SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O polo passivo do processo sancionador nos casos de transferência de outorga. 2.1. Permanência da antiga detentora da outorga no polo passivo do processo sancionador. 2.2. Processo sancionador em que há possibilidade de aplicação da sanção de caducidade. 2.3. Possibilidade de ocorrência de fraude. 3. Parâmetro para aplicação da sanção de multa. 4. Extinção da antiga detentora após a transferência de outorga. 4.1. Extinção decorrente de fusão e incorporação. 4.2. Extinção simples. 5. Conclusão. 6. Referências bibliográficas.
RESUMO: No contexto das outorgas que a Administração Pública confere aos particulares para prestarem serviços públicos, o presente trabalho busca analisar os impactos da ocorrência de transferência de outorga, com anuência do poder concedente, e das alterações societárias a elas inerentes, no curso de um processo administrativo sancionador, especialmente no seu polo passivo.
PALAVRAS-CHAVE: Administrativo – Serviço Público – Transferência de outorga – Processo administrativo sancionador.
ABSTRACT: In the context of contracting out of public services, this study analyzes the impact of transfer of the grants of public services, after prior approval from Public Administration, and the respective corporate changes, in the punitive administrative process.
KEY WORDS: Administrative – Public Service – Grant transfer – Punitive administrative process.
1. Introdução.
A Administração Pública atua, em diversas ocasiões, na qualidade de poder concedente, ou seja, como o ente que autoriza o particular a atuar em determinada atividade. No presente trabalho, focar-se-á no ato que autoriza o particular a prestar serviços públicos (autorização, permissão ou concessão), genericamente denominado de outorga. Dessa forma, o particular, por meio de sua outorga, pode prestar, por exemplo, serviços de transportes, terrestres, aquaviários ou de aviação, energia elétrica, água, telecomunicações, mineração, etc[1].
Dessa relação jurídica que se forma decorre o poder sancionatório da Administração Pública, consubstanciando o viés repressivo do seu poder de polícia. Em verdade, o exercício do poder de polícia dispensa a existência de uma relação jurídica formal entre a Administração Público e o particular, em razão da amplitude desse poder, advindo diretamente da generalidade e abstração das normas jurídicas.
Marcelo Caetano, em sua clássica conceituação, afirma que o poder de polícia “é o modo de atuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das atividades individuais suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objeto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que a lei procura previnir”[2]. José dos Santos Carvalho Filho, por sua vez, identifica o poder de polícia como “a prerrogativa de direito público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade”[3].
A existência da outorga, de qualquer forma, reforça o poder de polícia repressivo, por meio de qual se aplicam sanções aos particulares que praticaram infrações administrativas[4], o que é feito por meio de um processo administrativo sancionador, denominado neste trabalho apenas de processo sancionador.
No curso desses processos, contudo, é possível que ocorram transferências da outorga, por meio do qual o particular, com anuência do poder concedente, transfere a concessão, a permissão ou a autorização para outro particular interessado em prestar o serviço público[5].
Nesse contexto, o objeto do presente trabalho é analisar os impactos de tais transferências de outorga, e as alterações societárias a elas inerentes, no polo passivo do processo administrativo sancionador em curso.
2. O polo passivo do processo sancionador nos casos de transferência de outorga.
Como dito, no curso de um processo sancionador pode acontecer de a outorga para prestação do serviço ser transferida para outra pessoa jurídica. Nessa circunstância, é de se perquirir se o polo passivo do processo deve permanecer o mesmo ou se a nova detentora da outorga deveria assumir esse lugar.
Deve-se destacar, de início, que o presente trabalho tratará apenas do caso de transferência de outorga, não abrangendo casos como transferência de controle, aquisição de pessoa jurídica ou fusão.
A ressalva é necessária porque a transferência da outorga se afigura como situação própria, porquanto representa, em linhas gerais, a situação em que um bem da sociedade empresária passa para outra. As personalidades jurídicas das empresas envolvidas não se comunicam nem estão em jogo, já que o negócio guarda relação apenas com o bem objeto da transação, in casu, a outorga. Situação diversa, com outro regramento, ocorre quando, por exemplo, uma empresa compra a outra, adquirindo-a em sua integralidade.
2.1. Permanência da antiga detentora da outorga no polo passivo do processo sancionador.
A questão, portanto, está em saber se o processo sancionador deve ser respondido por quem estava à frente da prestação do serviço à época do cometimento da infração ou por quem adquiriu a outorga. Enfim, é preciso saber se a transferência da outorga no curso do processo influencia de alguma maneira na ocupação do polo passivo.
Há, pois, duas possíveis respostas ao questionamento formulado, a saber: (i) o processo sancionador deve ser respondido pela nova detentora da outorga para prestação do serviço; ou (ii) o processo sancionador deve persistir contra a pessoa jurídica que praticou a infração, ou seja, contra a pessoa jurídica que detinha a outorga à época do cometimento da infração.
Pois bem.
Para adoção da primeira solução (a nova detentora da outorga passa a ocupar o polo passivo do processo sancionador), é preciso partir da premissa de que as sanções administrativas estariam vinculadas ao bem – à outorga –, o que consubstanciaria uma espécie de obrigação propter rem. Acontece que as obrigações propter rem estão sempre vinculadas a um direito real, entendido este, a grosso modo, como aquele destinado a regular a relação entre o homem e os bens corpóreos.
E a qualificação de um direito como real depende de expressa previsão legal. Nessa linha é que o art. 1.225 do Código Civil, que arrola os direitos reais, é considerado pela doutrina como taxativo ou numerus clausus. Por conseguinte, em razão de corresponderem a obrigações necessariamente imbricadas a direitos reais, as obrigações propter rem também dependem, por via oblíqua, de previsão legal para se transmitirem ao adquirente do bem. Não há como, sem base legal para caracterizar um bem como direito real, entender-se vinculada a este mesmo bem outra obrigação, que o seguirá independentemente de quem venha a ser o titular do aludido bem.
No caso em tela, a outorga para prestação do serviço não pode ser considerada como um direito real, em razão da falta de previsão legal. Nesse sentido, por falta de base legal também não é possível considerar a responsabilidade pela infração como obrigação propter rem.
Nesses termos, e a princípio, inexiste embasamento para atribuir a outrem, que não participou do cometimento da infração, a responsabilidade para ocupar o polo passivo do processo sancionador e, por consequência, para sofrer a punição da sanção administrativa, apenas por ter adquirido a outorga.
O fato é que, no ordenamento jurídico e na jurisprudência, a transmissibilidade de obrigações em razão, por si só, da transmissão de um bem está sempre atrelada a um embasamento legal expresso, que não se encontra para a situação sob exame.
Mais uma vez é preciso alertar que a presente análise não guarda qualquer relação com o regramento para a transmissibilidade comum de obrigações, decorrente de transferência de controle ou aquisição de pessoas jurídicas. Nesses casos, pode-se dizer que em regra a pessoa jurídica adquirente assume as obrigações da pessoa jurídica adquirida.
A primeira solução, portanto, encontra-se afastada, por falta de alicerce legal. No entanto, interessante, de forma subsidiária, trazer à tona outro argumento que também torna frágil essa primeira solução. De fato, mesmo que se entenda não haver necessidade de base legal expressa, ainda assim se mostra frágil a tese da ocupação do polo passivo do processo sancionador pela nova detentora da outorga.
A primeira solução (nova detentora da outorga passando a responder pelo processo sancionador) também não encontra respaldo seguro na teoria do chamado fundo de comércio, atualmente regulada pela legislação como estabelecimento empresarial. Dentre outros motivos, porque no caso de transferência de outorga não há, necessariamente, transferência da totalidade do estabelecimento empresarial (trespasse), assim entendido como o conjunto de bens corpóreos e incorpóreos, englobando todos seus elementos, tais como ponto comercial, contrato de locação, nome empresarial, título ou nome de fantasia, expressões de propaganda, patentes, marcas, invenções, desenho industrial, aviamento, clientela, etc.
Afastada, pois, a possibilidade de a nova detentora da outorga passar a ocupar o polo passivo do processo sancionador, caso a transferência de outorga ocorra em seu curso, mister se faz apresentar as razões da pertinência da segunda solução, qual seja, a de que o processo sancionador deve persistir contra a pessoa jurídica que praticou a infração, ou seja, contra a pessoa jurídica que detinha a outorga à época do cometimento da infração.
Na verdade, aplica-se a regra geral, qual seja, a de que deve responder pela infração aquele que a cometeu. Mesmo havendo transferência de outorga no curso do processo sancionador, a antiga detentora da outorga deve continuar no polo passivo do processo e respondê-lo até o fim, sofrendo, inclusive e obviamente, a sanção administrativa, caso esta venha a ser aplicada.
De acordo com o arcabouço legal vigente, como regra geral, não há como transmitir toda essa responsabilidade ao novo detentor da outorga. Não se está posicionando aqui, ressalte-se mais uma vez, pela impossibilidade de transmissão dessas obrigações em todo caso. A aquisição de uma pessoa jurídica, por exemplo, é situação jurídica distinta, como já dito, porquanto em princípio, nesse caso, a responsabilidade pelos processos sancionadores pode sim ser transmitida.
Nos casos de transferência de outorga, objeto do presente trabalho, é que não há como, de plano, posicionar-se pela transmissibilidade da responsabilidade pelos processos sancionadores, de modo a fazer com que a nova detentora da outorga passe a ocupar, em substituição à anterior detentora, o polo passivo do feito. A regra é que a antiga detentora continue a responder pelo processo sancionador até o final, também porque, embora não crucial, mas com certa relevância, o sancionamento possui algumas balizas de cunho pessoal (princípio da pessoalidade).
2.2. Processo sancionador em que há possibilidade de aplicação da sanção de caducidade.
Casos há que se enquadram nas hipóteses de aplicação da sanção de caducidade, considerada a mais drástica dentre as sanções, porquanto implica a extinção da outorga.
Em suma, a caducidade é a perda da outorga. Assim, no caso de transferência dessa outorga para outrem no curso de processo sancionador passível de gerar sanção de caducidade, esta vai repercutir justamente no bem (a outorga). Há de se perguntar, então, se persiste a regra geral exposta no item anterior, no sentido de a antiga detentora da outorga continuar no polo passivo do PADO, ou se a nova detentora deveria assumir o polo passivo do processo e, por consequência, sofrer as consequências da caducidade.
Pois bem.
Nesse caso, a sanção administrativa é justamente a perda do bem objeto da transferência. Dessa forma, não é possível pensar que, ocorrendo essa transferência, nem a antiga detentora – por não mais deter a outorga – nem a nova detentora – por não ter participado do cometimento da infração – possam sofrer a punição.
Admitir que a transferência da outorga possa retirar da Administração Pública a possibilidade de aplicar a sanção de caducidade implica inverter a lógica do sistema. É permitir que, quando do cometimento das infrações mais graves, passíveis de gerar sanção de caducidade, esta não seja possível de ser aplicada. Tal raciocínio implica, sobretudo, a criação de obstáculos a que o Estado exerça suas competências legais.
Ora, se a transferência de outorga não impede que a Administração Pública aplique sanções menos graves, na esteira do que foi dito, tal transferência também não pode implicar impedimento quando se trata de infrações mais graves e, por isso mesmo, sujeitas a sanção mais drástica, consubstanciada pela perda da outorga.
Verifica-se, nesse caso, que a transferência de outorga, quando existe o risco de que ela seja perdida por meio da decretação de caducidade, equipara-se à venda de um bem litigioso. Na verdade, a nova detentora da outorga adquire-a, mutatis mutandis, em uma espécie de situação sub judice, porquanto existe outra pessoa – in casu, o poder concedente – disputando a outorga, com direito precedente à operação de transferência.
Em suma, quando da aquisição da outorga, já existia a pretensão punitiva da Administração Pública, que, por óbvio, não pode ser obstada por um negócio firmado entre os particulares, por mais que haja sido previamente submetido à anuência prévia do poder concedente.
O caso se assemelha, guardadas as devidas proporções, ao instituto da evicção, que se caracteriza pela perda do bem adquirido em favor de terceiro que tem direito anterior. Ou seja, na época da aquisição, o bem já era litigioso ou, ainda, caracterizando hipótese mais grave, pertencia a outro (venda de bem alheio).
Voltando especificamente ao objeto do presente trabalho, e aplicando o raciocínio até aqui exposto, a existência de processo sancionador passível de gerar caducidade representa direito anterior da Administração Pública sobre a outorga, fundado na pretensão punitiva nascida no momento do cometimento da infração administrativa. Desse modo, a nova detentora da outorga (adquirente do bem litigioso) não possui direito oponível à Administração Pública, uma vez que a caducidade, cuja incidência tornou-se possível antes mesmo da transferência da outorga, corresponde a espécie de sanção administrativa necessariamente ligada à outorga. Em outras palavras, a caducidade destina-se a desfazer a relação jurídica existente entre o administrado e a Administração.
Supor que a nova detentora pudesse obstar o poder concedente de lhe retirar a outorga, ou melhor, de fazer com que ela venha ser atingida pela sua decisão de aplicação de caducidade, seria, na prática, incentivar as transferências de outorga com o fim de esvaziar o alcance da sanção. Realmente, se após a transferência, mesmo existindo prerrogativa antecedente da Administração Pública, esta ficasse impedida de exercer seu mister, abrir-se-ia uma brecha para a impunidade, já que a outorga ficaria blindada à sanção de caducidade. Nem a antiga detentora poderia sofrê-la, pois já não mais detentora, nem a nova.
Por esses motivos é que a nova detentora pode sim perder a outorga por meio da aplicação de sanção de caducidade. Ressalta-se, nessa esteira, que a nova detentora não está sofrendo a punição administrativa, mas apenas sendo atingida pelas consequências reflexas da punição, em razão de ter adquirido bem litigioso. Isso porque o polo passivo do processo sancionador continuará sendo ocupado pela antiga detentora, esta sim que será formalmente punida.
Caso haja a perda da outorga, por aplicação de sanção de caducidade, há possibilidade de, se for o caso, a nova detentora reclamar seus direitos em face da antiga detentora, por meio de espécie de ação regressiva. No entanto, essa relação estabelecida entre os particulares, por conta da transferência da outorga de uma para outra, é de natureza estritamente privada, não cabendo à Administração Pública adentrar no seu mérito. O que se deve ter em mente é que a nova detentora da outorga não possui direito frente à Administração Pública, cuja pretensão punitiva, repita-se, já existia desde a prática da infração.
Seguindo essa linha, é recomendável que se busque trazer a nova detentora da outorga para integrar o processo sancionador, já que a eventual sanção de caducidade, caso aplicada, irá repercutir em sua esfera de interesses.
2.3. Possibilidade de ocorrência de fraude.
Deve-se alertar, ainda, para a possibilidade de ocorrência de fraude em casos de transferência de outorga. É que a antiga detentora pode se extinguir ou simplesmente dilapidar seu patrimônio a fim de tentar escapar da pretensão punitiva da Administração Pública. Nesses casos, configurado o abuso da personalidade jurídica, é possível aplicar-se a teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine), de origem inglesa.
Essa teoria é amplamente aceita no Brasil, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, até porque existe previsão legal específica para sua aplicação. Dessa forma, caracterizado o abuso, é possível afastar momentaneamente o manto da personalidade jurídica da sociedade empresária para atingir os bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. É o que dispõe o art. 50 do Código Civil:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
O instituto também é previsto na Lei nº 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor – CDC:
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
O Superior Tribunal de Justiça – STJ possui entendimento, aliás, de que a dissolução irregular da sociedade empresária, sem deixar bens para garantir os débitos, constitui causa de aplicação da teoria em tela, redirecionando a execução ao patrimônio dos sócios[6].
Casos como a extinção da pessoa jurídica, sem deixar bens para pagar os débitos, seguida da criação de nova pessoa jurídica, com os mesmos sócios e praticamente o mesmo objeto, também podem ser considerados um abuso, de modo que a nova empresa e seus sócios podem eventualmente ser instados a garantir o adimplemento das dívidas da pessoa jurídica extinta.
3. Parâmetro para aplicação da sanção de multa.
Partindo da premissa já exposta de que a antiga detentora deve continuar no polo passivo do processo sancionador, mesmo tendo ocorrido transferência de outorga no seu curso, é de se indagar se, para o cálculo do valor da sanção de multa, deve ser considerada a capacidade econômica da antiga ou da nova detentora da outorga.
In casu, como a infração foi cometida pela antiga detentora e é ela que vai constar no polo passivo do processo sancionador até o final, inclusive sofrendo a punição, a capacidade econômica a ser levada em consideração para o cálculo da multa deve dizer respeito à antiga detentora. Se é ela que vai arcar com o pagamento da multa, sua receita líquida operacional, ou outro critério que venha a ser utilizado, é que deve ser levada em conta.
4. Extinção da antiga detentora após a transferência de outorga.
Primeiramente, é preciso dizer que a extinção da pessoa jurídica pode ser uma extinção simples ou uma extinção decorrente de casos como fusão e incorporação. Nesta última hipótese, a extinção decorre de uma sucessão empresarial, ao passo que naquela a pessoa jurídica simplesmente encerra suas atividades, não aderindo a nenhuma pessoa jurídica ou conglomerado empresarial nem continuando a atividade empresarial.
Como o procedimento a ser adotado pela Administração Pública difere num e noutro caso, mister se faz tratar os temas em tópicos separados, começando pelos casos em que a extinção resulta de sucessão empresarial, sobre os quais a manifestação é mais sucinta.
4.1. Extinção decorrente de fusão e incorporação.
Na verdade, na fusão e na incorporação só é possível falar em extinção em sua acepção jurídica, já que no mundo fático ela não ocorre. Há uma continuidade da atividade empresarial, só que em princípio dirigida por outra pessoa jurídica, a que incorporou a anterior ou a originada da fusão. É o que se chamada de sucessão empresarial.
Nesses casos, a regra é bastante simples, pois a nova sociedade empresária sucede a anterior – que se extinguiu – em sua integralidade, assumindo seu ativo e passivo e, por conseguinte, passando a responder aos processos sancionadores que ela respondia. Enfim, o polo passivo dos processos antes ocupado pela pessoa jurídica que foi extinta vai ser ocupado pela pessoa jurídica que lhe sucedeu, seja a incorporadora seja a que se originou da operação de fusão.
Modesto Carvalhosa[7], comentando dispositivos da Lei nº 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas), aduz:
O primeiro e mais fundamental efeito jurídico da fusão, incorporação e da cisão total é a sucessão ope legis, à título universal, de todos os direitos, obrigações e responsabilidades assumidos pelas sociedades que se extinguem (arts. 219, II, 231, 232 e 233).
Waldirio Bulgarelli[8] também leciona sobre o tema:
(...) essa continuidade que se assegurou tanto à empresa, como aos seus estabelecimentos, pela fusão, é realmente assinalável e constitui uma construção jurídica relevante, evitando, através dos atos característicos que integram o instituto, as sucessivas, demoradas e custosas transferências e cessões decorrentes.
Na eliminação do processo liquidatório, através da sucessão patrimonial das sociedades, com a cessão em bloco dos direitos e obrigações, unitariamente integrados, reside a grande vantagem do processo fusionista.
Daí que a doutrina a considera como o mais importante elemento da fusão e entende mesmo Ferri, que é somente a consideração do elemento patrimonial que dá razão à unidade substancial do fenômeno, nos seus dois aspectos modificativo-constitutivo e extintivo. O que não significa reduzir a fusão a uma mera forma de transmissão patrimonial de sociedades.
Opera-se, portanto, a sucessão universal, segundo a maioria da doutrina, pois trata-se de transmissão “uno actu” do patrimônio inteiro, “in universum jus”, portanto, os vínculos obrigacionais, os direitos reais, os direitos sobre bens imateriais, transmitem-se, subsumidos globalmente.
(...)
Serve, portanto, o contrato de fusão, como título da transferência do patrimônio globalmente, com todas as relações que implica. [grifo nosso]
4.2. Extinção simples.
Situação diversa ocorre quando a sociedade empresária se extingue sem que haja sucessão empresarial, ou seja, ela se extingue tanto no mundo jurídico quanto no mundo fático. Para que isso ocorra, contudo, é preciso seguir um procedimento específico de dissolução e liquidação da pessoa jurídica. A extinção não acontece de um dia para o outro.
De fato, a extinção da pessoa jurídica, entendida como o término de sua existência ou o perecimento da organização – elementos humanos, materiais e empresariais –, só ocorre no momento do encerramento de sua liquidação, o que se dá com a total destinação do seu acervo líquido. Após esse procedimento é que há a baixa dos respectivos registros, inscrições e matrículas nos órgãos competentes.
O art. 207 da Lei nº 6.404/76 aduz que “a companhia dissolvida conserva a personalidade jurídica, até a extinção, com o fim de proceder à liquidação”. No mesmo sentido, o art. 51 do Código Civil, inclusive determinando a obrigação de averbação da dissolução no registro onde estiver inscrita, dispõe, in verbis:
Art. 51. Nos casos de dissolução da pessoa jurídica ou cassada a autorização para seu funcionamento, ela subsistirá para os fins de liquidação, até que esta se conclua.
§ 1o Far-se-á, no registro onde a pessoa jurídica estiver inscrita, a averbação de sua dissolução.
§ 2o As disposições para a liquidação das sociedades aplicam-se, no que couber, às demais pessoas jurídicas de direito privado.
§ 3o Encerrada a liquidação, promover-se-á o cancelamento da inscrição da pessoa jurídica.
À dissolução da sociedade, momento em que se decide pela extinção da pessoa jurídica, segue a fase de liquidação, um processo árduo e por vezes demorado que se destina a realizar o ativo, pagar o passivo e destinar o saldo, se houver, a quem de direito. Assim, compete à assembléia geral, no caso das sociedades anônimas, ou aos sócios, ou ao titular nas demais pessoas jurídicas, determinar o modo de liquidação e nomear a figura do liquidante. Ele é que ficará responsável, durante o processo de liquidação, pela administração da pessoa jurídica.
Fran Martins[9] comenta sobre o papel do liquidante:
O liquidante é, assim, a figura de maior importância no processo de dissolução da sociedade, pois a ele cabe administrar o patrimônio social, visando a realizar o ativo para satisfação do passivo. Assume ele os deveres de arquivar e publicar a ata da assembléia geral, ou a certidão da sentença que tiver deliberado a liquidação. Cabe-lhe, ainda, arrecadar os bens, livros e documentos da companhia; fazer levantar, de imediato, em prazo não superior ao fixado pela assembléia geral ou pelo juiz, o balanço patrimonial da companhia; ultimar os negócios iniciados, realizar o ativo, pagar o passivo e partilhar o remanescente entre os acionistas. (...)
Permanecendo a pessoa jurídica durante o período de dissolução da sociedade, cabe ao liquidante representá-la e praticar todos os atos necessários à liquidação, inclusive alienar móveis ou imóveis, transigir, receber e dar quitação. (...)
No exercício de suas funções, o liquidante terá as mesmas responsabilidades do administrador; os deveres e responsabilidades os deveres e responsabilidades dos administradores, fiscais e acionistas subsistirão até a extinção da companhia.
Dessa forma, a antiga detentora da outorga que for se extinguir após transferência dessa outorga continua a figurar no polo passivo do processo sancionador, passando o liquidante a receber as notificações da Administração Pública. Nessa linha, mister que, tão logo tome ciência de que a sociedade empresária pretende ser extinta, seja imprimido um trâmite mais célere aos processos que envolvam tal empresa, a fim de ultimá-los com a maior brevidade possível.
Sugere-se, ainda, que, quando da análise de transferências de outorgas, a ANATEL já requeira expressamente da antiga detentora informações sobre seu futuro enquanto pessoa jurídica, ou seja, se há intenção de continuidade empresarial, extinção por sucessão empresarial ou extinção simples, solicitando, também, no que toca às últimas duas hipóteses, dados, respectivamente, sobre a sociedade empresária sucessora e o liquidante.
5. Conclusão.
No contexto das transferências de outorga durante o andamento de processos administrativos sancionadores, portanto, deve permanecer no seu polo passivo a antiga detentora da outorga, inclusive quando o caso apurado for passível de gerar sanção de caducidade, com plena possibilidade de tal sanção atingir a outorga já em nome da nova detentora, porquanto esta não tem direito oponível à Administração Pública, cuja pretensão punitiva surgiu desde a prática da infração administrativa pela antiga detentora.
Registra-se a possibilidade de eventualmente se aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em casos de abuso e/ou fraude, tais como (i) dissolução irregular sem deixar bens para garantir os débitos; e (ii) extinção da pessoa jurídica, sem deixar bens para pagar os débitos, seguida da criação de nova pessoa jurídica, com os mesmos sócios e praticamente o mesmo objeto.
No caso de sanção de multa, para fins de seu cálculo deve ser utilizada a capacidade econômica da antiga detentora da outorga, já que ela é que sofrerá a penalidade.
Havendo transferência de outorga concomitante com a extinção da pessoa jurídica em decorrência de sucessão empresarial (como os casos de fusão e incorporação), a sociedade empresária sucessora (a incorporadora ou a que se originou da fusão) deve passar a ocupar o polo passivo do processo sancionador e, por consequência, passar a receber as notificações. Por outro lado, se transferência de outorga for concomitante com a extinção simples da pessoa jurídica, a antiga detentora da outorga deve continuar a figurar no polo passivo do processo sancionador, com as notificações na pessoa do liquidante.
6. Referências bibliográficas
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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 13ª ed., São Paulo: Atlas, 2003.
[1] O art. 2º da Lei nº 8.987/95 define poder concedente como a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Município, em cuja competência se encontre o serviço público, precedido ou não da execução de obra pública, objeto de concessão ou permissão
[2] CAETANO, Marcelo. Princípios Fundamentais de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 339.
[3] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 17ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 68.
[4] Embora toda outorga pressuponha o poder sancionatório, destaca-se o art. 3º da Lei nº 8.987/95, que dispõe que as concessões e permissões sujeitar-se-ão à fiscalização pelo poder concedente responsável pela delegação, com a cooperação dos usuários.
[5] A previsão de transferência de outorga está prevista, por exemplo, no art. 27 da Lei nº 8.987/95, bem como nos arts. 97 e 136, §2º, da Lei nº 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT).
[6] PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO CONSTATADA. REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO PARA O SÓCIO-GERENTE DA EMPRESA EXECUTADA. DISSOLUÇÃO IRREGULAR. POSSIBILIDADE. OMISSÃO QUE IMPLICA A ALTERAÇÃO DO JULGADO. ATRIBUIÇÃO DE EFEITOS INFRINGENTES.
1. O art. 535 do CPC dispõe que são cabíveis embargos de declaração quando a decisão embargada foi omissa, obscura ou contraditório. No caso dos autos, o acórdão embargado não se manifestou sobre a suposta dissolução irregular da sociedade, antes, apenas concluiu que o mero inadimplemento da obrigação tributária por parte da empresa não possibilita o redirecionamento da execução fiscal contra o sócio-gerente da mesma, o que somente ocorreria se também fosse comprovada a prática de alguma das condutas prevista no caput do art. 135 do CTN.
2. Com efeito, a ausência de manifestação sobre questão relevante para o deslinde do feito possibilita o manejo de embargos de declaração. Da análise dos autos, verifica-se que a Corte a quo concluiu que o encerramento das atividades da empresa, caracterizando dissolução irregular da mesma, possibilita a desconsideração da pessoa jurídica para imputar responsabilidade aos sócios gerentes, os quais poderão esclarecer essa situação fática e averiguar a ocorrência ou não dos requisitos autorizadores da medida através de embargos do devedor.
3. Faz-se necessária a integração do acórdão embargado para fazer constar que a jurisprudência desta Corte possui entendimento no sentido de que a dissolução irregular da empresa sem deixar bens para garantir os débitos, ao contrário do simples inadimplemento do tributo, enseja o redirecionamento da execução fiscal contra os sócios-gerentes, independentemente de restar caracterizada a existência de culpa ou dolo por parte desses.
4. É de se reconhecer que a hipótese é daquelas excepcionais que permitem a atribuição de efeitos infringentes aos embargos de declaração, pois a análise do ponto omisso implica a alteração do julgado, razão pela qual acolho os aclaratórios com efeitos modificativos para manter o acórdão proferido no Tribunal de origem no sentido de possibilitar a citação dos sócio-gerentes da empresa executada, os quais poderão elucidar a existência ou não de responsabilidade tributária em sede de embargos do devedor.
5. Embargos de declaração acolhidos com efeitos modificativos para negar provimento ao recurso especial. [EDcl no REsp 656.071/SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/06/2009, DJe 15/06/2009]
ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.
A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.
A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular.
Recurso a que se nega provimento. RMS 15.166/BA, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/08/2003, DJ 08/09/2003 p. 262
[7] CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, v. 4, tomo 1, p. 177.
[8] BULGARELLI, Waldirio, Fusões, Incorporações, e Cisões de Sociedades. São Paulo: Atlas, 1997, p. 108 e 109.
[9] MARTINS, Fran, Curso de Direito Comercial. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 304 e 305.
Procurador Federal, pós-graduado em Regulação de Telecomunicações e pós-graduando em Direito Administrativo e em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Paulo Firmeza. O processo administrativo sancionador e o impacto das transferências de outorga Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 dez 2012, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33092/o-processo-administrativo-sancionador-e-o-impacto-das-transferencias-de-outorga. Acesso em: 22 nov 2024.
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