RESUMO: O presente estudo enfoca as medidas de incentivo à legalização e à repatriação de capitais, no contexto das diferentes vertentes político-criminais da contemporaneidade. Trata-se de um dos mais controversos temas que figura na pauta de discussões concernentes à criminalidade econômica no Brasil. Para abordar essa temática, busca-se realizar um levantamento do panorama da Política Criminal nacional, trazendo à tona relevantes debates referentes aos princípios que norteiam o Direito Penal no século XXI. Tendo por base essas considerações iniciais, a abordagem focaliza-se no Direito Penal Econômico, sob a perspectiva criminológica, ao mesmo tempo em que apresenta os delineamentos gerais de alguns dos delitos mais recorrentes que a prática forense se depara nos últimos anos nessa seara. Ao final, almeja-se, ainda, uma incursão nos projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, no intuito de analisar os reais efeitos pretendidos pelo legislador, bem como examinar os posicionamentos incipientes dos sujeitos diretamente interessados em suas implementações. Em linhas gerais, em virtude das mudanças axiológicas ocorridas no seio da sociedade globalizada, verifica-se a necessidade de um processo de gradual descriminalização dos delitos cuja objetividade jurídica tutelada tenha cunho exclusivamente econômico, em prol da “administrativização” do Direito Penal nesse ponto, como forma de garantir a eficácia do Princípio da Intervenção Mínima. Logo, a extinção de punibilidade de delitos econômicos, como forma de estimular o reingresso de capitais, seria plenamente legítima, tanto do ponto de vista do interesse social envolvido, quanto do interesse político-criminal, consagrando uma verdadeira ruptura com as tradicionais propostas de combate ao crime organizado transnacional, o que se amolda perfeitamente a uma política criminal liberal, caracterizada pela desvinculação entre a tutela penal e os problemas estatais.
Palavras-chave: “Política Criminal”. “Criminologia”. “Sociedade de Risco”. “Direito Penal Econômico”. “Crimes de Colarinho Branco”. “Repatriação de Capitais”.
INTRODUÇÃO
No ano-base de 2008, o Banco Central do Brasil apurou um total de US$ 170,397 bilhões em ativos de pessoas físicas e jurídicas brasileiras declaradamente investidos no exterior[1]. Ao longo dos anos, verifica-se um significativo aumento desses investimentos, o que demonstra uma gradual fuga de capitais. Todavia, os dados oficiais servem apenas de estimativas para a verdadeira “cifra-negra” de divisas remetidas e mantidas no exterior à margem do controle por parte dos órgãos oficiais. No mais das vezes, seus detentores ficam no limiar entre a licitude e a ilicitude, que não raro permeia a seara penal.
Nesse contexto, surgem no Brasil propostas de aplicação de um instituto já conhecido de outros ordenamentos jurídicos, como Itália, Portugal, México, Argentina, Alemanha, Estados Unidos e Suíça, com o propósito último de legalizar e estimular o reingresso desses bens e valores, por meio de incentivos com repercussão fiscal e criminal, a fim de aqui produzir riquezas, que revertam também em benefício do País.
A repatriação de capitais está, pois, entre os mais recentes temas enfrentados pela dogmática jurídica no campo do Direito Penal Econômico no Brasil. Isso porque a questão adquire os mais tortuosos meandros, quando se entrechocam duas correntes de opinião com argumentos bastante sensatos. Destarte, já não mais se pode ignorar a proposição no âmbito do direito público, reclamando por uma abordagem acadêmica que sistematize o foco das discussões e dissemine o assunto na comunidade jurídica.
Este, em síntese, é o propósito do presente trabalho, que aborda a questão sob o prisma da política criminal contemporânea orientadora da ação do legislador e dos intérpretes da lei.
Para tanto, partimos de uma breve incursão ao sentido que a política criminal adquire em nosso tempo, procurando, se não conceituar definitivamente essa ciência, ao menos delimitar, dentro das mais destacadas vertentes, seu objeto e primordiais funções. A respeito das perspectivas e tendências político-criminais, buscamos alcançar aquelas questões mais relevantes, e não menos controversas, que surgem no que ULRICH BECK denomina “sociedade de risco”[2], conceito retomado ao longo de todo o trabalho.
Desde já, pode-se inferir que, quando as infrações aos direitos e interesses do indivíduo assumem determinadas proporções, os demais remédios de controle social mostram-se insuficientes ou ineficazes para harmonizar o convívio social. O Direito Penal surge, procurando resolver conflitos e suturando eventuais rupturas produzidas pela desinteligência humana. É assim que HANS-HEINRICH JESCHECK define os limites da legitimidade do poder punitivo estatal:
El poder punitivo del Estado no debe utilizarse de cualquier modo y en cualquier medida para proteger la convivencia humana. El Derecho penal ha de contribuir, ciertamente, a vencer el caos en el mundo y a contener la arbitrariedad de las personas mediante la adecuada limitación de su libertad, pero sólo puede hacerlo en una forma que sea compatible con el nivel cultural global de la nación. [...] El Derecho penal debe al mismo tiempo, rechazando la violencia y la arbitrariedad, procurar al individuo un espacio en el que pueda decidir libremente y realizar sus resoluciones conforme a su proprio criterio. Por eso, el Derecho penal no sólo restringe la libertad, sino que también la crea[3].
A fim de atingir os objetivos propostos, procuramos manter uma postura neutra (científica), passível de tratar de forma isonômica desde o tema do abolicionismo penal, dos movimentos de lei e ordem e do direito penal do inimigo, até o do minimalismo (quando abordamos o que RAÚL CERVINI chama de processos de descriminalização[4]) e do garantismo. Especial destaque damos à análise econômica do Direito (Criminologia Atuarial) e ao fenômeno da “administrativização” do Direito Penal, tendências que provar-se-ão fundamentais ao longo do desenvolvimento.
É possível visualizar, de antemão, que a defesa de um modelo “ultraliberal” de Direito Penal, atribuída especialmente aos doutrinadores vinculados à Escola de Frankfurt, partidários da restrição da sanção penal às condutas atentatórias contra a vida, a saúde, a liberdade e a propriedade, contrapõe-se à regulação dos delitos econômicos e ambientais, circunscrita a um chamado “Direito de Intervenção”, representativo da tendência mundial de introdução de novos tipos penais ou da reinterpretação das garantias clássicas do Direito Penal substantivo e do Direito Processual Penal.
Por certo, uma das características do Estado Social e Democrático de Direito é a intervenção nas relações sociais, de modo a garantir aos indivíduos o acesso às oportunidades de obtenção de condições mínimas necessárias a uma vida digna. Sem dúvida, o ordenamento jurídico é utilizado como instrumento de formalização da relação que se estabelece entre o mercado e a sociedade civil, tendo o Estado como mediador. Ocorre que, nesse contexto intervencionista, uma parcela da legislação atua de forma subsidiária, pretendendo conferir um grau mais elevado de proteção a determinados bens jurídicos, mediante a cominação de sanções particularmente graves a eventuais autores de condutas específicas que acarretem a lesão daqueles. Nesse ponto, RAÚL CERVINI e GABRIEL ADRIASOLA constatam a ineficiência da intervenção penal:
[...] la intervención penal se caracteriza, entonces, por ineficiencia, en la medida em que los grupos de poder económico, no alcanzados en concreto por la intervención sancionadora, continuam questionando los procesos económicos sin vínculos particulares, buscando procurarse el mayor grado de inmunidad penal, a fin de proteger exclusivamente los intereses de unos pocos. Es la lógica por la cual, a mayores capitales corresponde mayor poder de negociación, y, por consiguinte, uma mayor capacidad de dirigir el consenso, condicionando la acción legislativa[5].
Ademais, impossível desvincular um debate sobre Política Criminal da Criminologia e, nesse sentido, apontar suas principais tendências. Aqui, muito embora não abandonemos a imparcialidade, optamos por trilhar um caminho que pode não ser o que ganhe o mais irrestrito apoio social ou mesmo da comunidade acadêmica como um todo: o de visar sempre o resguardo do Estado Democrático de Direito, primado de um Direito Penal Constitucional, em detrimento daquele a todo custo orientado à eficiência.
É cediço que o jus puniendi corresponde à exclusiva faculdade de o Direito Penal impor sanção criminal diante da prática do delito. Sua fundamentação está no critério da absoluta necessidade e encontra limitações jurídico-políticas, especialmente nos princípios penais fundamentais. Verifica-se, então, que o Direito Penal tem por função apenas preservar as condições essenciais a uma pacífica convivência dos indivíduos. Assim, apenas nesta medida tem legitimidade a intervenção jurídico-penal[6].
Com essa perspectiva, elencamos alguns dos princípios que CEZAR BITENCOURT reputa limitadores do poder punitivo estatal[7], os quais nortearão nossa pesquisa, não sem antes explicar a necessidade de suas existências, diferenciá-los das regras e dos valores – categorias não menos relevantes –, explicar suas funções gerais e tratar de sua eficácia no mundo dos fatos.
Dentro de cada um desses postulados elementares, cuidadosamente ordenados em uma sequência lógica, envidamos esforços para identificar uma definição básica, principais funções, legitimidade e visíveis perspectivas. O maior destaque foi dado à exclusiva proteção de bens jurídicos e suas diversas concepções, assinalando que sua proteção é a principal função do Direito Penal. Também procuramos um aprofundamento um pouco maior naquele que talvez seja o princípio que mais destaque demande, em virtude de sua constante inobservância prática: o princípio da intervenção mínima, que decorre da fragmentariedade e da subsidiariedade do Direito Penal, tendo nítida filiação ao princípio da proporcionalidade.
Nada obstante, observa-se que o Direito Penal positivo vem paulatinamente acolhendo novas ordens de direitos, afastando-se, assim, de uma concepção obsoleta, a qual reconhecia como tais apenas aqueles bens ou interesses suscetíveis de apropriação ou invocação individual. Logo, surgem os direitos de segunda, terceira, quarta e quinta gerações[8].
Basicamente, o que se pode antecipar acerca dessas colocações introdutórias é que o Direito Penal clássico está visivelmente defasado para lidar com algumas das novas realidades práticas que a sociedade moderna fez eclodir, sobretudo a criminalidade econômica. Por conseguinte, é com fulcro nos princípios hoje insertos na Constituição Federal que encontraremos uma verdadeira restrição para o direito de punir do Estado, fazendo do Direito Penal uma ferramenta de construção de uma sociedade mais igualitária e justa.
Note-se que o Direito Penal não existe de forma autônoma em face da Constituição, mas tem por ela definidos tanto os limites, quanto os fundamentos de sua estruturação[9]. A Carta Magna como fonte, a um só tempo, legitima e delimita o Direito Penal incriminador[10].
Uma Constituição possui pressupostos realizáveis e força normativa, não sendo apenas um “pedaço de papel”, de modo a assumir força ativa e orientar a conduta, estando presente na consciência geral da sociedade. Sendo assim, uma norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. Dependerá da possibilidade de ser concretizada (pretensão de eficácia) e deve considerar as condições históricas de sua realização (naturais, técnicas, econômicas e sociais). Através dessa pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social[11].
A norma constitucional só terá eficácia, poder e prestígio se for determinada pelo princípio da necessidade, baseando-se nas tendências dominantes do seu tempo. Somente assim, afirmava KONRAD HESSE, a Constituição terá força ativa (a imposição das tarefas por ela propostas estará associada à disposição do cidadão em cumpri-las), “vontade de poder” (wille zur macht) e “vontade de constituição” (wille zur verfassung)[12].
No intuito de delimitar ainda mais o foco, dedicamos um capítulo à “nova” criminalidade, na qual WINFRED HASSEMER observa uma intervenção estatal socialmente legitimada, a míngua dos princípios fundamentais já expostos.
Problemas ambientais, drogas, criminalidade organizada, economia, tributação, informática, comércio exterior e controle sobre armas bélicas – sobre essas áreas concentra-se hoje a atenção pública: sobre elas aponta-se uma “necessidade de providências”; nelas realiza-se a complexidade das sociedades modernas e desenvolvidas; [...] Nestas áreas se espera a intervenção imediata do Direito Penal, não apenas depois que se tenha verificado a inadequação de outros meios de controle não penais. O venerável princípio da subsidiariedade ou da ultima ratio do Direito Penal é simplesmente cancelado, para dar lugar a um Direito Penal visto como sola ratio ou prima ratio na solução social de conflitos: a resposta penal surge para as pessoas responsáveis por estas áreas cada vez mais frequentemente como a primeira, senão a única saída para controlar os problemas. Os instrumentos de controle amplamente providos pelo Direito Penal são considerados adequados para emprego indiscriminado nestas áreas[13].
Após uma digressão inicial de cunho criminológico, onde buscamos entender a origem desse fenômeno, enfrentamos um tema bastante controverso e obscuro: o crime organizado e a dificuldade de determinar o que seja uma organização criminosa, ponto cujas conclusões serão constantemente reavidas no decorrer do capítulo, em face da complexidade que esses grupos adquirem, dando novos rumos ao Direito Penal Econômico, ramo que a cada dia ganha maior “autonomia”.
Em seguida, tratamos do que EDWIN SUTHERLAND batizou de white-collar crimes (crimes de colarinho branco), aqueles crimes praticados por pessoas dotadas de respeitabilidade e elevado status social, no âmbito de seu trabalho, apresentando sua Differential Association Theory (Teoria das Associações Diferenciais), que busca explicar, sob o ponto de vista sociológico, a white-collar criminality (criminalidade do colarinho branco).
Mais adiante, sempre com o objetivo de tornar clara a discussão que, ao final, provar-se-á o verdadeiro sentido desta monografia, analisamos três delitos de especial repercussão: o crime de lavagem de capitais, previsto na controversa lei nº 9.613/98; o crime de evasão de divisas, inserto na lei que trata dos crimes contra o sistema financeiro nacional (lei nº 7.492/86); e duas modalidades mais comuns do crime de sonegação fiscal da lei nº 8.137/90 (arts. 1º, I, e 2º, II).
Para cada uma dessas figuras típicas procuramos enfrentar, dentre outros aspectos, sobremaneira a objetividade jurídica tutelada. Para tanto, tivemos que expor duas outras derivações do Direito Penal clássico: o Direito Penal Financeiro e o Direito Penal Tributário. Isso, somado às demais dificuldades definitoriais, como o conceito de sistema financeiro nacional, instituição financeira, evasão e elisão fiscais, todos tratados em tópicos à parte, só faz evidenciar algo que propositadamente omitimos até esse momento: a indissociabilidade entre o Direito Penal e os demais ramos do conhecimento científico, quer adstritos ao próprio Direito, quer alienígenas, compondo o que se passou a chamar de “ciências criminais”.
Ainda nesse capítulo, alguns temas não podem ser desprezados, porquanto representam investigações paralelas de incomensurável relevância. Primeiramente, a apresentação de um panorama dos esforços de combate ao crime de lavagem de dinheiro, por meio de tratados e convenções interestatais e a criação de órgãos nacionais e internacionais com o fim de promover a cooperação jurídica internacional. Além disso, uma visão crítica acerca da real necessidade de criminalização da conduta de evasão de divisas e o aprofundamento na regulamentação brasileira da Declaração de Disponibilidades no Exterior. Por fim, fazemos uma breve análise histórica das causas extintivas de punibilidade relacionadas ao crime de sonegação fiscal, notadamente através dos sucessivos programas de recuperação fiscal dos quais os governos têm lançado mão em situações de crise.
Como adverte RUTH GAUER, trata-se de demandas que avivam cada vez mais a imprescindível interdisciplinaridade com a qual o Direito e, mais especificamente, o Direito Penal, é obrigado a conviver[14]. Aqui, a falta de condições
administrativas para exercer o controle sobre atividades próprias da esfera legislativa resulta na imputação ao Direito Penal da missão de resolver os problemas administrativos que não são de sua alçada. O Direito Penal passa a ser visto como solução, de tal modo que, quando o Estado se depara com novas formas de criminalidade, cria e usa desmedidamente novos tipos penais, movimento que descaracteriza um Direito Penal fundado na intervenção mínima[15].
No último capítulo, aborda-se o cerne da monografia, isto é, a discussão acerca da legalização e repatriação de capitais no Brasil propriamente dita. Inicia-se retomando os dados já angariados sobre disponibilidades no exterior, avaliando cuidadosamente as razões que originaram esse quadro atual. Em prosseguimento, identificamos uma série de normatizações que dificultam substancialmente o cumprimento das disposições legais pelo contribuinte, corroborando uma verdadeira “cultura de sonegação fiscal”. Evidencia-se que medidas de estímulo fiscal com objetivos semelhantes à repatriação não são matérias novas sequer no cenário nacional, encontrando diversos dispositivos desde o período ditatorial. Ademais, reconhecendo que existem outras medidas igualmente válidas que atuariam concomitantemente (v.g. Ação Civil de Extinção de Domínio e Alienação Antecipada), uma breve análise do panorama político e econômico brasileiro permite concluir que não existe cenário mais propício a esse tipo de debate do que o atual.
Desse modo, parte-se para um enfrentamento das peculiaridades dos projetos de lei sobre a legalização e a repatriação de capitais em tramitação no Congresso Nacional. Somente após esse estudo, passa-se ao enfrentamento de sua repercussão no meio político-jurídico, momento em que inicialmente apresentamos os posicionamentos de órgãos e entidades vinculadas ou não ao governo para, em seguida, delimitar duas frentes de opinião que formam uma corrente favorável e uma desfavorável à implementação das medidas.
Concluímos com a exposição dos efeitos jurídicos práticos propostos, diferenciando as implicações criminais, concernentes a causas de extinção da punibilidade, das implicações administrativo-fiscais ou tributárias, por meio da extinção ou exclusão do débito tributário. Com o fim de encontrar a verdadeira natureza jurídica dessas medidas, esse último subtítulo trata de institutos de Direito Penal (anistia, graça e indulto) e Direito Tributário (remissão, isenção e anistia) que geram grande divergência na parca doutrina especializada que já manifestou opinião nesse sentido.
Portanto, trata-se de um tema de ampla repercussão, que vem sendo discutido há quase uma década no Brasil, ainda sem definição, sobretudo em face dos entraves político-partidários.
Por um lado, a corrente favorável alega que a repatriação poderia trazer grande retorno financeiro ao Brasil, para acelerar projetos de infraestrutura e movimentar ainda mais a economia interna do país, culminando numa estabilização financeira que reduziria os riscos de investimentos nacionais e estrangeiros. Além disso, que as pessoas de um modo geral se sentiriam mais confortáveis em declarar seus bens no Brasil, ao invés de remetê-los para o exterior, dada a conjuntura econômica, favorecendo a cidadania fiscal[16].
De outra banda, os argumentos contrários sustentam que, mesmo com as vedações legais, os procedimentos de legalização e repatriação poderiam atrair organizações criminosas com o intuito de fraudar a legislação para a prática de lavagem de dinheiro, o que dificultaria sobremaneira a distinção entre o dinheiro de origem lícita e o de origem ilícita. Outrossim, o benefício fiscal concedido feriria o princípio da isonomia tributária, na medida em que privilegiaria o contribuinte que outrora sonegou tributos, configurando uma espécie de prêmio ao “fugitivo fiscal”.
Após essa análise superficial dos argumentos lançados, indagamos acerca da real natureza jurídica dos benefícios concedidos, no intento de compreendê-los completamente, já que não se pode prescindir de sua plena identificação técnica para, enfim, emitir um juízo de valor cientificamente embasado.
Eis os principais assuntos que pretendemos enfocar na presente monografia, primando sempre pela observância de um método de investigação científica num primeiro plano imparcial e, em decorrência das constatações fáticas, em certos pontos crítica; nem sempre vinculada ao posicionamento predominante; entretanto, indissociada de uma abordagem político-criminal moderna dos fenômenos que objetiva tratar.
1 A POLÍTICA CRIMINAL CONTEMPORÂNEA E SUA RELAÇÃO COM OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS INFORMADORES DO DIREITO PENAL
Essas pensamos ser, em linhas gerais, as colocações introdutórias fundamentais que situam o tema proposto dentro do contexto atual das discussões político-criminais e criminológicas. Desde já, podemos extrair deduções que, em seu conjunto, podem conduzir os rumos que o presente trabalho pretende tomar, primando sempre por uma linha de investigação científica num primeiro momento imparcial e, em decorrência das constatações fáticas, em certos pontos crítica.
Inicialmente, concordamos que o Estado jamais poderá partir do Direito Penal para enfrentar os problemas sociais. Em verdade, temos que o Direito Penal deve ser visto como um instrumento legal de controle do poder punitivo. A opção legislativa de se valer desse ramo do direito como instrumento simbólico não se justifica nem mesmo na proteção de valores de patamar constitucional[17].
É através dos princípios hoje insertos na Constituição da República, que visualizamos para além da fundamentação, uma verdadeira restrição para o direito de punir do Estado, através da indicação de seus fins, alcance, fontes e exigências de enunciados, fazendo do Direito Penal uma ferramenta de construção de uma sociedade mais igualitária e justa.
A Constituição em um Estado Democrático de Direito se de um lado consagra direitos fundamentais e estabelece limites ao poder público, instituindo princípios básicos de proteção do indivíduo frente ao Estado, por outro fixa diretrizes, com a finalidade de promover valores e ações de cunho social.
A consagração de valores visa antes a dirigir a ação estatal no sentido da sua realização, e não descrever condutas proibidas. O que importa como limite ao poder de punir é o respeito obrigatório do legislador penal aos princípios constitucionais. Portanto, o Direito Penal estaria limitado negativamente pela Constituição.
Ao discorrer no presente capítulo sobre os princípios da Exclusiva Proteção de Bens Jurídicos, da Intervenção Mínima ou da Necessidade, da Lesividade ou Ofensividade, da Fragmentariedade, da Subsidiariedade, da Proporcionalidade, da Razoabilidade, da Culpabilidade, da Humanidade e da Adequação Social, julgamos ter tratado dos principais postulados que vinculam a ação do legislador, no intuito de acautelar suas inclinações casuísticas. Tal interpretação se harmoniza com a via que a presente linha de pesquisa pretende trilhar, na árdua missão de promover um estudo embasado nos pressupostos fundamentais da razão e da justiça.
O poder-dever de punir revela-se, a nosso juízo, tanto na edição da norma penal incriminadora, ou mesmo na aplicação da norma por meio do processo, quanto na execução da pena concretizada na sentença condenatória. Nesses três momentos, identificamos um conflito entre o jus puniendi e os direitos e garantias do cidadão, consistindo os últimos em restrições intransponíveis ao poder do Estado.
Dessa forma, entendemos que, no cenário atual, não é possível a eliminação completa do Direito Penal. E nesse diapasão acompanhamos o pensamento do ilustre professor CLAUS ROXIN, para quem
[...] a justiça criminal é um mal talvez necessário e que, por isso, se deve promover – mas que continua sendo um mal. Ela submete numerosos cidadãos, nem sempre culpados, a medidas persecutórias extremamente graves do ponto de vista social e psíquico. Ela estigmatiza o condenado e o leva à desclassificação e à exclusão social, consequências que não podem ser desejadas num Estado Social de Direito, o qual tem por fim a integração e a redução de discriminações[18].
Assim, a sociedade não suportaria a inexistência de uma reprimenda àqueles que infringem a lei, lesando bens essenciais de alguém ou do próprio Estado, cuja preservação se visa a promover por meio da ameaça penal. Na irreparável análise de MIGUEL REALE JR., o poder de punir do Estado é uma decorrência da “natureza das coisas” da vida associativa, que sucumbe na anarquia se não houver uma centralização da produção e imposição de normas sancionadoras[19]. O exercício legítimo da força só se justifica no Estado de Direito se houver limites, na defesa dos mais relevantes interesses da vida social.
Evidentemente, constatamos uma tênue linha divisória que separa os sistemas penais alternativos das alternativas ao direito penal. Isso porque assentimos que o comportamento criminoso se distribui por todos os grupos sociais e a nocividade social das formas de criminalidade próprias das classes dominantes e, portanto, amplamente imunes, é muito mais grave do que toda a criminalidade realmente perseguida.
No Brasil, identificamos uma tendência à criação de estratégias de combate à criminalidade tipicamente repressivas. Qualquer outra medida de cunho alternativo é covardemente atacada, no intuito de desqualificá-la em sua capacidade de contribuir para a segurança, a partir da imposição do rótulo “política social”, como se qualquer medida não repressiva ou não jurídico-formal fosse incapaz de contribuir para a composição de um quadro de alívio do sentimento de insegurança e dela própria. Nesses momentos, está-se diante de uma concepção conservadora de segurança.
Ocorre que, num novo modelo de Justiça Criminal que vem sendo traçado desde o final da década de sessenta, busca-se a extirpação das infrações penais que não constituem um perigo efetivo à sociedade. No ponto, ganha excepcional relevância a discussão dos bens jurídicos tutelados pelas normas penais.
O bem jurídico exerce, na esfera da Política Criminal, importante função, ao orientar o legislador na decisão de qual conduta deve ser reprimida por meio da ameaça penal. Auxilia ainda a definir, dentre múltiplas formas que a conduta possa apresentar, qual aquela especial que, dadas suas características, exige-se seja incriminada por ofender efetivamente um interesse avaliado como relevante.
Num Direito Penal do Estado Democrático de Direito verificamos dentre suas principais características o respeito à autonomia ética, a precisa delimitação do poder público, a seleção racional dos bens jurídicos penalmente tuteláveis, a previsibilidade das soluções, a racionalidade, a humanidade e a legalidade das penas. A este Direito Penal opõe-se um Direito Penal autoritário, de muito maior aceitação no meio social, inclusive em face da larga adesão da mídia.
Entretanto, não há como negar que o Direito Penal, tal como constituído pela racionalidade moderna, desconstruído pela crítica sociológica, imobilizado e incapaz de responder a questões como o crescimento da violência e o surgimento de novas formas de criminalidade e tensionado pela sensação de insegurança e a demanda punitiva, já sofre os efeitos da corrosão por via dos mecanismos de emergência na luta contra o crime.
Diante dessa nova realidade, a manutenção de um paradigma reativo, pautado pela lógica formal e dogmática da normatividade estatal, se de alguma forma contribui para rechaçar (mais teórica do que efetivamente) os abusos por parte do poder punitivo do Estado frente aos direitos e garantias dos cidadãos, precisa ser urgentemente complementado por uma nova perspectiva de tratamento da conflitualidade social contemporânea.
Esse, portanto, o norte que pretendemos adotar na busca por respostas iniciais acerca dos reflexos penais da repatriação de capitais no Brasil. Parece-nos pacífico que, com esse fim, exige-se uma ampla interação entre a Ciência do Direito Penal, a Criminologia e a Política Criminal, de modo a orientar o legislador e o aplicador do Direito Penal na busca pela formação e legitimação de uma efetiva Ciência Penal.
2 A CRIMINALIDADE ECONÔMICA
No presente capítulo abordamos o cerne desta monografia, isto é, a discussão acerca da legalização e da repatriação de capitais no Brasil propriamente dita. Não é demais alertar que a perspectiva criminológica continua lastreando essa análise, já que se procurou traçar um paralelo dessas medidas com o ritmo da Política Criminal nacional contemporânea. Do mesmo modo, é imperioso advertir a absoluta imprescindibilidade de nos valermos de ciências auxiliares ao Direito Penal e questões que, muito embora aparentem, à primeira vista, ser estranhas a essa matéria, guardam, em verdade, profunda relevância para a compreensão desse novo cenário no âmbito da criminalidade econômica.
Iniciamos por avaliar a necessidade de implementação de estímulos à repatriação de capitais, verificando que atualmente existe um significativo percentual de riquezas brasileiras investidas no exterior. Constata-se aqui a falta de dados estatísticos conclusivos, o que prejudica a avaliação. Entretanto, propusemos uma análise comparativa baseada nos dados oficiais, dos capitais nacionais declaradamente investidos em outros países, para concluir que, por trás de tais estatísticas, existe uma cifra oculta de incríveis proporções, abarcando milhares de contribuintes e centenas de bilhões de reais.
Gradualmente, ao longo das últimas décadas, implantou-se no Brasil uma “cultura de sonegação fiscal” oriunda de sucessivos planos econômicos fracassados, o que resultou no que denominamos de “intrincada teia normativa”, um conjunto de normas jurídicas de diferentes âmbitos e escalões, que dificulta sobremaneira o cumprimento das disposições legais por parte dos contribuintes. Procuramos demonstrar que a criação de leis com incentivos fiscais no cenário nacional não é matéria nova, mas que remonta à década de 60 do século XX, com o governo de CASTELLO BRANCO.
Ao avaliar o atual cenário econômico brasileiro, encontramos um período pós-crise econômica mundial, onde há grandes expectativas financeiras e as reservas cambiais nunca estiveram tão altas, revelando uma alta receptividade a investimentos estrangeiros e, porque não, dos próprios brasileiros. Alinhada a essa conjuntura é a articulação política liberal do governo do presidente LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA, do Partido dos Trabalhadores (PT).
Evidentemente não se pode desconsiderar que existem outras medidas que vem sendo aprimoradas com um objetivo similar, que não deixam de ser válidas dentro de seus propósitos. São medidas que visam à recuperação de ativos através da cooperação jurídica internacional.
Citamos a ação civil de extinção de domínio, que visa a potencializar a recuperação de ativos de origem ilícita, bem como o instituto da alienação antecipada, que consiste na alienação de bens cuja indisponibilidade tenha sido decretada, com o imediato depósito dos valores arrecadados em conta judicial remunerada. A nosso juízo, ambas as medidas são de extrema valia e além de garantir eventuais indenizações na esfera cível, não permitem que esses bens fiquem estagnados, sem o rendimento de lucros e, via de consequência, sem movimentar a economia.
Em seguida, apresentamos um panorama, inclusive das mais recentes movimentações, dos projetos de leis que tramitam no Congresso Nacional relativamente ao tema da repatriação de capitais. Em linhas gerais, trata-se de tentativas de estabelecer uma tributação favorecida sobre os investimentos brasileiros no exterior, seja por meio da legalização – declaração e posterior controle fiscal –, seja pela criação de incentivos tributários e penais ao reingresso desses recursos.
Nesse desiderato, enfrentamos questões específicas dos projetos de lei oriundos do Senado Federal – números 424/2003, do senador Marcelo Bezerra Crivella (PRB/RJ) e 354/2009, de autoria do Senador Delcídio do Amaral Gomez (PT/MS) – e da Câmara dos Deputados – números 113/2003, de autoria do Deputado Federal Luciano de Souza Castro (PR/RR) e 5.228/2005, do Deputado Federal José Mentor Guilherme de Mello Netto (PT/SP).
No tocante às Administrações Tributárias estrangeiras, não se olvidou de fazer referência às experiências vivenciadas por diversos países, não só integrantes da União Europeia, mas também da própria América Latina. Aqui destacamos os dados mais recentes obtidos.
Na Argentina, a lei de repatriação de capitais injetou cerca de 18,113 bilhões de pesos ou US$ 4,7 bilhões de dólares na economia, através da adesão de cerca de 36 mil contribuintes[20]. Na Itália, estima-se que a repatriação que terminou em 15 de dezembro de 2009 (Scudo Fiscale III) teria repatriado cerca de 100 bilhões de euros, sobretudo advindos da Suíça. Nas anistias de 2001 e 2003, 25 bilhões de euros saíram dos bancos suíços (aproximadamente 80% de Lugano, sul da Suíça). Quase 19 bilhões de euros foram regularizados junto ao fisco italiano (Agenzia delle Entrate), mas continuaram sob gestão na Suíça[21]. A lei de repatriação turca, em vigor até 31 de dezembro de 2009, repatriou cerca de 47.3 bilhões de euros (apx. U$ 31.5 bilhões)[22]. Em Portugal, durante a crise econômica europeia, o valor aplicado em paraísos fiscais subiu 3,5%, para um total de 11,2 milhões de euros, e o reingresso de capitais reduziu-se em 14%, para 9,8 milhões de euros, segundo o Banco de Portugal. Diante disso, o governo português aprovou um novo projeto de anistia fiscal aos capitais depositados em offshores, com prazo de 01 ano, medida que tenta, essencialmente, captar liquidez para a economia no contexto de crise[23].
Acerca dos efeitos na seara penal, os projetos são bastante claros, mas evidentemente não isentos de críticas.
Na proposição do Deputado JOSÉ MENTOR, as pessoas físicas e jurídicas domiciliadas no Brasil que optassem pela legalização ou repatriamento de recursos não declarados que mantivessem no exterior teriam extintas suas punibilidades pelos crimes relacionados a esses capitais. Todavia, há um rol de práticas delituosas que implicariam vedação à aplicação da lei e que, caso constatadas posteriormente, acarretariam a aplicação de duras sanções, além da aplicação da pena em dobro. Mais além, há previsão que não seria realizada qualquer espécie de identificação do sujeito passivo para a emissão do documento de arrecadação, ficando vedada a divulgação ou a utilização das informações relativas ao repatriamento para a constituição de crédito tributário relativo a outros impostos ou contribuições.
No projeto do Senador DELCÍDIO DO AMARAL, a declaração de bens e direitos e a opção pela consolidação de débitos lá instituída (REFIS) extinguiria a punibilidade dos crimes contra a ordem tributária, econômica e financeira e contra o Sistema Financeiro Nacional, além dos crimes de descaminho, falsidade material de
documentos públicos e privados, falsidade ideológica e crimes contra a previdência social. Há expressa ressalta aos crimes de “lavagem de dinheiro”, não abarcados pela lei, por envolverem recursos de origem criminosa.
A ideia introduzida por este projeto em especial, é a do estímulo à cidadania fiscal, conjunto de direito e deveres dos cidadãos frente ao fisco brasileiro. Busca-se incitar as pessoas físicas e jurídicas a aderir a um novo modelo fiscal, que contempla a regularização, mediante tributação favorecida, de suas situações fiscais pretéritas, regularizar e repatriar os capitais não declarados gerados pela atividade econômica lícita.
Trata-se, pois, de um tema de ampla repercussão, que vem sendo discutido há quase uma década e ainda não tem definição, sobretudo em face dos entraves político-partidários, que, nada obstante, revelam a formação de duas frentes opostas com contornos bastante definidos.
A corrente favorável alega que a repatriação poderia trazer um retorno financeiro ao Brasil da ordem de US$ 50 bilhões, montante suficiente para acelerar projetos de infraestrutura e movimentar ainda mais a economia interna do país. Ampara-se, ainda, nas experiências de países desenvolvidos como Itália, EUA, e Alemanha. Sustenta-se que as medidas beneficiam apenas os titulares de recursos provenientes de sonegação fiscal que tiverem angariado os recursos de forma lícita, não os tendo declarado anteriormente. Do contrário, são previstas sérias punições. Outro argumento apresentado é o da diminuição do risco e dos juros e aumento da arrecadação e dos investimentos. Isso porque se especula que, com o ingresso desses capitais, a economia poderia se estabilizar e, com isso, os juros e os riscos de investimento no Brasil cairiam, consequentemente estimulando ainda mais o investimento nacional e estrangeiro. Além disso, as pessoas de um modo geral se sentiriam mais confortáveis em declarar seus bens no Brasil (cidadania fiscal) ao invés de remetê-los para o exterior, dada a conjuntura econômica. Por fim, determinante é a regularização da situação fiscal de inúmeros contribuintes para com a Receita Federal.
De outra banda, há consideráveis argumentos contrários a uma medida de repatriação de capitais com extinção de punibilidade de crimes relacionados. Teme-se que, mesmo com as vedações legais, esse processo poderia atrair organizações criminosas que intentassem fraudar a legislação para a prática de lavagem de dinheiro, o que dificultaria sobremaneira a distinção entre o dinheiro de origem lícita e o de origem ilícita. É observado também que uma previsão de total anonimato no procedimento de repatriação poderia representar uma “oficialização” da prática criminosa.
Outra questão levantada é a de que a medida fere o princípio da igualdade ou isonomia tributária[24], na medida em que privilegia o contribuinte que outrora sonegou tributos, configurando uma espécie de prêmio ao “fugitivo fiscal”, um incentivo à sonegação que disseminaria um sentimento geral de impunidade. Ademais, há grande divergência quanto à extinção da punibilidade pelos crimes de evasão de dividas e de sonegação fiscal. Alguns alegam que, sem a anistia desses delitos, a lei não teria eficácia, e outros sugerem que seria suficiente uma redução de pena ou substituição por penas alternativas, caso contrário revelar-se-ia um propósito oculto nos projetos, que não o de trazer mais investimentos para o Brasil.
Após a análise dos argumentos lançados, indagamos acerca da real natureza jurídica dos benefícios concedidos, no intento de compreendê-los completamente, já que não se pode prescindir de sua plena identificação técnica para, enfim, emitir um juízo de valor cientificamente embasado.
Tem-se que a punibilidade não é uma característica do delito, e sim um resultado de sua existência. A concreta possibilidade jurídica de o Estado aplicar uma sanção em face do sujeito ativo de um crime encontra obstáculo nas chamadas causas extintivas de punibilidade, fatores que implicam renúncia ao jus puniendi ou à pretensão executória[25], seja pela não imposição de uma pena, seja pela não execução ou interrupção do cumprimento daquela já aplicada.
No ordenamento pátrio, o artigo 107 do Código Penal contempla um rol exemplificativo de medidas desse cunho. Porém, existem diversos casos previstos na parte especial do Código, bem como em leis especiais. É o que pretendem os projetos de repatriação de capitais.
Via de regra, ainda que extinta a possibilidade de o Estado de impor uma pena ao agente, remanesce o crime praticado. Não é o que ocorre com a anistia, que faz desaparecer a infração penal, como se nunca tivesse sido cometida.
Uma lei de anistia é uma lei que descriminaliza temporariamente o delito[26]. Para tanto, deve ser uma lei em sentido material e formal, ou seja, uma lei editada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República.
Ao que tudo indica, portanto, os projetos de lei relativos à repatriação de capitais referem-se a uma verdadeira anistia penal no que tange às implicações criminais.
De outro lado, no que diz com a esfera tributária, coloca-se a discussão sobre a extinção ou exclusão do débito tributário, que embora alheia ao direito penal, aqui exerce papel primordial para se possa cogitar da viabilidade e eficácia da repatriação de capitais. Enfrentamos, assim, as particularidades dos institutos da remissão, isenção e anistia, porquanto surgiram diversas posições sobre qual a verdadeira classificação do benefício instituído pelos projetos de repatriação.
A remissão fiscal é uma espécie de perdão legal do débito tributário, no qual ocorre o fato gerador, mas não há lançamento do tributo. A isenção, por sua vez, apresenta diversos significados, dentre eles a dispensa legal do pagamento do tributo; uma hipótese de não-incidência tributária qualificada; e uma limitação do âmbito de abrangência do critério antecedente ou do consequente da norma jurídica tributária. Por fim, a anistia fiscal é o esquecimento das infrações tributárias praticados e o perdão da multa ainda não aplicada.
Observando os termos dos projetos apresentados, chegamos à conclusão de que os benefícios fiscais que se pretende conceder enquadram-se tanto no conceito de remissão, abrangendo os tributos federais (obrigação principal) cujo débito seria remido, quanto a de anistia, que aboliria a multa e os juros de mora pelo atraso no pagamento. Logo, temos que coexistem os dois institutos, ao menos pela atual redação dos projetos.
Nada obstante, há quem sustente que o proveito não se enquadra em nenhuma das três definições apresentadas, antes representando a criação de uma nova relação jurídica. Não se trataria de perdão na cobrança do crédito tributário principal ou acessório, mas sim de desconsideração de prática de infração tributária e penal, concedendo ao contribuinte faltoso novo prazo para retificação de sua declaração de bens e direitos, bem como a incidência de alíquota diferenciada para tais contribuintes. Nesses termos, instituir-se-ia apenas um regime de tributação diferenciado.
Cremos, no entanto, que o fato de ser criado um regime de tributação diferenciado[27], não exclui a remissão que é concedida relativamente aos débitos tributários passados, tampouco a anistia, quanto a eventual multa pelo descumprimento da obrigação tributária.
Finalmente, da análise das alíquotas propostas conclui-se que, se considerarmos as faixas de regular tributação sobre o Imposto de Renda, há, sem dúvida, um favorecimento do contribuinte que outrora sonegou os tributos, retomando-se o debate sobre a violação à isonomia tributária.
Nesse passo, tendo delimitado os conceitos fundamentais e exposto os debates mais prementes, remetemos à conclusão um posicionamento provisório sobre a legalização e repatriação de capitais, com base nos subsídios até aqui angariados.
CONCLUSÃO
O presente artigo traz as principais conclusões do trabalho de mesmo título, no qual buscamos realizar uma análise criminológica e político-criminal das propostas de legalização e repatriação de capitais em voga no Brasil. Com esse objetivo, dividimos a monografia em três frentes de abordagem, iniciando pela exposição do panorama contemporâneo da Política Criminal e de alguns dos princípios norteadores do Direito Penal, perpassando a questão da criminalidade econômica e diversas discussões a ela inerentes, para, finalmente, dissecar os projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, bem como as linhas de posicionamento formadas pelo embate relativo aos efeitos dessas proposições.
Estruturalmente, intentou-se manejar a inferência de forma ampla, sob uma perspectiva sistemática, enunciando, por fim, alguns esboços de conclusões, com o fim de estabelecer um delineamento capaz de disseminar as discussões no âmbito acadêmico, de molde a propiciar o desencadeamento de pesquisas mais aprofundadas.
Nada obstante, é imperioso tecer algumas breves considerações preliminares, de sorte a melhor situar a temática dentro da linha de raciocínio que se pretendeu adotar.
Inicialmente, deve-se anotar que a função primordial do Direito Penal é, sem dúvida, a proteção de bens jurídico-penais essenciais ao indivíduo e à comunidade. Para cumprir esse desiderato, em um Estado Democrático de Direito, o legislador seleciona os bens especialmente relevantes para a vida social, que, em razão disso, merecem a tutela penal. Assim, o fato social que contrariar o ordenamento jurídico passará a constituir um ilícito, cuja modalidade mais grave é o ilícito penal.
Ocorre que o atual modo de produção do Direito Penal exige uma urgente reformulação, em face da complexidade que esse ramo do ordenamento jurídico adquire na contemporaneidade, sendo obrigado a lidar com o surgimento de novas categorias delitivas, as quais buscam tutelar objetividades jurídicas difusas, concernentes aos conflitos coletivos e sociais emergentes.
Logo, entendemos que as discussões acerca das funções e limites do Direito Penal, às luzes da ordem constitucional vigente, devem necessariamente passar por uma reavaliação da concepção de bem jurídico, haja vista seu papel de simultaneamente definir a função e limitar a legitimidade da intervenção do Direito Penal.
Nesse viés, os bens jurídicos precisam ser vistos como concretizações dos reais interesses (diretos ou indiretos) dos indivíduos, que, por suas cruciais importâncias, merecem máxima proteção, haja vista que o fim de prover a segurança através de suas tutelas é o que marca um limite racional à aspiração ética do Direito Penal.
Temos que essa premente conflagração não deve ficar adstrita ao âmbito legislativo, mas sim alcançar o âmago da formação dos operadores do Direito, através de uma abordagem crítica, porém construtiva, e não meramente reprodutiva, tampouco pessimista. Do contrário, prevalecerá o desrespeito às conquistas históricas da Democracia.
É certo que o Estado não pode invadir a esfera dos direitos individuais do cidadão, ainda quando haja praticado algum delito. Impreterivelmente, a onipotência jurídico-penal do Estado deve contar com freios ou limites que resguardem os invioláveis direitos fundamentais dos indivíduos. Esses limites materializam-se através de princípios fundamentais consagrados na Constituição e caracterizam um Estado pluralista e democrático.
Com essa perspectiva, o grande debate que se coloca é, pois, a legitimação do Direito Penal, ou seja, sua justificação social como fenômeno interventivo nas relações sociais.
Por bem considerar que a importância do sistema penal não mais deve ser buscada nos inúmeros delitos positivados em seus códigos, porém na possibilidade e compromisso de estar de acordo com a realidade de cada país e, por conseguinte, solucionar e preencher as lacunas que a evolução dos povos vai deixando nas leis e no próprio Direito.
Não se pode negar que, sendo espelho da realidade social vigente e, segundo os paradigmas tidos pela sociedade como relevantes, o Direito Penal deve estar em constante evolução, amoldando-se ao contexto dos valores das mais variadas ordens insertas no seio social em que se faz presente sua aplicação. Desse modo, utilizada pelo Direito Penal como meio de controle social, a pena precisa ser justificada à luz dos princípios e valores constitucionais.
Defendemos que uma atuação estatal penal restrita aos delitos efetivamente graves em relação aos indivíduos e ao grupo social, desde que observados os postulados expressos nas convenções internacionais de direitos humanos e os princípios constitucionalmente positivados, ainda tem uma tarefa positiva a cumprir na construção de uma sociedade mais democrática, justa e igualitária. Consequentemente, não é possível admitir as teses que difundem a abolição do sistema punitivo, já que o Direito Penal tem uma importância fundamental para as relações humanas como ordem de paz e proteção.
No entanto, entendemos também que a adoção de estratégias de confrontação de fatos socialmente danosos deve vir atrelada às prerrogativas de liberdade e dignidade da pessoa humana, inspirada, assim, em critérios de racionalidade e eficiência.
A intervenção racional do legislador deve pautar-se pelo estabelecimento de tipos penais incriminadores bem delimitados e de fácil comprovação no plano processual. De outro modo, essa interferência termina por ampliar alegoricamente o âmbito de operatividade do Direito Penal, acarretando a produção das mais graves violações das garantias constitucionais, o que resulta em uma intervenção de natureza simbólica.
Por essas razões, a busca de meios de luta inspirados na efetividade reclama a recuperação das exigências de taxatividade e determinação, em sintonia com a ideia de um direito penal mínimo.
Sem embargo, temos ciência de que essa política criminal vai de encontro àquela mais disseminada na atualidade, derivada do neokantismo conservador, que encontra nos movimentos de lei e ordem seus maiores expoentes. Todavia, se o que se busca é uma verdadeira justiça criminal, um Direito Penal mais justo, em detrimento de ordenamentos que possuem fortes resquícios de um sistema inquisitivo, é necessária uma releitura da legislação ordinária dirigida pelos valores constitucionais.
Por óbvio, devem ser submetidas à pena tão-somente algumas condutas antijurídicas, o que acentua o caráter fragmentário do Direito Penal. Esse processo seletivo de condutas merecedoras de coerção penal é matéria de permanente revisão, sendo manifesta a tendência à redução na política criminal dos países centrais, que propugnam abertamente a “descriminalização” ou “despenalização” de inúmeras condutas. Esse movimento é capitaneado pela constatação de que a pena não retribui o injusto, nem sua culpabilidade, mas deve guardar certa relação com ambos, como único caminho pelo qual pode aspirar a garantir a segurança jurídica, e não afrontá-la.
Por decorrência lógica, a descriminalização deveria ocorrer em relação a infrações que não ofendam, de forma expressiva, os novos interesses tutelados. Já a penalização se deveria dar em face de delitos que tenham relevância social, por ofenderem significativamente interesses protegidos na órbita constitucional. Isso porque a proteção de bens jurídicos relevantes não apenas vincula o legislador, mas, sobretudo, o Poder Judiciário, nos momentos de interpretação e aplicação das leis.
Certo é, também, que o Direito Penal deve ser visto como ultima ratio, de sorte que sua aplicação só estará legitimada à medida que haja efetiva lesão ou concreta ameaça a um bem jurídico determinado e os meios dessa solução impliquem o menor conteúdo possível de irracionalidade.
Tendo por base essas constatações, defendemos um processo de gradual abolição dos delitos cuja objetividade jurídica tutelada tenha cunho exclusivamente econômico, em prol da “administrativização” do Direito Penal nesse ponto, como forma de observar (e preservar) o Princípio da Intervenção Mínima. Em um estágio intermediário, entendemos que as penas pecuniárias e alternativas são suficientes (ao lado das sanções administrativas) para lidar com a criminalidade econômica isolada, uma vez que a pena carcerária, nesse âmbito, há muito já demonstrou sua defasagem e plena ineficácia.
Nesse sentido, a extinção de punibilidade de delitos econômicos, com o propósito de legalizar e repatriar capitais lícitos é plenamente legítima, tanto sob o ponto de vista do interesse social envolvido, quanto pelo interesse político criminal, consagrando uma verdadeira ruptura com as tradicionais propostas de combate ao crime organizado transnacional.
Em última análise, visa-se atender às expectativas e anseios da sociedade, no sentido de estimular as pessoas físicas e jurídicas a aderirem a um novo modelo de relação entre o fisco e o contribuinte (cidadania fiscal) que contempla a regularização, mediante tributação favorecida, de sua situação fiscal pretérita, com o objetivo de ensejar a repatriação de capitais e declaração de recursos gerados pela atividade econômica lícita, não declarados na forma da legislação vigente.
Ademais, uma medida que extinga a punibilidade de crimes contra a ordem tributária e contra o sistema financeiro nacional nada mais faz do que reconhecer a impossibilidade (ou ineficácia) de o Direito Penal conferir efetiva tutela aos bens jurídicos lesionados por essas condutas ilícitas, o que se amolda perfeitamente a uma política criminal liberal, que consagra a desvinculação entre problemas estatais e a tutela penal.
Em face desse crescente movimento de “administrativização” (uso do Direito Administrativo Sancionador), esses tipos tendem naturalmente se não ao desaparecimento, a uma total reestruturação, por imperativo da própria lógica do laissez-faire, prevalecendo o liberalismo econômico.
Não se nega que a Economia constitui um bem jurídico que merece proteção, contudo não pela seara penal. Os atos contra a Economia devem ser juridicamente analisados pelos demais ramos do Direito, que podem diligente e celeremente dar uma resposta a essa criminalidade, sem o receio de invadir direitos individuais fundamentais que o Direito Penal está obrigado a resguardar. Recordemos que o discurso pela descriminalização nessa área vem pautando as discussões criminais em âmbito mundial e que essa tendência não se refere à abolição de condutas, mas representa tão-só a defesa de suas remessas para outras áreas, persistindo a conduta antieconômica como um ilícito a ser punido.
Concomitantemente, visualiza-se nos processos de legalização e repatriação de capitais medidas inegavelmente benéficas ao país, com os objetivos de promover a melhoria do ambiente institucional e o desenvolvimento interno, através da remoção dos obstáculos que, ao longo das últimas décadas, emergiram dos sucessivos planos de estabilização monetária fracassados, quebrando regras contratuais, desrespeitando direitos adquiridos e acarretando incertezas jurídicas para os agentes econômicos.
No plano econômico, essas medidas possibilitarão atenuar os efeitos do longo período inflacionário que induziu poupadores e investidores a buscar proteção contra a desvalorização da moeda em outros ativos financeiros, moedas estrangeiras ou sistemas econômicos, bem como neutralizar o aumento da carga fiscal, consequência de medidas emergenciais, para fazer frente às recentes crises internacionais. Permitir-se-á, ainda, o acréscimo da arrecadação tributária no médio-longo prazo, pela transformação de arrecadação potencial em efetiva, mediante a incidência dos tributos sobre as receitas futuras do investimento financeiro.
Com isso, igualar-se-á o Brasil a diversos países que já se utilizaram de mecanismos semelhantes para atrair capitais nacionais anteriormente investidos em outros sistemas bancários, inclusive em países com tributação favorecida (paraísos fiscais). Isso induzirá a redução dos níveis de dependência de moedas estrangeiras, à medida que tais capitais, ao reingressarem no Brasil, reforçarão as reservas cambiais líquidas e permitirão investimentos em infraestrutura, para o financiamento de projetos estratégicos.
O que, de fato, pende de resolução é a amplitude da anistia penal e da remissão fiscal que seriam concedidas. Todavia, cogitamos que talvez a medida despenalizadora seja suficientemente hábil a estimular a regularização e repatriação, diante do atual cenário econômico, sendo desnecessária a tributação favorecida sobre esses bens e direitos, uma vez que o entrave penal constitui, por si só, um sério impedimento ao retorno desses capitais.
No que diz com as implicações fiscais, não negamos que a remissão implica o beneficiamento de um contribuinte em relação aos demais, porém, do ponto de vista penal, o repatriamento é medida salutar, pois efetiva um discurso voltado à intervenção mínima, caracterizador de um Estado Democrático de Direito.
É necessário colocar um freio ao ímpeto criminalizante do legislador e medidas como essa são um primeiro impulso, possibilitando que o contribuinte outrora sonegador, especialmente por motivos ligados à conjuntura político-econômica, ou seja, em flagrantes hipóteses de estado de necessidade ou inexigibilidade de conduta diversa, possa legalizar seus recursos lícitos, já que hoje o Brasil apresenta uma conjuntura favorável. Dentre os delitos que possivelmente esse contribuinte poderia incorrer destacamos os crimes de evasão de divisas, sonegação fiscal e lavagem de dinheiro.
Perante uma nova ordem econômica mundial que, por sua vez, traz profundas modificações axiológicas no âmbito das relações da sociedade globalizada, a abordagem do Direito Penal torna-se anacrônica, mormente quando se depara com o fenômeno da criminalidade econômica organizada de caráter transnacional. Nessa perspectiva, exige-se um novo e eficaz posicionamento dos Estados para implementação de um efetivo combate, através da adoção de medidas alternativas de controle da disseminação da prática delitiva na sociedade. Ressalte-se, uma vez mais, que é necessário adotar uma linha crítica que não se desvincule dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.
Nessa senda, entendemos que a legalização e o repatriamento de capitais são figuras que (res)surgem num momento histórico adequado, em que a liberdade de expressão propicia um debate isonômico, que, por sua vez, possibilita a formação de correntes divergentes de entendimento, com amplo potencial de argumentação e investigação.
Um dos argumentos lançados contra as medidas de repatriação é exatamente a dificuldade de domínio, em face da alta complexidade que atualmente atingem as organizações criminosas interestatais.
Ocorre que, no âmbito internacional, reconhece-se que o Brasil possui uma das polícias mais avançadas do mundo e que dispomos de órgãos de inteligência a cada dia mais eficientes. Os incomensuráveis gastos com a contenção da criminalidade organizada poderiam, em parte, ser destinados à fiscalização do processo de repatriação, o que maximizaria suas chances de plena eficácia. Outrossim, não é difícil perceber que a provável arrecadação decorrente justificaria plenamente os investimentos estatais com a logística necessária. Porém, é imprescindível a coalizão entre diversos órgãos com esse objetivo comum, dentre eles a Polícia Federal, o Ministério Público, a Receita Federal, o Banco Central do Brasil, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional (DRCI). Entendemos também que essa deve ser uma das prioridades a serem debatidas pela Estratégia Nacional de combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA).
A criação de Varas Federais especializadas representa uma grande evolução no cenário nacional, a despeito das críticas acerca de sua constitucionalidade. A tendência é a aplicação dessa experiência bem sucedida no âmbito federal à Justiça Comum, porquanto as justiças estaduais estão demasiadamente atrasadas nesse ponto, basta observar os raríssimos casos de processos por lavagem de capitais e sonegação fiscal que lá tramitam e os irrisórios índices de condenações.
Contudo, no combate a esses crimes com feição transnacional e vasta complexidade não basta a união de esforços entre órgãos internos; é imprescindível a ampliação da cooperação jurídica internacional, pela utilização efetiva de acordos bilaterais e tratados multilaterais de direito penal internacional, além da elaboração de uma lei geral de cooperação internacional, que regule os procedimentos necessários.
O que se defende é uma maior atenção a essa área, dada a relevante lesão que causa à sociedade, infinitamente superior aos crimes dos quais se ocupa o Direito Penal clássico, porém não sob o enfoque criminalizante.
Concluímos pela premência da ampla interação entre o Direito Penal, a Criminologia e a Política Criminal, de modo a orientar o legislador e o aplicador do Direito na solução desses novos problemas com os quais a sociedade moderna se defronta. Argumenta-se, então, que os projetos relativos à legalização e repatriação de capitais encontram substancial amparo nas orientações consagradas pela Lei Fundamental, não se tratando apenas de planos de cunho arrecadatório.
É manifesto o significativo percentual de riquezas brasileiras investidas no exterior irregularmente. Bem assim, tem-se verificado que o Direito Penal não consegue intervir satisfatoriamente no campo da Economia, por vez que sua estruturação clássica nunca almejou essa atuação. Por isso, a nosso juízo, há plena legitimidade para implementar as medidas despenalizadoras intentadas.
Sem embargo, retomando a vinculação do presente trabalho à postura pluralista exigida do hermeneuta da ciência jurídica, admitimos que não é possível a obtenção de uma única resposta como correta para os problemas aqui apresentados, já que, do contrário, negaríamos a própria base do sistema. Considerando que a função do intérprete é procurar, dentre as várias interpretações possíveis, aquela mais adequada, do ponto de vista racional, para o caso concreto, entendemos que essa missão foi cumprida, na medida em que, para além de expor diversos desdobramentos que a atualidade apresenta para a problemática enfocada, apresentamos uma argumentação lógico-dedutiva particular, embasada no levantamento realizado e orientada à busca de soluções factíveis, que tenham a potencialidade de contribuir para a elucidação do questionamento apresentado.
Essa é, portanto, nossa singela contribuição para o estudo das ciências criminais, no que tange à criminalidade econômica e à repatriação de capitais, sob o enfoque da Política Criminal brasileira contemporânea. A partir desse estudo introdutório, foi possível identificar uma progressiva especialização dentro do Direito Penal, que passa a dividir-se em núcleos bastante delimitados e com pretensão de autonomia. Porém, não se pode olvidar que ainda estamos tratando de Direito Penal e que, por isso, não se pode abrir mão de determinadas diretrizes essenciais.
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[1] BANCO CENTRAL DO BRASIL. Capitais Brasileiros no Exterior (CBE). Disponível em: <http://www4.
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[2] BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 2002.
[3] JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal: parte general. 4. ed. corr. ampl. Granada: Comares, 1993, p. 02-03.
[4] CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
[5] CERVINI, Raúl; ADRIASOLA, Gabriel. El derecho penal de la empresa: desde una visión garantista: metodología, criterios de imputación y tutela del patrimonio social. Buenos Aires: B de F, 2005, p. XI.
[6] RODRIGUES, Anabela Miranda. A determinação da medida da pena privativa de liberdade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 268.
[7] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 11. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2007, v. 1.
[8] Segundo Norberto Bobbio, a par do crescente processo de universalização dos direitos humanos verificado no transcorrer do século XX, constata-se um nítido processo de proliferação desses direitos, fenômeno que se deve, precipuamente, à consideração do homem não mais como ente genérico, abstrato, mas como um ser em sua especificidade, ou, dito de outra forma, na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 67-68).
[9] FELDENS, Luciano. A constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 23.
[10] A definição de uma “Constituição Penal”, como um conjunto de diretrizes normativas estabelecidas à organização e ao funcionamento do sistema jurídico-penal requerido pela Constituição, as quais compreendem os princípios e regras gerais respeitantes à matéria criminal (penal e processual penal) positivados na ordem constitucional, tem por finalidade estabelecer limites dentro dos quais a construção da política criminal haverá de situar-se para que legitimamente se desenvolva (Ibid.).
[11] HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1991.
[12] HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1991.
[13] HASSEMER, Winfred. Três temas de direito penal. Porto Alegre: ESMP, 1993, p. 47-48.
[14] GAUER, Ruth Maria Chittó. Interdisciplinariedade & Ciências Criminais. In: FAYET JÚNIOR, Ney (Org.). Ensaios penais em homenagem ao Professor Alberto Rufino Rodrigues de Sousa. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2003, p. 681-691.
[15] CIPRIANI, Mário Luís Lírio. Direito penal econômico e legitimação da intervenção estatal – Algumas linhas para a legitimação ou não-intervenção penal no domínio econômico à luz da função da pena e da política criminal. In: D’ÁVILA, Fábio Roberto; SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder (Coord.). Direito penal secundário: estudos sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 457.
[16] Parece-nos evidente que aqueles que dispõem de quantias no exterior enfrentam grandes entraves para usufruir desses valores, mesmo que fora do Brasil, ainda mais se considerarmos a espantosa ampliação dos meios de controle internos e internacionais. Desse modo, essas aplicações mantidas irregularmente beneficiam muito mais as instituições financeiras transnacionais e os países que a elas dão guarida do que ao próprio titular, que dificilmente consegue multiplicar sua riqueza, quando muito mantê-la.
[17] Muito menos se legitimaria a ingerência do Direito Penal para imposição de interesse de menor relevo, como sucede com a chamada “administrativização do Direito Penal”, ou com a expansão exagerada para figuras de perigo abstrato e de formas culposas, às vezes sem resultado material significativo, com o recurso a elementos normativos com referências a outras leis.
[18] ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 2.
[19] REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002, v. 1, p. 16.
[20] Lei de repatriação de capitais injeta US$ 4,7 bi na economia argentina. Buenos Aires: Agência Ansa, 02 set. 2009. Disponível em: <http://wwo.uai.com.br/UAI/html/sessao_4/2009/09/02/em_noticia
_interna,id_sessao=4&id_noticia=125751/em_noticia_interna.shtml>. Acesso em: 14 set. 2010.
[21] GONÇALVES, Claudinê. Anistia fiscal italiana tirou bilhões da Suíça. Lugano: swissinfo.ch, 16 dez. 2009. Disponível em: <http://www.swissinfo.ch/por/economia/Anistia_fiscal_italiana_tiroubi
lhoes_da_Suica.html?cid=7906964&rss=true>. Acesso em: 14 set. 2010.
[22] TURKEY WINS $31.5 billion from repatriation law. Istanbul: World Bulletin, 04 jan. 2010. Disponível em: <http://www.worldbulletin.net/news_detail.php?id=52170>. Acesso em: 14 set. 2010.
[23] RIBEIRO, Luís Reis. Offshores: amnistia fiscal do governo terá alcance limitado e agrava a injustiça. Lisboa: ionline, 08 maio 2010. Disponível em: <http://www.ionline.pt/conteudo/58890-offshores-amnistia-fiscal-do-governo-tera-alcance-limitado-e-agrava-injustica>. Acesso em: 14 set. 2010.
[24] Para um aprofundamento no tema recomendamos a leitura de VELLOSO, Andrei Pitten. O princípio da isonomia tributária: da teoria da igualdade ao controle das desigualdades impositivas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. 382p., obra na qual o autor trata do princípio da isonomia tributária à luz da teoria geral da igualdade e da justiça fiscal.
[25] O que motiva a criação de novas causas extintivas de punibilidade é sempre algum interesse estatal de conveniência ou oportunidade política (PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro. v. 1: parte geral, arts. 1º a 120. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 77).
[26] ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 202/204.
[27] Uma das principais controvérsias dos projetos é a definição de qual será o percentual da alíquota a ser cobrada a título de imposto de renda. A partir do exercício de 2011 (ano-calendário de 2010), a alíquota mínima de IRPF de 7,5% refere-se a uma base de cálculo mensal de R$ 1.499,16 até R$ 2.246,75. A alíquota sobe para 15% para base de cálculo entre R$ 2.246,76 até R$ 2.995,70 e atinge 22%, sobre uma base de cálculo mensal de R$ 2.995,71 até R$ 3.743,19. O teto de 27,5% corresponde a rendimentos superiores a R$ 3.743,19. (Alíquotas do Imposto de Renda Retido na Fonte. Disponível em: <http://www.receita.fazenda.gov.br/aliquotas/ContribFont.htm>. Acesso em: 17 set. 2010). No PLC 113/03, a alíquota sugerida originalmente era de 5%, indistintamente. Na redação original do PLC 5.228/05, o tributo incidente seria de 3%, em caso de repatriação, ou de 6%, em caso de mera legalização e manutenção no exterior. Após sucessivas emendas, sugeriu-se o aumento da primeira alíquota para 13% e a segunda para 20%. O PLS 424/03 não trouxe previsão expressa de alíquotas. Já o PLS 354/09 prevê que o imposto seja cobrado à alíquota de 5%, em caso de declaração de bens e direitos sonegados já no território nacional, ou 10%, para inclusão de bens e direitos sonegados no exterior, tanto para casos de repatriação, quanto apenas para legalização. Duas particularidades desse último projeto merecerem ser aqui destacadas: o desconto de 5% para pagamento em cota única ou possibilidade de parcelamento em até 10 (dez) parcelas mensais de igual valor, e a redução das alíquotas de tributação à metade se o contribuinte aplicar no mínimo 50% do valor dos bens e direitos adicionados em cotas de fundos de investimentos destinados a aplicação de recursos em projetos de infraestrutura, habitação, agronegócio, inovação e pesquisa científica e tecnológica e, ainda, em bônus ou títulos de dívidas de emissão de empresas brasileiras ofertados nos mercados externos.
Mestrando em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Especialista em Direito Penal e Política Criminal: Sistema Constitucional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal (IBRAPP) e Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE). Advogado criminal em Porto Alegre/RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MASI, Carlo Velho. Considerações acerca da repatriação de capitais no contexto político-criminal brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 nov 2012, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32494/consideracoes-acerca-da-repatriacao-de-capitais-no-contexto-politico-criminal-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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