O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, é um profissional honrado e íntegro. Sua atuação na Ação Penal 470 (processo do mensalão) não deixa margem à dúvida quanto a sua competência e zelo com a coisa pública, tanto assim que o STF condenou 25 dos 38 réus por ele acusados – entre os quais altos dirigentes do Partido dos Trabalhadores, banqueiros e parlamentares da base aliada do governo.
Sucede que Gurgel, por ocasião do discurso de saudação ao novo presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, enveredou por uma trilha perigosíssima, e, o que é pior, lançou mão de argumentos que não encontram respaldo algum na realidade facto-jurídica para criticar a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 37/2010 pela respectiva Comissão Especial da Câmara dos Deputados – proposta que, em razão de uma campanha sórdida, rasteira e mistificadora, vem sendo chamada de “PEC da Impunidade”.
Pois bem, no afã de agradar a setores do Ministério Público que almejam retirar das Polícias Judiciárias (Federal e Civis) a exclusividade da investigação criminal, declarou o eminente procurador que a PEC 37 retira do Ministério Público o poder de investigação. É lamentável ter de dizê-lo, mas a declaração de Roberto Gurgel não passa de uma falácia, de um engodo, de uma bazófia sem pé nem cabeça, que tem por finalidade, única e exclusiva, atender a interesses meramente corporativos. Dita por um presidente de associação, poderia até ser relevada. Mas não pode passar em branca nuvem quando o autor do disparate é justamente o chefe do Ministério Público Federal, e, o que é igualmente grave, pronunciada durante a posse do presidente do Supremo Tribunal Federal, acompanhada por milhões de espectadores em todo o país.
Ao repartir as atribuições de cada órgão do sistema de justiça criminal (polícia, ministério público, defensoria pública e judiciário), o legislador constituinte estabeleceu que a investigação criminal caberia, com exclusividade, às Polícias Civis e à Polícia Federal, a teor do disposto no art. 144 e parágrafos da CF/88. Em relação ao Ministério Público, por se tratar de órgão acusatório, logo parcial, entendeu-se que não lhe seria lícito acumular as funções de investigador e acusador, uma vez que tal acúmulo representaria um desequilíbrio na relação processual, a mitigar os princípios do contraditório e da ampla defesa. Assim, de acordo com o art. 129 da CF/88, compete ao Ministério Público (promotores de justiça e procuradores da República), como titular da ação penal, requisitar ao delegado de polícia a investigação das infrações penais - exceto as militares, que são levadas a cabo pelas corregedorias das polícias militares e julgadas por tribunais militares ou varas especializadas da justiça militar -, bem como o controle externo da atividade policial. Isso é o que decorre da Constituição Federal. O mais é invencionice e egolatria – desejo de abarcar o mundo e apego fetichista a modelos processuais alienígenas.
Tanto no caso do mensalão quanto em outros de repercussão nacional, o Ministério Público não realizou investigação criminal nenhuma, cabendo-lhe tão somente requisitar diligências à polícia. Na esfera federal, quem realiza as investigações é, por óbvio, a Polícia Federal, da mesma forma que a Polícia Civil o faz em âmbito estadual. Uma vez concluído o inquérito policial e remetido à Justiça, pode haver, aqui ou ali, novas requisições por parte do Ministério Público – as chamadas cotas promotoriais –, até que ele, o órgão ministerial, convicto da existência do crime e da responsabilidade da pessoa indiciada, promova a denúncia do acusado.
Chamo a atenção dos prezados leitores para uma análise mais acurada dos fatos e da legislação, pois o que a PEC 37 objetiva é exatamente disciplinar a investigação criminal no país, impondo direitos, deveres e prerrogativas aos órgãos, inclusive ao Ministério Público, a fim de que este não invada a seara policial realizando investigações criminais que possam, mais adiante, ser anuladas ante a falta de previsão legal. Dizendo de outra forma, a PEC 37 não retira atribuição nenhuma do MP, pois tal atribuição jamais existiu em nosso ordenamento jurídico. Há, inclusive, alguns habeas corpus tramitando no STF com o objetivo de trancar ações criminais oriundas de investigações realizadas pelo MP. É até possível que, dada a força do Ministério Público e a presença constante do procurador-geral da República junto aos ministros daquela casa, o STF acabe decidindo favoravelmente ao MP, o que, em nosso sentir, configuraria um grande erro, uma vez que teríamos o reconhecimento não propriamente de uma norma ou regra explícita autorizando a investigação pelo MP, mas uma interpretação contrária ao próprio espírito da Constituição Federal, que, em matéria de limitação dos direitos e garantias fundamentais (no caso, a limitação do jus libertatis do investigado), só admite tal redução por meio de normas explícitas.
Convém, portanto, não confundir a persecução criminal desempenhada pelo MP na fase processual propriamente dita – o que ocorreu na Ação Penal 470 e em todas as ações penais públicas em trâmite no país – com a persecução criminal na fase pré-processual, isto é, a investigação criminal, cabível, por expressa disposição constitucional, às polícias judiciárias. Trata-se de fases distintas e complementares, mas afeitas a órgãos específicos e sem vinculação ou subordinação entre si, como o são a polícia e o ministério público.
É profundamente lamentável, por essas e outras razões, o discurso do douto Roberto Gurgel. Sobretudo porque passa para a população a impressão de que a PEC 37 é um golpe contra o Ministério Público, quando tal diploma legal representa justo o contrário: mantém invioladas todas as prerrogativas do Ministério Público no tocante à sua atuação no âmbito criminal, segundo o desejo do legislador constituinte de 1988, ao mesmo tempo em que reafirma a exclusividade das polícias judiciárias, comandadas por delegados, para levar a efeito as investigações criminais em suas respectivas esferas de atuação, seja de ofício, seja por provocação de terceiros.
Se tiver de haver alguma mudança para que o MP obtenha poderes de investigação criminal típicos de polícia (fase pré-processual), que seja feita por meio de Proposta de Emenda à Constituição. Pois, em um estado democrático de direito, é direito inviolável do investigado saber quem é o órgão responsável por sua investigação, por sua acusação, por sua defesa e por seu julgamento – tudo isso estabelecido em normas constitucionais e infraconsticucionais explícitas. Baralhar o sistema processual, como pretendem certos setores anacrônicos do Ministério Público, é fragilizar o rol de direitos fundamentais do indivíduo e retirar poderes das polícias, diminuindo-lhes a força e o prestígio. E quem garante que isso será melhor para a sociedade? O MP é que não pode dar essa garantia. Mas cabe a ele, por meio dos seus representantes, dignar-se a falar a verdade e não distorcer os fatos de maneira a induzir as pessoas ao erro e a pré-julgamentos.
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