos índios o direito de serem índios e de não perderem essa sua identidade independentemente do grau de interação dos mesmos com a sociedade envolvente.
Constata-se, pois, que a Constituição não fala em tutela de pessoas, mas altera o modelo anteriormente existente para enfocar o papel do Estado na defesa dos direitos indígenas. Atualmente fala-se em paradigma preservacionista dos direitos indígenas.
Destaco que tal entendimento já foi exposto no texto “Sociedades Indígenas e a Ação de Governo" da Coleção de Documentos da Presidência da República, editado em 1996 pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República:
Os dispositivos atuais do Estatuto permanecem vigentes naquilo que não confrontem a Constituição. Por isso, sua leitura deve ser feita com a cautela de singularizar os aspectos que requerem adaptação ao novo texto constitucional. O aspecto mais importante é que a ótica da tutela de pessoas foi substituída pela da tutela de direitos[3].
A partir do reconhecimento constitucional do respeito à alteridade, à diversidade cultural e, em consequência, a abolição das práticas integracionistas, bem como do reconhecimento da capacidade civil dos índios e de suas comunidades, o que lhes confere o direito ao acesso de todas garantias constitucionais de forma autônoma, não há mais que se falar em tutela, já que não mais dependem de interposta pessoa ou órgão para exercerem os seus direitos e administrar os seus bens.
Toda essa preleção é necessária para firmar o posicionamento de que a classificação constante no art. 4º da Lei nº 6.001/73 – índios isolados, índios em vias de integração e índios integrados – não foi recepcionada pela constituição, não mais havendo que se falar em classificação indígena em relação ao grau de integração, de modo que o Estado não mais trabalha com o extinto instituto da “liberação do regime tutelar” (arts. 9º, 10 e 11 do Estatuto do Índio).
Nesse sentido, a decisão abaixo colacionada:
EMENTA: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS DECORRENTES DE OCUPAÇÃO PERPETRADA POR ÍNDIOS EM IMÓVEIS SITUADOS EM ÁREA SUPOSTAMENTE INDÍGENA. INEXISTÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DA FUNAI SOBRE OS FATOS OCORRIDOS. CAPACIDADE CIVIL E POSTULATÓRIA DOS SILVÍCOLAS RECONHECIDAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Ação indenizatória ajuizada contra a FUNAI pela proprietária de área de terras no município de Itaiópolis-SC, por ela utilizada para implantação de projetos de reflorestamento de vegetação exótica, com vistas ao recebimento de indenização pelos danos decorrentes da invasão dos imóveis de sua propriedade por indígenas, nos anos de 1998 e 2001. Não prospera a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido, porque o ordenamento jurídico brasileiro possibilita o manejo de ação indenizatória para se obter a reparação de danos morais e materiais causados por terceiros ou pela Administração Pública Direta ou Indireta. Com o advento da Constituição de 1988, migrou-se de um regime de tutela dos povos indígenas para um regime de proteção. Não mais compete ao Estado, através da FUNAI, responder pelos atos das populações autóctones e administrar-lhes os bens, tal como ocorria enquanto vigente o regime tutelar previsto no Código Civil de 1916 e no Estatuto do Índio (Lei 6001/73). A partir do reconhecimento da capacidade civil e postulatória dos silvícolas, em 1988, remanesce ao Estado o dever de proteção das comunidades indígenas e de seus bens (à semelhança do que ocorre com os idosos que, a despeito de serem dotados de capacidade civil, gozam de proteção especial do Poder Público). Desde o reconhecimento constitucional da diversidade cultural (arts. 215, § 10 e 216) e da capacidade civil e postulatória dos índios e de suas comunidades (art. 232 c/c art. 7° do CPC) - o que lhes confere o direito ao acesso a todas garantias constitucionais de forma autônoma -, não mais subsiste o regime tutelar a que os silvícolas estavam submetidos perante à FUNAI por força do disposto no artigo 6°, III e Parágrafo Único do Código Civil de 1916 e no artigo 7° do Estatuto do Índio, tampouco a classificação dos indígenas em "isolados", "em vias de integração" e "integrados", prevista no artigo 4° do Estatuto do Índio, porque tais dispositivos não foram recepcionados pela atual Constituição. Sendo os silvícolas pessoas dotadas de capacidade para todos os atos da vida civil, segundo a ordem constitucional vigente, não há que se falar em culpa administrativa da FUNAI e da União sobre os fatos que ensejaram a presente ação reparatória. Provimento do apelo da FUNAI, para o fim de reconhecer a ausência de responsabilidade do referido entes sobre os fatos que ensejaram a reparação material pretendida. (TRF4, AC 2001.72.01.004308-0, Quarta Turma, Relator Edgard Antônio Lippmann Júnior, D.E. 24/11/2008)
Dessa forma, entendemos pela impropriedade técnica da alteração legislativa proposta, ao reiterar a já bastante criticada classificação dos indígenas quanto ao grau de integração à comunhão nacional, a qual não foi recepcionada pela Magna Carta.
Esclarecida essa primeira questão, destaca-se que os indígenas são tema de matriz constitucional, sendo certo que a referência do constituinte a eles se deu com o desiderato inequívoco de favorecê-los, adotando o principio do respeito e preservação à organização sociocultural das comunidades indígenas, enfim, o direito à alteridade. Os índios são realidade política e cultural do país e a especial proteção que lhes é conferida é inegável reflexo da aplicação de um constitucionalismo fraternal ou solidário:
“Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural” (PET 3388/STF).
Em respeito a esse multiculturalismo e visão preservacionista do Estado, a norma atualmente prevista no art. 56 do Estatuto do Índio, trata de mecanismo de mitigação dos efeitos deletérios da sociedade envolvente sobre os aspectos étnico-culturais indígenas.
Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola.
Parágrafo único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado.
O caput do art. 56, em leitura compatível ao atual texto constitucional, preconiza que, na fixação da pena, o magistrado deverá levar em conta o grau de discernimento do indígena em relação aos padrões culturais da sociedade envolvente, e a capacidade de se autodeterminar de acordo com esse discernimento, atenuando a pena em função dessa característica.
Na prática, tal averiguação deveria ser feita através de perícia antropológica, de responsabilidade do juízo criminal, por profissional qualificado, em todo e qualquer caso envolvendo indígenas. A elaboração de laudo antropológico deveria ser imprescindível e decorre não apenas da interpretação dada ao texto constitucional, mas de disposição da Convenção nº 169 da OIT, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 143/02 e promulgado pelo Decreto Presidencial nº 5.051/04, in verbis:
ART. 9º
1. (...)
2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.
Entretanto, na prática, não é o que ocorre, havendo muitos magistrados que optam por qualificar o indígena como “plenamente integrado” através de outros indícios de prova, o que pode gerar equívocos em relação à compreensão dos fatos e costumes na visão indígena e da comunidade a qual pertence, com reflexos inegáveis na individualização da pena. Melhor seria exigir expressamente em lei o exame antropológico.
Quanto ao teor do parágrafo único, o mesmo prevê que “as penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado”.
Tal preceito constitui direito subjetivo do réu[4] e, a constitucionalidade da norma decorre diretamente do permissivo constitucional de respeito aos indígenas, seus usos, costumes tradições, devendo o Estado buscar a preservação desses valores.
Portanto, o regime especial de semiliberdade, a ser cumprido no órgão federal de assistência aos índios mais próximo da habitação do condenado, consubstancia essa visão preservacionista, conferindo ao indígena a possibilidade de cumprimento de pena junto a seus pares, ou seja, junto a uma comunidade que possui um entendimento de si e do mundo diferente do restante da sociedade.
Assevere-se que a própria Lei de Execução Penal determina, em seu art. 5º, que os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal.
Lembre-se que, nos termos do §1º do art. 82 da Lei de Execuções Penais, a mulher e o maior de sessenta anos, separadamente, serão recolhidos a estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal. Ainda, nos termos do art. 84, o preso provisório ficará separado do condenado por sentença transitada em julgado; o preso primário cumprirá pena em seção distinta daquela reservada para os reincidentes; o preso que, ao tempo do fato, era funcionário da Administração da Justiça Criminal ficará em dependência separada.
Portanto, existe discriminação no modelo prisional brasileiro, fundada na existência de um legítimo fator discriminatório, com vistas a garantir o direito fundamental à individualização da pena, seja esse fator por motivo de sexo, idade, nível de escolaridade, violência do crime cometido, primariedade, entre outros.
Dessa forma, há, no caso do indígena, um fator discriminador, decorrente de sua origem, a qual possui características distintas das da sociedade envolvente, seja qual for o seu grau de “aculturação”, razão pela qual o seu regime prisional deve ser diferenciado.
A prisão especial do indígena não se dá em função da incapacidade do índio, mas, em proteção ao seus usos, costumes e tradições, que são vilipendiados em contato com os demais indivíduos nos estabelecimentos prisionais.
As normas do art. 56 do Estatuto do Índio estabelecem forma de tratamento justo entre integrantes de sociedades culturalmente diferentes; preservam e dão eficácia ao direito à diferença, garantem a sobrevivência física e cultural povos indígenas, evitando a perda da identidade étnica e cultural.
Ressalte-se ainda que a legislação vigente determina a aplicação desse regime especial de semiliberdade, se o mesmo for possível, ou seja, se houver viabilidade para sua implementação, de modo que é comum o Judiciário requerer à FUNAI que ateste a viabilidade de receber o indígena. Nesse sentido:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PEDIDO DE EXTENSÃO. HOMICÍDIO QUALIFICADO E TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO. INDÍGENA. POSSIBILIDADE DE CUMPRIR A CUSTÓDIA EM ESTABELECIMENTO DA FUNAI. ART. 56, PARÁG. ÚNICO DA LEI 6.001/73 (ESTATUTO DO ÍNDIO). VERIFICADA A IDENTIDADE A JUSTIFICAR A EXTENSÃO DO PEDIDO NOS TERMOS DO ART. 580 DO CPP. PARECER DO MPF PELO DEFERIMENTO DA EXTENSÃO. PEDIDO DE EXTENSÃO DEFERIDO PARA, CASO A FUNAI ATESTE A VIABILIDADE EM RECEBER O REQUERENTE, POSSIBILITAR AO MESMO O CUMPRIMENTO DA SUA CUSTÓDIA CAUTELAR NA UNIDADE ADMINISTRATIVA MAIS PRÓXIMA DE SUA HABITAÇÃO.
1. O requerente objetiva que lhe seja estendida a ordem concedida neste HC ao corréu RINALDO FEITOZA VIEIRA, que possibilitou ao mesmo o cumprimento de sua custódia cautelar na unidade administrativa da FUNAI mais próxima de sua habitação.
2. No caso, resta evidenciada a identidade de situação processual a justificar a extensão da ordem nos termos do art. 580 do CPP, uma vez que o requerente, da mesma forma que o paciente, pertence à comunidade indígena e está preso preventivamente em presídio comum, por suposta prática de crime cometido em coautoria com o paciente.
3. O MPF manifestou-se pelo deferimento do pedido.
4. Pedido de extensão deferido para, caso a FUNAI ateste a viabilidade em receber o requerente, possibilitar ao mesmo o cumprimento da sua custódia cautelar na unidade administrativa mais próxima de sua habitação.
(PExt no HC 124.622/PE, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 03/12/2009, DJe 14/12/2009)
Está claro que a alteração legislativa proposta não leva em consideração as vicissitudes da natureza étnica indígena e seus reflexos, assim como olvida em perceber que o sistema prisional brasileiro é discriminatório, não no sentido pejorativo, mas ante o imperativo constitucional de se garantir a individualização da pena.
Outrossim, como está bem exposto, embora seja direito subjetivo do réu a aplicação desse regime, ela está sujeita, ainda, ao exame de viabilidade (“se possível”). Desse modo, não importa o local de cumprimento de pena, mas a efetiva certeza de que a pena será cumprida (não haverá impunidade), e que o cumprimento da pena cumpra seu papel de ressocialização do condenado.
O Projeto de Lei do Senado Federal partiu de um único caso concreto, o citado HC nº 85198/MA, no qual houve a concessão do regime especial de semiliberdade pela “simples condição de se tratar de indígena”.
Em que pese o casuísmo do Projeto de Lei, devemos ter ciência de que a criminalidade brasileira cresce ante a certeza ou quase certeza de impunidade. Verifica-se, facilmente, no caso concreto, que não houve impunidade; pelo contrário, a concessão do habeas corpus foi concedida unicamente para a aplicação do regime especial de semiliberdade, ou seja, o acusado continuou em regime de privação de liberdade.
No mais, apenas a título de argumentação, ainda que se admitisse a diferenciação dos indígenas quanto ao grau de integração, seria ilegítimo e inconstitucional os índios integrados e os índios “em vias de integração” estarem sujeitos, da mesma forma, ao disposto no inciso II do art. 56, nos termos do Projeto de Lei.
Com efeito, enquanto os índios ditos integrados teriam pleno discernimento dos atos criminosos por eles praticados dentro do contexto da sociedade envolvente, tal discernimento não se encontra presente aos índios “em vias de integração”, os quais ainda não compreendem os usos e costumes dessa mesma sociedade envolvente, de modo que a eles também deve ser aplicado pena e regime diferenciados, já que ainda se pautam pelos valores culturais que lhes são próprios.
Por fim, o art. 56 do Estatuto do Índio, além de possuir assento constitucional, tem fundamento de validade nas disposições da citada Convenção sobre os Povos Indígenas e Tribais – Convenção 169 da OIT.
A Convenção 169 da OIT define política geral para tratamento dos povos indígenas, obrigando os governos a assumirem a responsabilidade de desenvolver ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade. Em seus arts. 9º e 10, a Convenção 169 da OIT preconiza:
“Art. 9º
1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros.
2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.
Art. 10
1. Quando sanções penais sejam impostas pela legislação geral a membros dos povos mencionados, deverão ser levadas em conta as suas características econômicas, sociais e culturais.
2. Dever-se-á dar preferência a tipos de punição outros que o encarceramento.”
Os direitos estabelecidos na legislação indigenista brasileira não podem ser contemplados apenas aos índios que vivem em aldeias e que tiveram ou têm pouco ou nenhum contato com a cultura da sociedade não indígena envolvente. Urge que sejam assegurados aos índios influenciados pela cultura da sociedade envolvente os direitos previstos na legislação indigenista, desde que essas pessoas se reconheçam e sejam reconhecidos pela comunidade indígena como índios, sendo certo que o grau de discernimento acerca do ilícito será utilizado para a dosimetria da pena, consoante já determinado no caput do Estatuto do Índio.
Ante o exposto, conclui-se pela completa impropriedade técnica, material (conteúdo) e evidente retrocesso da alteração legislativa proposta pelo Projeto de Lei do Senado nº 216/2008, já que a atual redação do art. 56 do Estatuto do Índio estabelece forma de tratamento justo entre integrantes de sociedades culturalmente diferentes: preserva e confere eficácia ao direito à diferença, garante a sobrevivência física e cultural dos índios e evita a perda da identidade étnica e cultural, enfim, efetiva o direito dos índios em ser diferente dos integrantes da sociedade envolvente e o direito de serem tratados como tal.
[1] http://www6.senado.gov.br/mate-pdf/13340.pdf
[2] Art. 6º São incapazes relativamente a certos atos (art. 147, nº I), ou à maneira de os exercer: (Redação dada pela Lei nº 4.121, de 1962).
(...)
III - Os silvícolas. (Redação dada pela Lei nº 4.121, de 1962).
[3] Disponível em http://www.dc.mre.gov.br/imagens-e-textos/revista6-mat10.pdf.
[4] Conforme HC 55792/BA, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 29/06/2006, DJ 21/08/2006, p. 267; PExt no HC 124.622/PE, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 03/12/2009, DJe 14/12/2009 e HC 85.198-3/MA Re. Min. Eros Grau.
Procurador Federal e Coordenador de Assuntos Contenciosos da Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI. Ex-Procurador do Estado da Paraíba. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Lívio Coêlho. Análise sobre o Projeto de Lei do Senado Nº 216/2008 que estabelece critérios de imputabilidade penal indígena. retrocesso? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jun 2012, 09:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29548/analise-sobre-o-projeto-de-lei-do-senado-no-216-2008-que-estabelece-criterios-de-imputabilidade-penal-indigena-retrocesso. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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