RESUMO: O objetivo geral deste artigo é abordar a construção teórica da denominada Imputação Objetiva e as possíveis contribuições que essa teoria pode e deve trazer para a tutela penal de bens e interesses transindividuais, em especial o Meio Ambiente. O surgimento de um Direito Penal “Ecológico”, sobretudo no que se refere à responsabilização penal das pessoas jurídicas deve ser compreendida como uma importante construção teórica cujos reflexos, no Brasil, podem ser percebidos, claramente, no bojo da CF/88 e da fecunda produção legislativa que lhe sucedeu nestas últimas décadas. Note-se, porém, que, para que possamos adotar e tornar efetivo esse novo paradigma legislativo, faz-se necessário, obviamente, um novo modo de ver e interpretar o fenômeno criminal. Isto porque as teorias clássicas da estrutura jurídica do crime, sobretudo no que se refere ao nexo de causalidade material e a efetiva imputação do resultado ao suposto agente delituoso afiguram-se, conforme buscaremos demonstrar, inadequadas à correta compreensão e aplicação de normas que se voltam à proteção de bens e interesses penais ambientais. Para tanto, serão analisados alguns dos aspectos gerais da teoria da imputação objetiva. Em seguida, buscaremos relacionar alguns dos principais problemas que ainda enfrentamos em sede de interpretação e aplicação de normas penais ambientais e de que forma cremos a construção teórica da imputação objetiva se revela aliado de fundamental importância nessa empreitada.
Palavras-Chave: Imputação Objetiva. Hermenêutica Jurídica. Crimes Ambientais. Lei 9.605/98. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica.
1. INTRODUÇÃO
Se, por um lado, o surgimento de um Direito Penal Ambiental, sobretudo no que se refere à responsabilização penal das pessoas jurídicas pode ser compreendido como importante construção teórica, e cujos reflexos, no Brasil, podemos perceber, claramente, no bojo da CF/88 e da fecunda produção legislativa que lhe sucedeu nestas últimas décadas.
Por outro, para que possamos adotar e tornar efetivo esse novo paradigma ecológico, faz-se necessário, obviamente, um novo modo de ver e interpretar o fenômeno criminal.
Isto porque as teorias clássicas da estrutura jurídica do crime, sobretudo no que se refere ao nexo de causalidade material e à imputação do resultado ao suposto agente delituoso a título de dolo ou culpa afiguram-se, em muitos casos, conforme buscaremos demonstrar, inadequadas à correta compreensão e aplicação de normas que se voltam à proteção de bens e interesses penais ambientais.
Em contrapartida, a substituição do dogma causal material por um nexo causal normativo, sobretudo a partir das construções teóricas do princípio do risco preconizado por Claus Roxin (ROXIN, 1986 apud GRECO, 2002, p. 261) se revelam bastante valiosas nesse sentido.
Da mesma forma, cremos que a Imputação Objetiva possui interessantes reflexos no que se refere ao conflito (aparente) entre normas penais ambientais e normas penais comuns, assim como no concurso de agentes.
Para tanto, serão analisados alguns dos aspectos gerais da teoria da imputação objetiva, tal como defendida por seus maiores expoentes: Claus Roxin e Gunther Jacobs. Em seguida, traremos à baila alguns dos principais problemas que ainda enfrentamos em sede de interpretação e aplicação de normas penais ambientais e de que forma, cremos, a imputação objetiva pode e deve se revelar em aliado de fundamental importância nessa empreitada.
O assunto é palpitante e deveras fecundo.
Tendo em vista, entretanto, a própria complexidade da matéria, o que buscaremos, aqui, é simplesmente trazer à baila uma panorâmica sobre o assunto, conforme a seguir.
2. A TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA
2.1 AS LIMITAÇÔES DO DOGMA CAUSAL MATERIAL
É sabido que, sob uma perspectiva finalista, o tipo penal complexo é composto por: a) tipo penal objetivo (conduta[1], resultado[2] e nexo causal[3]); e b) tipo penal subjetivo (dolo ou culpa).
Em outras palavras para que possamos falar em fato típico, faz-se necessário que o agente tenha praticado uma conduta causadora de um resultado previsto no preceito primário da norma penal incriminadora (elemento objetivo) e que, ao ter agido, tenha atuado com dolo ou culpa (elemento subjetivo).
Ocorre, entretanto, que nem sempre é fácil o estabelecimento do nexo causal entre a conduta praticada e o resultado obtido.
Isto porque a causalidade material, ao adotar a teoria da equivalência dos antecedentes de Von Buri[4] e aplicar o método de eliminação hipotética de Thyrén[5], esbarra em diversos obstáculos, dentre os quais podemos destacar os seguintes:
a) casos em que o resultado permite uma larga extensão do linhame causal até fatos muito anteriores, o chamado regressus ad infinitum[6];
b) casos em que, ainda que a conduta fosse suprimida da linha de desdobramento fático, o resultado continuaria a ocorrer da mesma forma e, às vezes, até mesmo momento[7];
b) casos em que a conduta do agente apenas adianta um resultado que viria a ocorrer de qualquer forma[8]; e
c) casos em que haja coexistência de causas independentes agindo no mesmo instante, sendo cada uma delas, per si, incapaz de produzir o resultado[9].
Por óbvio, todas essas imperfeições não passaram despercebidas e a doutrina, há muito, se socorre de diversas teorias com vistas à superação desses obstáculos, sobretudo aquelas que buscam limitar o alcance do regressus ad infinitum como a teoria do corretivo da culpabilidade[10], e as teorias da relevância típica[11] e da adequação social[12].
Somos, entretanto, da mesma opinião de Damásio E. de Jesus (2000, p. 15), para quem essas teorias jamais forneceram respostas razoavelmente convincentes, muito pelo contrário: apontam para a patente ineficácia do dogma causal material na explicação de um sem número de fenômenos criminais com os quais nos deparamos diuturnamente.
É nesse contexto que surge a chamada Teoria da Imputação Objetiva, cujo objetivo primordial é, justamente, substituir a causalidade material e corrigir essas diversas deficiências, conforme veremos a seguir.
2.2 A TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA: NOÇÕES GERAIS
No tópico anterior, vimos que a causalidade material, baseada numa concepção meramente mecanicista de causa e efeito não atendia aos interesses do Direito Penal.
Isto porque, se, sob o ponto de vista prático, esse modelo teórico, já há muito, apresentava diversas anomalias[13], também sob um ponto de vista jusfilosófico, notadamente a par dos princípios norteadores da moderna Política Criminal, não poderíamos simplesmente nos limitar à análise do nexo causal sob uma perspectiva científico-naturalista: far-se-ia necessário perquirir se, efetivamente, o resultado poderia ser atribuído ao sujeito “sob o prisma de uma justa punição” (GALVÃO, 2000, p.38).
Nesse sentido:
“[...] a questão jurídica fundamental não consiste em averiguar se determinadas circunstâncias se dão, mas em estabelecer os critérios em relação aos quais queremos imputar a uma pessoa determinados resultados. A alteração de perspectiva que aqui se leva a cabo, da causalidade para a imputação, faz com que o centro de gravidade se desloque, já em sede de teoria da ação, da esfera ontológica para a normativa: segundo esta, a questão de saber se é possível imputar a um homem um resultado como obra sua, depende, desde o início, dos critérios de avaliação a que submetemos os dados empíricos” (ROXIN apud GALVÂO, 2000, p. 38).
Não basta, portanto, que o resultado tenha sido produzido pelo agente, sob o ponto de vista físico (relação de causa/efeito), para que possamos afirmar, categoricamente, pela existência de nexo causal.
Ao lado da observação dessa relação de causalidade puramente material, faz-se necessária a análise de outra relação causal, de natureza normativa, a fim de que possamos responder aos seguintes questionamentos:
1º - A conduta do agente criou ou incrementou um risco juridicamente relevante ao bem jurídico protegido pelo tipo penal incriminador?
2º - O resultado produzido pelo agente violou efetivamente o bem jurídico protegido pela norma?
Perceba-se que a análise, aqui, busca aferir se o resultado previsto na parte objetiva do tipo penal pode ou não ser imputada ao agente, antes mesmo de qualquer valoração cerca de seus elementos subjetivos (dolo/culpa).
Isto porque:
“[...] a tarefa primária da imputação ao tipo objetivo é fornecer as circunstâncias que fazem de uma causação (como o limite máximo da possível imputação) uma ação típica, ou seja, que transformam por ex. a causação de uma morte em um homicídio; se tal ação de matar também deve ser imputada ao tipo subjetivo, considerando-se dolosa, isto será examinado mais adiante” (ROXIN, 2002, p. 308).
Este é o ponto de partida para a teorização contemporânea sobre a imputação objetiva[14], a qual surge, justamente, com a finalidade de corrigir as deficiências apresentadas pela causalidade material e a respectiva teoria da equivalência dos antecedentes e que se apóia na idéia de que o resultado só poderá ser imputado ao agente que realizou uma conduta geradora de um perigo (ou “risco”) juridicamente reprovado pela norma incriminadora.
Nesse sentido, leciona o Prof. Dr. Carlos Roberto Bacila (2009, p. 43):
“[...] a teoria da imputação objetiva possibilita a resolução de inúmeros casos penais de maneira sistemática” e “procura resolver a enorme lacuna gerada pela teoria da causalidade adotada pelo Brasil e pela maioria dos códigos penais de sistema similar ao do Direito brasileiro” (BACILA, 2009, p. 43).
Segundo Damásio E. de Jesus (2000, XVIII - XVIX), a adoção da teoria da imputação objetiva importa verdadeira revolução no terreno da tipicidade penal, ao conduzir o aplicador do Direito Penal a uma revisão de diversos conceitos, com destaque para os seguintes pontos: a) as normas penais passam a ser examinadas, num primeiro plano, a luz do princípio da ofensividade, de ordem constitucional; b) a imputação objetiva se volta à análise do resultado normativo (e não o naturalístico) e, por isso, a referida teoria é aplicável a todo e qualquer tipo de crime (doloso/culposo, comissivo/omissivo, consumado/tentado, formal / resultado etc.); c) concede maior relevância ao papel da vítima; d) diversas hipóteses, anteriormente tratadas em sede de ilicitude, passam a ser elidentes da própria tipicidade.
É um tema de grande repercussão e de suma importância, tanto que:
“[...] na Alemanha, os estudantes de graduação têm a matéria no seu ensino curricular. O tema é ainda bastante discutido em Portugal, Espanha e Itália, entre outros países europeus, e na América Latina muitos professores já estão se dedicando ao assunto, a ponto de poder-se concordar com segurança com a afirmação de Bern Schünemmann no sentido de que é o tema da dogmática mais discutido nos últimos anos” (BACILA, 2009, p. 43).
Feitas estas considerações preliminares, cremos, entretanto, fazer-se necessário salientar a existência de uma segmentação teórica da imputação objetiva em duas principais correntes doutrinárias capitaneadas, respectivamente, por Claus Roxin e Günter Jakobs, cada qual com peculiaridades e características próprias.
Destarte, antes de adentramos, propriamente, o tema proposto, quanto às possíveis contribuições da Teoria da Imputação Objetiva à Tutela Ambiental Penal, faremos, a seguir, um breve apanhado de ambas as correntes doutrinárias.
2.3 A IMPUTAÇÃO OBJETIVA DE CLAUS ROXIN
O esquema estrutural da imputação objetiva de Claus Roxin se traduz em quatro vertentes: a) a diminuição do risco; b) a criação de um risco jurídico relevante; c) a teoria do incremento do risco e; d) a esfera de proteção da norma (ou alcance do tipo).
Pelo critério da diminuição do risco, não haverá que se falar em imputação objetiva caso a conduta do agente interfira no curso causal de tal maneira que ele diminua uma situação de perigo pré-existente para a vítima.[15]
A imputação pelo critério da criação de um risco jurídico relevante exige que o agente: a) crie o risco através de sua conduta; b) o risco criado não seja permitido; c) o risco seja relevante.
Assim, quando o sujeito promove ou facilita alguém a realizar uma conduta que contenha um risco juridicamente permitido, implícito ou insignificante (v.g, o agente, com vistas à percepção de herança, adquire uma passagem de avião para seu tio, na esperança de que aeronave caia e ele venha a falecer), o problema penal é resolvido no plano da atipicidade[16] (JESUS, 2000, p. 72-73).
Por seu turno, o critério do incremento do risco estabelece que haverá imputação objetiva quando a conduta do agente aumentar um risco pré-existente ou ultrapassar os limites do risco juridicamente tolerado.
Sobre o assunto, convém trazer à baila os seguintes ensinamentos de Fernando Galvão (2000, p. 51):
“O incremento do risco somente poderá ser avaliado ex post, ou seja, observando-se o fato já ocorrido. Nessa avaliação do aumento da situação de risco, sempre será necessária a consideração de todas as circunstâncias do fato que se tornem conhecidas [...] O exame das questões práticas não é nada fácil e também implica a utilização de critérios estatísticos de comparação entre a conduta real e a hipotética. Polêmica é a questão sobre qual deve ser a decisão quando não se possa comprovar se a conduta proibida criou um perigo que extrapola os limites do risco permitido. A maioria dos autores sustenta que nesses casos o princípio do in dúbio pro reo exclui a imputação. A solução é por demais simplista. Nesse sentido, Roxin lembra o caso do médico que institui tratamento completamente alheio às normas da medicina tradicional e produz a morte do paciente. Não se pode tolerar tal comportamento, ainda que eventualmente não seja possível comprovar o aumento dos riscos para a produção do resultado. Os deveres da lex artis são impostos justamente visando diminuir o risco de produção de resultados lesivos e o não-atendimento de tais regras deve acarretar imputação. Aceitar o contrário significaria renunciar às exigências de cuidado nas situações em que ele é mais exigível”.
Por fim, a última vertente apresentada por Roxin com relação à imputação objetiva diz respeito à esfera de proteção da norma (ou do alcance do tipo) pela qual a relevância jurídica que autoriza a imputação objetiva deve, sempre, ser apurada, levando-se em consideração o sentido protetivo de cada tipo penal incriminador.
Nesse passo, não haverá imputação objetiva quando o resultado estiver situado fora do âmbito de proteção da norma penal incriminadora, ou seja, é a finalidade da norma incriminadora que fixa os lindes à responsabilização do agente[17].
2.4 A IMPUTAÇÃO OBJETIVA DE GÜNTHER JAKOBS
Günther Jakobs, sob o fundamento de que comportamento social do homem é vinculado ao exercício de papéis[18], estabeleceu quatro instituições jurídico-penais sobre as quais assenta a sua teoria da imputação objetiva: a) o risco permitido; b) o princípio de confiança; c) a proibição de regresso; e d) a competência ou capacidade da vítima (JAKOBS, 2000, p.31).
O risco permitido parte da premissa que os contatos sociais e o complexo de atividades da vida moderna nos submetem, regularmente, a uma certa dose de risco, tais como dirigir veículos, submetermo-nos a uma cirurgia, caminharmos pela rua ou praticarmos esportes (GALVAO, 2000, p. 57).
Destarte:
"Qualquer contato social implica um risco, inclusive quando todos os intervenientes atuam de boa-fé: por meio de um aperto de mãos pode transmitir-se, apesar de todas as precauções, uma infecção; no tráfego viário pode produzir-se um acidente que, ao menos enquanto exista tráfego, seja inevitável; um alimento que alguém serviu pode estar em mau estado sem que tenha sido possível dar-se conta disso; uma anestesia medicamente indicada, e aplicada conforme a lex artis, pode provocar uma lesão; uma criança pode sofrer um acidente a caminho da escola, ainda que se estabeleçam medidas de segurança adequadas" (JAKOBS, 2000, p. 34).
Essa constatação nos remete à conclusão de que, se por um lado, a completa ausência de riscos se afigura impossível, por outro, estes riscos inerentes à configuração social devem ser tolerados como riscos permitidos e considerados para fins de não-imputação objetiva (JAKOBS, 2000, p. 35).
Isto porque:
“A permissão para a realização da atividade perigosa fundamenta-se no reconhecimento de que a proibição traria conseqüência desvaliosas para a sociedade [...] a existência de riscos não é evitável, mas pode ser administrada, de modo a estabelecer os marcos segundo os quais certo risco é tolerado em favor de determinados proveitos sociais” (DE LA CUESTA AGUADO apud GALVÃO, 2000, p. 58).
Por seu turno, o princípio da confiança fundamenta-se na tese de que o comportamento social do homem está vinculado ao exercício de papéis e que o risco de certos comportamentos reside justamente na estrita observância ou não, por cada um desses indivíduos, dos deveres e obrigações relacionados a esses papéis[19].
Quem, por exemplo, dirige um automóvel em via pública em estrita observância às regras de circulação, cumpre seu “papel” social no trânsito e tem direito de confiar que os demais motoristas e pedestres também cumprirão.
“Assim, se estamos dirigindo e vemos a distancia um cidadão aguardando um momento oportuno para cruzar a rua, confiamos que ele não vai tentar a travessia na frente do veículo em movimento” (JESUS, 2000, p. 46).
O princípio da confiança afasta a tipicidade justamente porque seria difícil, senão impossível, que cada indivíduo fosse obrigado a vigiar o comportamento social dos demais, aferindo, caso a caso, se estariam efetivamente cumprindo os seus “papéis”.
Seu campo de atuação, além das situações relacionadas ao tráfego de veículos automotores e ao trabalho em equipe de profissionais, também se revela de fundamental importância na solução de problemas penais envolvendo a realização de conduta dolosa ou culposa por parte de terceiros[20].
Note-se que o valor atribuído por Jakobs aos papéis exercidos pelas pessoas na sociedade também se revela evidente na vertente da proibição de regresso.
Isto porque, a proibição de regresso se fundamenta, em linhas gerais, na afirmação de que não pode ser considerada típica a conduta daquele que atua de acordo com os limites de seu papel social, mesmo que venha a contribuir para o sucesso da empreitada delituosa realizada pelo agente.
Para ilustrar, trazemos o seguinte exemplo:
“A esposa de um detento vai à padaria e pede uma "baguete" (um tipo de pão). Suponha-se que haja de duas maneiras distintas: 1ª) confidencia ao padeiro que vai esconder um punhal no pão e entregar a seu marido na próxima visita, com o qual ele fugirá da cadeia mediante ameaça ao carcereiro; 2ª) solicita ao padeiro que confeccione um "baguete" especial, maior do que dos costumeiramente vendidos, esclarecendo que é para abrigar um punhal de grandes proporções, com o qual seu marido irá fugir da prisão. Indaga-se: O detento, usando a arma, foge da cadeia mediante ameaça de morte ao carcereiro. O padeiro responde pela fuga criminosa? Na primeira hipótese, não; na segunda, sim, de acordo com os princípios da proibição de regresso (JESUS, 2000, pp. 51-52).
Sob o título de competência ou capacidade da vítima, Jakobs relaciona duas situações que merecem destaque: o consentimento do ofendido e as chamadas ações a próprio risco, definidas conforme a seguir:
“No que se refere ao consentimento, nada há que se explicar aqui; ao menos em seus traços fundamentais o consentimento se conhece em todas as partes, e também goza de aceitação em seus pontos essenciais. Quanto à infração de deveres de autoproteção, constitui esta o reverso do que no se refere o autor é a violação não intencional do papel, em especial de uma violação culposa. Igualmente, o que se passa com o autor é que não pode comportar-se de modo arriscado distanciando-se, simultaneamente, de maneira válida das conseqüências de seu comportamento, tampouco a vítima pode assumir um contrato social arriscado sem aceitar como fruto de seu comportamento as conseqüências que conforme um prognóstico objetivo são previsíveis. Quem por si mesmo se atira na água ou salta num lugar onde deve contar com a presença da água não pode imputar aos demais haver-se molhado” (JAKOBS, 2000, p. 30).
Prossegue o referido autor relacionando alguns exemplos de situações em que a própria vítima deve atribuir-se, ao menos em parte, as conseqüências negativas resultantes de sua conduta, como no caso daquele que pega carona com motorista evidentemente embriagado, de quem participa em disputas de boxe e, portanto, não teria direito a não resultar lesionado, ou aquele que mantém relações sexuais com usuários de drogas injetáveis ou que se prostitui, o qual agiria com próprio risco, no que se refere ao contágio por HIV[21] (JAKOBS, 2000, p. 30).
3. IMPUTAÇÃO OBJETIVA APLICADA AOS DELITOS AMBIENTAIS
3.1 Aspectos gerais do Direito Ambiental Penal[22]
3.1.1 Introdução ao Direito Ambiental Penal
O surgimento de um “Direito Ambiental Penal” suscita, ainda hoje, perplexidade e críticas.
Para muitos, as sanções por comportamentos lesivos ao meio ambiente podem e devem ser restringir aos demais ramos do Direito, notadamente o administrativo e civil.
Ocorre, entretanto, que a proteção ambiental nas esferas civil e administrativa, nem sempre é eficaz, pois:
“[...] das multas aplicadas pelo IBAMA, em 1997, somente seis por cento foram recolhidas aos cofres públicos e, na esfera civil, nem todas as ações civis públicas têm sido coroadas de êxito, especialmente pela demora no seu trâmite. Por isso, a necessidade da tutela penal, tendo-se em vista seu efeito intimidativo e educativo, não apenas repressivo. Trata-se de uma prevenção geral e especial” (SIRVINSKAS, 2004, p. 15).
Outro ponto, flagrantemente olvidado pela doutrina criminal clássica é que, hoje, nos deparamos diuturnamente com aquilo que já há algum tempo denominamos de “criminalidade ambiental organizada[23]”.
Com freqüência, aliás, os noticiários e a imprensa especializada têm nos informado de operações realizadas pelos órgãos repressivos estatais, notadamente o Departamento de Polícia Federal, e que apontam para a existência de grupos organizados, não raro infiltrados no seio estatal, que se dedicam às mais diversas atividades delituosas contra o meio ambiente.[24]
Note-se que:
“Admitindo o modelo de empresas criminosas assumidos pelas organizações criminosas nas últimas décadas, torna-se indissociável o raciocínio no sentido de que qualquer forma de combate eficiente deve passar necessariamente por um plano de atuação que envolva “prevenção” e “combate”. Devem ser estabelecidas metas de prevenção através de medidas legislativas no âmbito penal e administrativo; e de combate por meio de medidas penais, processuais penais e administrativas, com termos de urgência, para curto prazo, por exemplo, com criação de forças-tarefa, e de médio e longo prazo, através da criação de estruturas mais sólidas e eficientes para os órgãos que necessariamente devem ser envolvidos em responsabilidade de tal nível – incluindo-se pelo menos Ministérios Públicos, Polícias e Secretarias da Fazenda e dos Estados” (MENDRONI, 2009, p. 21-22). [25]
Fica claro, portanto, que as esferas administrativa e cível, por si sós, não são capazes de oferecer uma resposta à altura desse tipo de fenômeno criminal, sobretudo porque não dispõem dos meios que a legislação sabiamente atribuiu Polícia Judiciária: interceptações, quebras de sigilo bancário e fiscal, infiltração policial e entrega controlada, medidas de descapitalização (seqüestro, arresto e hipoteca legal), buscas e apreensões e prisões processuais.
Daí se extrai a conclusão de que Direito Ambiental Penal reveste-se em importante instrumento de tutela do patrimônio natural e, por conseguinte, da própria sadia qualidade de vida, saúde e segurança da população[26].
Felizmente, hoje, a tutela penal na área ambiental está inegavelmente autorizada por norma constitucional com destaque para o caput e § 3º do art. 225, da CF/88, in verbis:
“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações [...] § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.
3.1.2 Características Gerais do Direito Ambiental Penal
A doutrina apresenta uma gama variada de características que integram o chamado Direito Penal Ecológico, sob os mais diferentes enfoques.
Cremos, entretanto, que duas, das diversas características apresentadas, merecem destaque, conforme veremos.
3.1.2.1 O Direito Ambiental Penal como Direito Penal Secundário
Ao passo que o Direito Penal Clássico tutela os tradicionais bens e direitos individuais, como a vida, o patrimônio, a liberdade e a integridade física, outros bens, que se caracterizam como de caráter transindividual, são protegidos pelo denominado Direito Penal Secundário.
Ou seja: a realização do homem em sociedade se dá sob dois enfoques distintos: como indivíduo, acarretando ao Estado a obrigação de protegê-lo diretamente, e neste sentido poderemos dizer que a proteção se dá em nível primário, e em outro plano, a realização social do homem, enquanto membro inserido na sociedade, de onde surge a denominada proteção secundária, com seu caráter protetivo.
Este característica, conforme veremos oportunamente, reveste-se de suma importancia na solução do conflito aparente entre normas penais ambientais e normas “penais” comuns.[27]
3.1.2.2 O Direito Penal Ecológico como direito reparador
A lei de crimes ambientais (Lei 9.605/98) trouxe para o ordenamento pátrio uma forte preocupação com a reparação dos danos causados ao meio ambiente.
É o que se verifica de diversos dispositivos do referido diploma, notadamente os que tratam da prévia exigência de composição do dano para admissibilidade da transação penal (art. 27) e da necessidade de comprovação (por meio de laudo) da efetiva reparação do dano para que seja declarada, efetivamente, extinta a punibilidade do agente nos casos de sursis (art. 28).
Os arts. 19 e 20, por seu turno, estabelecem que a perícia, sempre que possível, fixará o montante do prejuízo causado, ao passo que a sentença deverá fixar o valor mínimo à reparação dos danos sofridos não apenas pelo ofendido, mas, também, ao meio ambiente.
Destarte, o Direito Penal Ecológico não se restringe ao tradicional caráter preventivo e repressivo, possuindo, ainda e, sobretudo, um viés reparador.
Por óbvio, há quem critique esses dispositivos ao argumento de que a tarefa reparadora incumbe ao Direito Civil.
Neste ponto, cremos indefectíveis os ensinamentos de Eládio Lecey (2009), a seguir transcritos:
“Deve o Direito Penal ser também reparador, tarefa tradicionalmente destinada ao Direito Civil? Pensamos que sim, pois, esta é a tendência do Direito Penal da atualidade, que veio mais acentuadamente ao ordenamento jurídico brasileiro com a Lei dos Juizados Especiais, a Lei 9.099/95, surgida em razão da falência da pena de prisão, que não vem cumprindo com seu papel de ressocializar o delinqüente. Também na busca de imprimir um processo de resultados, visando célere solução de conflitos. Daí, ter sido introduzida a composição do dano, resolvendo de logo as ofensas aos bens juridicamente tutelados, sem necessidade de se aguardar a instauração de ação penal, instrução, sentença e a execução no juízo civil [...] De se observar ainda que o próprio Código Penal, desde 1º de abril de 1996, trouxe a reparação do dano como condição do sursis especial (artigo 78, parágrafo 2º) e que a reparação do dano há muito constitui atenuante tendo sido transformada em causa de diminuição da pena nos crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa [...]. Em matéria de meio ambiente, considerando-se a danosidade coletiva e macrossocial das condutas que atentam contra o dito bem – difuso por excelência – ainda mais necessária se revela a busca de reparação do dano. E o Direito Penal, como instrumento de pressão, em razão de sua coercibilidade garantida pelas sanções criminais, apresenta útil à efetivação da reparação. Assim, deve o Direito Ambiental Penal, embora precipuamente preventivo e punitivo, ser também reparador, possibilitando pronta garantia ao bem jurídico tutelado por suas normas”.
3.1.3 Normas de Direito Ambiental Penal
Antes de 1998 apenas de forma indireta é que a legislação penal dispensava tutela a algumas modalidades de infração ecológica (ALVARENGA, 2005, p. 79).
Apenas com a edição da Lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais – LCA) é que se buscou atualizar e sistematizar as normas penais de proteção ambiental, dividindo-as em cinco grupos: crimes contra a fauna, crimes contra a flora, poluição e outros crimes ambientais, crimes contra o ordenamento urbano e patrimônio cultural e crimes contra a administração ambiental.
Note-se, entretanto, que, ainda hoje, diversos outros dispositivos legais trazem normas que se prestam à tutela penal do meio ambiente, mesmo que de forma indireta.
Apenas para exemplificar, podemos citar, dentre outros, os seguintes diplomas normativos: Lei 4.771/65 - “Código Florestal”[28]; Lei 6.453/77, que prevê responsabilidade criminal por atos relacionados à atividade nuclear; Lei 6.766/79, que prevê os ilícitos relacionados ao parcelamento do solo para fins urbanos; Lei 7.643/87, que tipifica as condutas de molestamento e caça de cetáceos em águas jurisdicionais brasileiras; Lei 7.802/89 - “Lei de Agrotóxicos”; e a Lei 11.105/05, denominada “Lei de Biossegurança”.
Some-se, ainda, que o próprio Código Penal Brasileiro prevê diversas infrações penais relacionadas (indiretamente) ao meio ambiente (v.g, artigos 163, 164, 250, 251, 252, 253, 254, 256, 270 e 271), assim como a Lei das Contravenções Penais, por força das normas insculpidas nos seus artigos 31, 37, 38, 42 e 64.
Com relação à interpretação e aplicação de normas de Direito Penal Ecológico, situação que cremos ainda gera bastante confusão na doutrina e jurisprudência é a que se refere ao possível conflito destas com as normas previstas na legislação penal comum, em especial os tipos penais previstos no Código Penal.
Isto porque, numa análise perfunctória dos tipos penais previstos na Lei 9.605/98, já é possível verificar que boa parte das condutas ali incriminadas encontram equivalentes na legislação penal comum.
Assim, por exemplo, as condutas de adquirir ou ter em depósito animais silvestres ou produtos florestais sem comprovação de origem lícita (previstas, respectivamente, nos arts. 29 e 46 da Lei 9.605/98), se amoldam, ao menos em tese, também ao tipo penal de receptação, previsto no art. 180 do Código Penal.
Por seu turno, o tráfico internacional de animais silvestres (previsto também no art. 29 da Lei 9.605/98) e a conduta do funcionário público que faz afirmação falsa ou enganosa em processo de licenciamento ambiental (art. 66 da Lei 9.605/98), ainda que a lei ambiental jamais tivesse sido editada, se amoldariam perfeitamente aos tipos penais já anteriormente previstos nos art. 334 e 299 do CPB, respectivamente.
Enfim, com raríssimas exceções, se analisarmos bem os tipos previstos na LCA, dificilmente encontraremos alguma conduta incriminadora que já não pudesse ser enquadrada, anteriormente, nos ilícitos já consagrados no Código Penal de 1942.[29]
Sobre este assunto, o que se verifica na grande maioria das doutrinas específicas e, por conseguinte, de numerosas decisões judiciais em matéria ambiental, é uma tendência ao reconhecimento de um conflito aparente de normas (antinomia), solucionada através do critério da especialidade (lex especialis derogat generali): aplica-se, portanto, a norma da Lei 9.605/98, desconsiderando-se eventuais tipos penais previstos na legislação penal comum.
Parece-nos, entretanto, que este raciocínio incorre em graves equívocos, conforme veremos a seguir.
O primeiro deles é justamente olvidar a relevância da teoria do bem jurídico, não apenas para o Direito Penal, mas também para a moderna Política Criminal[30].
Em outras palavras: ao se analisar a tipicidade de uma conduta, deve o intérprete, antes de qualquer outra medida, se assegurar sobre qual o bem jurídico tutelado pela norma em apreço.
A uma, porque, sob o ponto de vista político-criminal, a conduta incriminada deve resultar em efetiva lesão a um bem imprescindível à qualificada existência do individuo em sociedade (princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos) ou, pelo menos, criar um risco proibido relevante em face desse mesmo bem (princípio da ofensividade/lesividade) (BIANCHINI, 2010)[31].
A duas, porque os princípios mais comezinhos da hermenêutica e interpretação da norma penal (mesmo a “clássica”) lecionam que quando uma única conduta praticada pelo agente delituoso atinge concomitantemente dois bens jurídicos distintos, tutelados por normas distintas, não há que se falar em conflito de normas (ainda que aparente). A hipótese nesses casos é de legítimo concurso formal de crimes, submetido a regras próprias de interpretação e aplicação da lei penal, nos termos do art. 70 do Código Penal.
Este, aliás, tem sido o posicionamento adotado pelo Ministério Público do Estado da Bahia em seu Manual Ambiental Penal:
“O meio ambiente ecologicamente equilibrado é o bem jurídico protegido pela Lei Ambiental Penal. Assim, esse ato normativo não tem por fundamento a proteção do patrimônio público ou particular que, incidentalmente, também é afetado pela conduta lesiva ao meio ambiente. Se a ação criminosa, além de caracterizar delito ambiental, também configura outro crime (como furto ou dano, por exemplo), caberá a responsabilização do agente por ambas as espécies delitivas (o crime ambiental e o que atinge outro bem-jurídico), aplicando-se as regras relativas ao concurso de crimes” (MP-BA, 2010, p.23).
Ainda nesse sentido, já existe reiterada jurisprudência quanto ao concurso formal entre o ilícito de extração mineral ilegal (art. 55 da Lei 9.605/98) e o delito de usurpação de bem da União (art. 2º da Lei 8.176/91).[32]
Idêntico raciocínio se aplica, pelos mesmos fundamentos, aos ilícitos previstos nos arts. 29[33] e 30 da Lei 9.605/98 e o ilícito de contrabando previsto no art. 334 do CPB, devendo ser aplicadas, simultaneamente, ambas as figuras criminais, segundo a regra do concurso formal (art. 70, caput, do Código Penal).
Isto porque, neste caso os delitos também protegem bens jurídicos diversos (o delito de contrabando visa resguardar a administração pública). Ademais, o elemento normativo dos tipos penais incriminadores também são bastante diversos: enquanto no contrabando o que falta é a regularidade perante as autoridades aduaneiras, no delito contra o ambiente a irregularidade provém da ausência de autorização da autoridade ambiental, neste caso o IBAMA.
Pensar diversamente geraria uma situação no mínimo inusitada, vez que o art. 29 da Lei 9.606/98 tutela apenas a fauna silvestre nativa (ou seja: os espécimes que tem todo ou parte de seu ciclo de vida em nosso território nacional), conforme a seguir.
O agente criminoso estrangeiro que trouxesse ilegalmente para o Brasil uma peça de marfim ou qualquer outro produto ou subproduto da fauna silvestre exótica cujo comércio internacional seja vedado ou limitado nos termos da CITES[34], responderia pelo ilícito previsto no art. 334 do CPB, cujas penas variam de 1 a 4 anos (aplicada em dobro se mediante transporte aéreo).
Por seu turno, se esse mesmo agente criminoso, ao retornar ao seu país de origem, optasse por levar para o exterior, uma pele de onça-pintada (panthera onca), espécie também prevista no anexo II da CITES, porém da nossa própria fauna silvestre, responderia apenas pelo ilícito do art. 29 da Lei 9.605/98, crime considerado de menor potencial ofensivo, cuja pena varia de 6 meses a 1 ano.
Parece-nos, portanto, bastante evidente, que deverá o intérprete optar pela correta aplicação do concurso formal nas situações em que, além da constatação da prática de um crime ecológico, seja verificada também a violação de outros bens jurídicos tutelados por normas diversas[35].
Não é apenas a interpretação mais consentânea com os princípios gerais que norteiam a moderna Política Criminal e o Direito Penal, mas, sobretudo, aquela que confere maior efetividade ao Estado de Direito Ambiental e, por conseguinte, às normas constitucionais que tutelam o meio ambiente.
3.1.4 Responsabilização “Penal” da Pessoa Jurídica
O tema da responsabilidade penal da pessoa jurídica é dos mais complexos e polêmicos da atualidade e poderia ensejar, por si só, todo um artigo a ele dedicado.
Este, entretanto, é um dos principais temas em que cremos a Teoria da Imputação Objetiva possa se revelar útil à tutela penal ambiental, razão pela qual, antes de realizar tal análise, gostaríamos, ainda que linhas bastante perfunctórias, trazer à baila alguns pontos que reputamos de sobeja importância sobre este assunto.
A Lei n.º 9.605/1998, em seu art. 3º, estabeleceu, claramente, que a pessoa jurídica responderá criminalmente quando a prática de algum crime decorrer de decisão do representante legal, contratual ou do órgão colegiado; ou, então, for para o interesse ou em prol da entidade[36].
Entretanto, para autores do escol de René Ariel Dotti (1992, p. 199-200), José Henrique Pierangelli (1992, p. 56), Luiz Regis Prado (1993, p. 15), Fernando Fragoso (1992, p. 113) e José Antônio Paganella Boschi (2002), dentre outros, a responsabilidade penal da pessoa jurídica é incompatível com o ordenamento jurídico vigente.[37]
Em sentido diametralmente oposto, pela possibilidade de responsabilização criminal da pessoa jurídica, estão autores do escol de Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas (2005, p. 14), Toshio Mukai (1992, p. 79), Paulo Affonso Leme Machado (2005, p. 35) e Ada Pelegrini Grinover (1993, p. 254). [38]
O fundamento desta corrente escuda-se, não apenas no texto da CF/88, mas, sobretudo, na teoria da realidade de Otto Gierke, cujos principais argumentos podem ser assim resumidos: a) a pessoa jurídica possui capacidade de atuação (societas delinquere potest); b) a carta magna foi clara e “ao usar o conectivo ‘e’ entre as palavras penais e administrativas” desejou penalizar as pessoas jurídicas das duas formas, cumulativamente” (FREITAS, 2005, p. 68); e c) a responsabilidade penal das pessoas jurídicas não pode ser entendida à luz da responsabilidade penal tradicional, estritamente fundamentada na culpa, individual e subjetiva, mas, sim, compreendida como uma “responsabilidade social”, possuidora de princípios e dogmática próprios, mais amplos e específicos (ARAÚJO JUNIOR, 1995, p. 75).
Por seu turno, o Prof. Luiz Flávio Gomes (2009) defende uma terceira corrente, sob o argumento de que as diversas condutas tipificadas na Lei 9.605/98, quando imputáveis à pessoa jurídica[39], configuram, na verdade, um ilícito "sui generis", cuja sanção, embora não possua caráter penal (stricto sensu), será aplicada por um juiz criminal, com observância das garantias constitucionais e processuais penais.
Neste sentido:
“O princípio da responsabilidade ’pessoal’ nos conduz (...) a cuidar do tema da responsabilidade ‘penal’ da pessoa jurídica (...) com muita cautela. Para nós, na verdade, a única interpretação possível desse texto legal consiste em admitir que a responsabilidade da pessoa jurídica não é "penal" (no sentido estrito da palavra). Aliás, segundo nossa visão, essa responsabilidade faz parte de um tipo novo de Direito, que estamos chamando de sancionador (ou judicial sancionador)” (GOMES, 2009).
Esta, aliás, sob o enfoque da dogmática penal clássica[40], nos parece ser a melhor posição, pois à luz da CF/88 e do sistema penal infraconstitucional, notadamente os diversos princípios que norteiam a clássica atividade punitiva do Estado, dentre eles o da culpabilidade, da intervenção mínima e da pessoalidade, a única interpretação válida possível do §3º do artigo 225 da CF/88 (e, por conseguinte, do art. 3º da Lei 9.605/1998) seria, justamente, no sentido de que a responsabilidade da pessoa jurídica ali insculpida não é propriamente “penal”, tampouco administrativa, por não se amoldar, com perfeição a nenhuma dessas duas.
Por fim, cremos importante ressaltar que, uma vez reconhecida a possibilidade de responsabilização da pessoa jurídica, no âmbito do denominado Direito judicial sancionador, esta responsabilização não se circunscreve às pessoas jurídicas de Direito Privado, sendo plenamente aplicável, presentes os requisitos do art. 3º da Lei 9.605/98, também às pessoas de Direito Público.
Pensar diversamente seria negar vigência aos princípios insculpidos no art. 23 da CF/88: “[...] proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas”; além de “preservar as florestas, a fauna e a flora” e, principalmente, ao seu artigo 225, quando estabelece, in verbis: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
3.2 Contribuições da Teoria da Imputação Objetiva para a Tutela Penal Ambiental
Em meados da década de 80, o sociólogo alemão Ulrich Beck, em sua obra “Sociedade do Risco”, fez uma interessante análise sobre a evolução da sociedade humana. A ideia primordial de Beck residiu em demonstrar que, durante toda evolução da humanidade, os riscos sempre existiram.
Entretanto, muito embora durante toda a sua existência a sociedade humana tenha se submetido a riscos, provenientes das mais diferentes fontes (disputas e guerras, epidemias, forças da natureza etc.), os avanços tecnológicos obtidos pela sociedade contemporânea durante o século XX (transportes, energia elétrica e nucelar, engenharia genética, indústrias química, farmacêutica e de armamentos, internet etc.), acarretaram no surgimento de riscos que, hoje, extrapolam as realidades individuais e até mesmo as fronteiras territoriais e temporais.
Tais avanços trazem consigo o fardo constante da assunção de riscos à sociedade: em prol do desenvolvimento humano, acabamos por aceitar naturalmente esses riscos como pressupostos da própria sociedade contemporânea.
Nos dizeres de José Rubens Morato Leite e Patrick de Araújo Ayala “a proliferação de ameaças imprevisíveis, invisíveis, para as quais os instrumentos de controle falham e são incapazes de prevê-las” é uma característica tipicamente associada a essa nova fase da sociedade, denominada por Beck “sociedade de risco[41]” (2004, p. 12).
E mais:
“Nesse novo modelo de organização social, o perfil dos riscos distancia-se dos riscos profissionais e empresariais do Estado nacional, identificando-se agora, agora ameaças globais, supranacionais, sujeitas a uma nova dinâmica política e social. Os macroperigos dessa nova sociedade caracterizam-se: a) por não encontrarem limitações espaciais ou temporais; b) por não se submeterem a regras de causalidade e aos sistemas de responsabilidade; e, sobretudo, c) por não ser possível a sua compensação, em face do potencial de irreversibilidade de seus efeitos, que anula as formas de reparação pecuniária” (BECK apud MORATO, 2004, p. 18).
Por óbvio, estes novos riscos, tal como apresentados por Beck, se revelam como um forte desafio ao Direito Penal.
Afinal, conforme já havíamos nos referido alhures, as teorias clássicas da estrutura jurídica do crime, sobretudo no que se refere ao nexo de causalidade material e à imputação do resultado ao suposto agente delituoso a título de dolo ou culpa afiguram-se, em muitos casos, inadequadas à correta compreensão e aplicação de normas que se voltam à proteção de bens e interesses transindividuais, principais atingidos por esses riscos emergentes da sociedade pós-moderna.
A pergunta que se apresenta é justamente se estará o Direito Penal metodologicamente preparado para fornecer respostas condizentes a essa nova realidade, protegendo as presentes e futuras gerações, sem, contudo, abrir mão de toda a gama de direitos e garantias fundamentais adquiridos ao longo destes últimos séculos.
Nessa esteira, cremos, sinceramente, que a Teoria da Imputação Objetiva pode e deve ocupar papel de destaque no Direito Penal da sociedade de risco, em especial na tutela penal do Meio Ambiente, solucionando alguns dos problemas enfrentados nessa seara e estabelecendo os pilares necessários à necessária modernização e aprimoramento desse ramo jurídico, senão vejamos.
Primeiramente, gostaríamos de trazer à baila aquele que julgamos ser justamente a principal contribuição da imputação objetiva ao direito penal ambiental: neutralizar (ou pelo menos mitigar) o subjetivismo finalista no processo de imputação do delito e o dogma causal material, fornecendo assim, as bases teóricas gerais necessárias a estruturação de uma teoria do delito adequada à responsabilização penal da pessoa jurídica.
Isto porque, apesar de já consagrada no texto constitucional e na Lei 9.605/98, bem como amplamente reconhecida por diversos tribunais pátrios, inclusive pelo próprio STJ[42], a estrutura jurídica do tipo penal clássico e as respectivas regras de imputação não se adéquam claramente à declaração da responsabilidade penal de uma pessoa jurídica.
Sobre o assunto, transcrevemos as constatações do Prof. Dr. Guilherme Guimarães Feliciano (2005, p. 231):
“Afeiçoado à responsabilidade penal de pessoas naturais, o juiz criminal poderá enfrentar dificuldades sensíveis ao buscar, na atividade da pessoa jurídica, a ‘conditio sine qua non’ ou a causa adequada do resultado socialmente reprovável. Também haverá perplexidade quando se deparar com a aparente imposição legal de se identificar, na conduta, o substrato subjetivo da conduta (dolo ou culpa). De tudo quanto se disse, infere-se que algum grau de subjetividade e/ou pessoalidade pode ser determinado pelo juízo (pela vontade reflexa coletiva e pelo padrão médio da cultura corporativa local, p. ex.), mas não o bastante para que o julgador possa se pronunciar, com segurança científica, uma condenação criminal”.
E prossegue referido autor:
“Se o fizesse a seu talante, poderia se perder no arbítrio da própria criatividade, à mingua de qualquer respaldo dogmático, vez que os conceitos como os do art. 18 do CP foram cunhados para a pessoa natural. Como então, equacionar o paradoxo da imputação e equacionar a dimensão subjetiva da infração penal? Por intermédio da teoria da imputação objetiva” *grifos nossos (FELICIANO, 2005, pp. 231-232).
Nessa esteira de raciocínio, as linhas gerais estabelecidas tanto por Claus Roxin como Günther Jakobs, em suas vertentes teóricas da imputação objetiva, apresentam um perfeito ajustamento à delinqüência ambiental praticada pelas pessoas jurídicas.
De fato, parece-nos claro que a pessoa jurídica desempenha e cria expectativas de desempenhar determinados papéis sociais, podendo não só desempenhar suas atividades em estrita observância aos riscos permitidos, mas também, criar, incrementar e diminuir riscos proibidos e relevantes que lhe poderão ser objetivamente imputados a partir desses padrões metodológicos e dogmáticos previamente definidos.
Nesse sentido:
“Assim, para a imputação do resultado desvalido à pessoa jurídica [...], avultam em utilidade os critérios de imputação objetiva já examinados, que conduzem à aferição de três pressupostos fundamentais: 1. a criação de um risco pela atividade material realizada (comissiva) ou não realizada (omissiva); 2. o desvalor jurídico do risco (= risco não permitido); 3. o resultado típico em que se plasmou o risco juridicamente relevante (realização do risco – somente em delitos materiais e de perigo concreto). Jamais haverá, obviamente, nexo de imputação subjetiva, até porque seria irrelevante subsumir a atividade ao tipo culposo ou doloso, se a principal variação ditada por esse processo subsuntivo – relacionada à quantidade de pena privativa de liberdade – não se aplica à pessoa jurídica. Enfim, o grau de culpabilidade será medido caso a caso, conforme os aspectos já expendidos (culpabilidade reflexa, responsabilidade social da empresa, cultura corporativa e culpabilidade reativa), propiciando a individualização das penas e atendendo ao primado da personalidade. Estará declarada e mensurada, ao final, a responsabilidade penal da pessoa jurídica, sem qualquer eiva legal ou constitucional” (FELICIANO, 2005, p. 233).
Feitas essas considerações que julgávamos de suma importância, passaremos, a seguir, a relacionar os critérios de não-imputação já anteriormente apresentados e suas possíveis contribuições para o direito ambiental penal.
Os critérios da criação de risco juridicamente proibido e relevante e da esfera de proteção da norma (Roxin) revelam-se de extrema valia na interpretação de normas penais ambientais, tanto para afastar a tipicidade da conduta do agente naquelas situações em que, apesar de estarem reunidos todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo penal clássico, não houve efetiva lesão ao bem ou interesse juridicamente protegido[43], como para a solução de situações relacionadas ao conflito aparente de normas e concurso de crimes e de agentes[44].
Com relação ao conflito aparente entre normas penais ambientais e comuns, reiteramos todo o já mencionado em tópico anterior quanto à necessária avaliação do intérprete quanto à possível aplicação do concurso formal nas situações em que, além da constatação da prática de um crime ecológico, seja verificada também a violação de outros bens jurídicos tutelados por normas diversas.[45]
Ressaltamos, entretanto, a necessidade de que, no caso concreto, o intérprete se valha dos critérios da criação do risco e da esfera de proteção da norma (Roxin) a fim de verificar a efetiva possibilidade de imputação (objetiva) de cada um dos respectivos tipos penais ao agente.
Isto porque, é possível que uma conduta, apesar de configurar, em tese, a prática de dois ilícitos penais em concurso formal, na prática, não tenha tido o condão de criar um risco efetivo para um dos bens ou interesses jurídicos envolvidos, ou ainda que tenha causado o referido risco, este não se encontrasse efetivamente no âmbito de proteção daquela norma[46]. Em qualquer desses casos, haveremos uma conduta atípica a afastar, portanto, a existência de concurso de crimes.
O critério do incremento do risco (Roxin) se revela extremamente útil naqueles ilícitos ambientais em que se encontra dificuldade no estabelecimento do nexo causal como, por exemplo, no ilícito previsto no art. 271 do CPB (corrupção ou poluição de água potável). Isto porque, segundo parte da jurisprudência, seria necessário que água, antes da conduta criminosa, fosse própria para o consumo, o que muitas das vezes, se revela de difícil ou impossível comprovação (JESUS, 2000, p. 80).
O incremento do risco também se desempenha importante papel na responsabilização das pessoas jurídicas que exploram atividades econômicas perigosas, como indústrias químicas, usinas nucleares etc., pois:
“Quando o legislador permite que [...] na actividade de estabelecimentos perigosos e outros casos de utilidade social preponderante, se corra um risco até certo limite, apenas poderá haver imputação se a conduta do autor significar um aumento do risco permitido. Se tal situação se configura como tal, tem de imputar-se o resultado ao agente, ainda que este tenha actuado de forma irrepreensível” (ROXIN apud FELICIANO, 2005, p. 234).
Um exemplo de aplicação do critério da redução do risco (Roxin), é o do fazendeiro que ante a aproximação de um incêndio de grandes proporções, coloca fogo em bosque de sua propriedade para evitar que aquele atinja uma grande reserva ecológica próxima (ROXIN apud JESUS, 2000, p. 77-78).
O critério do risco permitido (Jakobs) é, dentre todos os aqui relacionados, o que certamente possui maior amplitude e raio de aplicação em sede de crimes ambientais, pois, se pensarmos bem, dificilmente encontraremos uma única atividade desempenhada pelo homem, tanto sob o ponto de vista individual como coletivo, que não possua reflexos diretos ou indiretos sobre o meio ambiente (e, portanto, geradora de riscos que serão permitidos na exata medida que atender aos respectivos requisitos legais[47]).
Note-se, por fim, quanto ao critério da competência ou da capacidade da vítima, que, em sede de ilícitos ambientais este critério terá pouca ou quase nenhuma aplicação, pois os bens e interesses protegidos pelas normas ambientais são transindividuais. É, possível, entretanto, que no concurso de crimes ambientais e crimes comuns este critério sirva para afastar a incidência do crime comum.
CONCLUSÃO
A visão panorâmica que se buscou traçar ao longo destas linhas, obviamente não esgota todos os aspectos referentes a um tema tão complexo.
Ficou claro, entretanto, que, a teoria da imputação objetiva possui importantes e valiosos reflexos no Direito Penal, sobretudo naquelas normas penais que visam à proteção do meio ambiente, o chamado Direito Ambiental.
Isto porque as teorias clássicas da estrutura jurídica do crime, sobretudo no que se refere ao nexo de causalidade material e à imputação do resultado ao suposto agente delituoso a título de dolo ou culpa afiguram-se, em muitos casos, conforme demonstrado, inadequadas à correta compreensão e aplicação de normas que se voltam à proteção de bens e interesses penais ambientais.
Em contrapartida, a substituição do dogma causal material por um nexo causal normativo, sobretudo a partir das construções teóricas do princípio do risco preconizado por Claus Roxin se revelam bastante valiosas nesse sentido.
Da mesma forma que, conforme demonstrado, a Imputação Objetiva possui valiosos reflexos no que se refere ao conflito (aparente) entre normas penais ambientais e normas penais comuns, assim como no concurso de agentes, além de fornecer uma base teórica mais adequada para a compreensão e aplicação da responsabilização penal da pessoa jurídica.
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[1] Conduta é a ação ou omissão humana e consciente dirigida a determinada finalidade.
[2] Resultado é a modificação do mundo exterior provocada pelo comportamento humano voluntário, positivo ou negativo (o “resultado naturalístico”, presente nos crimes materiais) ou, ainda, a afetação de um interesse protegido pela norma penal (o chamado “resultado normativo”, que se verifica no caso dos crimes de formais ou de mera conduta).
[3] Nexo causal é a relação de causa e efeito que permite atribuir ao agente o resultado, é o elo de ligação entre a ação ou omissão praticada e o resultado obtido.
[4] Segundo o art. 13 do CPB “considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”, ou seja, todos os fatos que precedem o resultado e se afigurem indispensáveis à sua realização se equivalem para fins de reconhecimento do linhame causal.
[5] Para sabermos se uma ação é causa do resultado, aplica-se o método de eliminação hipotética de Thyrén (previsto no art. 13, caput, 2ª parte, do CPB): estaremos diante de uma causa se, ao excluirmos uma ação do contexto fático, o resultado previsto na norma penal incriminadora deixar de ocorrer.
[6] Este, aliás, é justamente a principal crítica que se faz ao dogma causal material. Por óbvio, nesses casos, assim como em vários outros posteriormente aqui relacionados, a análise dos elementos do tipo subjetivo é bastante para afastar eventual responsabilização penal, por exemplo, do fabricante ou vendedor de armas de fogo, posteriormente adquiridas e utilizadas em praticadas delituosas pelo adquirente.
[7] Enquadram-se, nesta hipótese, os casos de autoria colateral, onde a conduta de cada um dos agentes, isoladamente, seria suficiente à obtenção do resultado.
[8] É a hipótese em que a morte da vítima teria ocorrido de qualquer forma, independentemente dos golpes desferidos pelo agente, em razão de ferimentos e lesões anteriores.
[9] Suprimindo-se cada uma destas condutas, o resultado não teria ocorrido e, portanto, não haveria que se falar em nexo causal, o que não é, obviamente, uma resposta aceitável.
[10] Não se trata propriamente de uma teoria, na medida que simplesmente remete o intérprete da lei a uma análise dos elementos subjetivos do tipo (dolo e culpa).
[11] Elaborada por Edmund Mezger, considera causa como o evento que se afigura relevante para a concretização do tipo penal. Em outras palavras, esta teórica submete a aferição da relevância penal da causalidade às peculiaridade de cada tipo incriminador.
[12] Segundo esta teoria, condutas, ainda que formalmente típicas, só poderão ser punidas quando inadequadas ao convívio social (neste sentido: GALVÃO, 2000, p. 22).
[13] Adotamos aqui o vocábulo anomalia sob a sua concepção kuhniana: um resultado experimental não passível de ser assimilado pela teoria vigente.
[14] Compreendida como a imputação (atribuição) de um resultado normativo (efetiva violação de um bem jurídico protegido) a quem realizou uma conduta criadora (ou incrementadora) de um risco juridicamente proibido.
[15] O exemplo apresentado pelo próprio Roxin é o de A que, ao perceber que uma pedra fora arremessada contra a cabeça de B, empurra-o, fazendo com que a pedra lhe atinja numa parte menos perigosa do corpo. Embora a conduta de A tenha resultado lesões em B, ele evitou uma lesão mais grave e, portanto, diminui o risco.
[16] Note-se que, nesses casos, embora o agente preencha o tipo subjetivo do tipo (dolo / culpa), ele não causa um risco desaprovado e relevante ao bem jurídico tutelado pela norma. Ainda que ele deseje que o tio morra, ele não possui o domínio do fato.
[17] Cremos que este critério também se revela de grande importância na aplicação de normas ambientais penais, sobretudo na solução de antinomias (aparentes) entre normas penais comuns e normas ambientais penais, conforme iremos tratar oportunamente.
[18] Sem desprezar a imputação do resultado tal como abordada por Claus Roxin, o que se verifica, portanto, é que Günther Jakobs enfatiza uma imputação do comportamento.
[19] Sem desprezar a imputação do resultado tal como abordada por Claus Roxin, o que se verifica, portanto, é que Günther Jakobs enfatiza uma imputação do comportamento.
[20] É a situação da vítima de acidente automobilístico que vem a falecer pois, apesar de ter sido devidamente encaminhada ao pronto-socorro, não recebeu o respectivo atendimento por não possuir recursos financeiros. O autor da lesão corporal não responderá pela o vento morte, vez que este deverá recair sobre os omitentes do hospital. Afinal, o autor da lesão tinha direito de esperar dos médicos e demais profissionais do hospital um comportamento ajustado a seus deveres (nesse sentido: DÍAZ apud JESUS, 2000, p. 47).
[21] Nesse último caso, aliás, o próprio Jakobs confessa existir questões ainda pouco claras, como se a vítima atuaria em próprio risco apenas por conhecer o estilo de vida arriscado de seu parceiro sexual, ou se deveria, também, tem conhecimento efetivo da contaminação pelo HIV.
[22] Este ponto, à guisa de breve panorâmica sobre o tema, resume alguns dos principais assuntos abordados em nosso artigo “Direito Constitucional Ambiental e Hermenêutica Jurídica Ambiental”, relacionado em nossas referências. Note-se, entretanto, que à luz da teoria da imputação objetiva, alguns dos pontos anteriormente ali tratados recebem, aqui, nova e mais adequada abordagem, sobretudo quando passarmos a análise das possíveis contribuições dessa teoria no âmbito da tutela penal ambiental. Nessa esteira, cremos bastante oportuno o seguinte pensamento: “O analfabeto do ano 2000 não será o que não sabe ler e escrever, mas o que não conseguir aprender, desaprender e reaprender” (ALVIN TOFLER).
[23] Para uma rápida introdução ao assunto, sugerimos o a leitura do artigo “Criminalidade Ambiental Organizada”, de nossa lavra, constante das referências bibliográficas.
[24] Destaque para as diversas operações realizadas pelo Departamento de Polícia Federal na Amazônia Legal, nestes últimos anos, e que culminaram com a prisão de centenas de pessoas, dentre empresários, políticos e servidores públicos envolvidos na lucrativa exploração ilegal de produtos florestais no interior áreas públicas, com destaque para a as operações Curupira (2005), Kayabi (2006), Mapinguari (2007) e Jurupari (2010), bem como para operações de combate ao tráfico internacional de animais, à biopirataria e ao tráfico internacional de diamantes e pedras preciosas: Operação Carbono (2004), Operação Pindorama (2006), Oxóssi (2010), dentre outras realizadas com o apoio da Interpol e que resultaram em buscas e prisões em diversos países.
[25] Somem-se a estes órgãos, no âmbito de crimes ambientais, as respectivas secretárias de estaduais e municipais de meio ambiente e o IBAMA.
[26] Deverá, entretanto, afigurar-se, sempre, em ultima ratio, uma vez esgotados e/ou resultando ineficazes os demais mecanismos intimidatórios (civis e administrativos) e estribar-se em estrita consonância com as demais normas que informam a Constituição, notadamente no que se refere à proteção da pessoa humana, eis, que “causaria espanto um direito criminal ambiental em que as sanções mais importantes fossem destinadas não à proteção da pessoa humana, mas em detrimento desta” (FIORILLO, 2009, p. 519).
[27] Em que pese boa parte da doutrina e jurisprudência, durante mais de uma década, viesse se manifestando pela aplicação do princípio da especialidade em situações de aparente antinomia entre condutas previstas na Lei de Crimes Ambientais e normas análogas previstas no Código Penal, demonstraremos, oportunamente, que tal raciocínio é totalmente equivocado.
[28] O Código Floresta previa, originariamente, em seus arts. 26 a 36, diversas contravenções penais relacionadas à proteção das florestas e demais formas de vegetação. Conforme doutrina e jurisprudência majoritária, tais dispositivos, à exceção do art. 26, alíneas “e”, “j”, “l” e “m”, teriam sido revogados tacitamente pela Lei de Crimes Ambientais. Neste sentido: SIRVINSKAS, 2005, p. 236.
[29] Por óbvio, existem flagrantes exceções, como as diversas modalidades de dano culposo que passaram a ser previstas expressamente no ordenamento pátrio com a Lei 9.605/98 (v.g., arts. 38, 38, 40, 54 e 62). Neste ponto, interessante registrar que esse tipo de inovação trazida pela Lei de Crimes Ambientais, ao lado da responsabilização penal da pessoa jurídica (art. 3º) e sua eventual liquidação forçada (art. 24), assim como diversos de seus outros novos institutos, até hoje, geram inconformismo e celeuma de boa parte da doutrina especializada, notadamente dentre os penalistas pouco ou nada familiarizados com a questão ambiental e os novos paradigmas jurídicos que dela surgem nestas últimas décadas.
[30] Não por acaso, o conceito de Política Criminal proposto por Zaffaroni e Pierangelli seria “a ciência ou a arte de selecionar os bens jurídicos que devem ser tutelados penalmente e os caminhos para tal tutela” (ZAFFARONI & PIERANGELLI, 2002).
[31] Caso contrário, estaremos diante de simples ilícito civil ou administrativo.
[32] Nesse sentido: STJ – Quinta Turma – HC 36624/SP – Habeas Corpus 200400952562 – Rel. Min. Felix Fischer – publicado no DJ de 04.10.2004, p. 335
[33] Nas hipóteses de tráfico internacional de animais silvestres nativos.
[34] Há mais de 20 anos, a Convenção do Comércio a Espécies em Extinção (CITES) estabeleceu uma proibição mundial ao comércio de marfim.
[35] É possível, entretanto, conforme veremos oportunamente, que, no caso concreto, o intérprete da lei se valha de critérios de não-imputação (objetiva) a fim de afastar a eventual responsabilização por um ou mais ilícitos, ainda que possível, em tese, a configuração de um concurso formal, ao argumento de que, no caso concreto, a atividade do agente não produziu ou incrementou um risco relevante ao bem ou interesse protegido pelo respectivo tipo penal.
[36] Trata-se da chamada “teoria da responsabilidade penal por ricochete, de empréstimo, subseqüente ou por procuração, que é explicada através do mecanismo denominado emprunt de criminalité, feito à pessoa física pela pessoa jurídica, e que tem como suporte obrigatório a intervenção humana. Noutro dizer: a responsabilidade penal da pessoa moral está condicionada à prática de um fato punível suscetível de ser reprovado a uma pessoa física" (PRADO, 2001, p. 123-124).
[37] Estes autores fundamentam-se, precipuamente, na teoria da ficção, defendida por Feuerbach e Savigny.
[38] Foi a corrente adotada pelo STJ nos autos do REsp 564.960, julgado em 02.06.05.
[39] Note-se, aqui, que o art. 3o da Lei 9.605/98 consagrou a chamada teoria da dupla imputação ou da imputação por ricochete, ou seja, é imprescindível, para que a pessoa jurídica integre o pólo passivo, que também nele figure pessoa física, que tenha agido em nome e benefício do ente moral.
[40] Veremos, oportunamente, que à luz da Teoria da Imputação Objetiva, s.m.j, alguns desses obstáculos anteriormente apresentados pelo Prof. Luiz Flávio Gomes restaram bastante mitigados, podendo-se, hoje, à luz da referida construção teórica, falarmos, sim, numa legítima responsabilização penal da pessoa jurídica.
[41] Entendida como “uma fase do desenvolvimento da sociedade moderna onde os riscos sociais, políticos ecológicos e individuais criados pela ocasião do momento de inovação tecnológica escapam das instituições de controle e proteção da sociedade industrial” (BECK apud MORATO, 2004, p. 12).
[42] REsp 564.960, julgado em 02.06.05
[43] Apesar de a doutrina e a jurisprudência se socorrerem com freqüência no denominado princípio da insignificância para solucionar situações do gênero, é de registrar-se que, tal solução, a nosso ver, não se adéqua aos crimes ambientais. A uma, por lhe carecer, a nosso ver, uma devida construção teórica mais bem elaborada e fundamentada nos moldes, v.g, da teoria da imputação objetiva. A duas, porque os critérios estritamente econômicos comumente utilizados pela doutrina e jurisprudência em sede de aplicação do princípio, não se revelam adequados à avaliação de riscos e danos ambientais em si.
[44] Aqui, também, o critério da proibição de regresso e o critério da confiança se revelam de grande valia.
[45] Item 3.1.3
[46] É a situação, por exemplo, em que apesar de realizar atividade garimpeira ilegal (art. 55 da Lei 9.605/98), o agente não logrou êxito em localizar ouro, encontrando apenas minerais sem valor econômico. Neste caso, o agente responderá pelo delito de garimpo ilegal, mas não poderá responder pelo delito de usurpação de bem da União (art. 2º, Lei 8.176/91).
[47] A depender do tipo de impacto ambiental causado pela atividade, a licença deverá ser precedida dos respectivos estudos de impacto ambiental e submeter-se a rigoroso processo, onde serão estabelecidas, por exemplo, as condicionantes do projeto.
: Graduado em Direito e Gestão Ambiental. Especialista em Direito Ambiental (PUCRS), Ciências Penais (UNISUL), Ciência Policial e Investigação Criminal (Escola Superior de Polícia - Ministério da Justiça). Mestrando em Ciência & SIG (Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Créditos concluídos, banca de defesa da dissertação, relacionada ao uso da Geointeligência no combate aos crimes ambientais na Amazônia, designada para o 1º semestre de 2013). Autor do livro "Tutela Penal do Meio Ambiente Urbano", publicado pela editora Baraúna (a venda em: www.barauna.com.br).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PERAZZONI, Franco. Contribuições da teoria da imputação objetiva à tutela penal do meio ambiente Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 out 2012, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32024/contribuicoes-da-teoria-da-imputacao-objetiva-a-tutela-penal-do-meio-ambiente. Acesso em: 22 nov 2024.
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