SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O recurso extraordinário. 2.1. Conceito. 2.2. Requisitos. 2.3. Tribunais superiores. Função precípua. 3. A repercussão geral. 3.1. A antiga “argüição de relevância”. 3.2. Natureza jurídica. 3.3. Constitucionalidade. Os princípios do acesso à justiça e da celeridade processual. 3.4. Espécies de repercussão. 3.5. Aplicação. Art. 543-A do Código de Processo Civil. 3.6. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 3.7. Repercussão geral em matéria criminal. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas.
RESUMO: O presente trabalho busca analisar o contexto histórico da criação da repercussão geral do recurso extraordinário, bem como sua constitucionalidade à luz dos princípios da celeridade e do acesso à justiça. Para tanto, serão abordados os seguintes temas: função dos tribunais superiores, natureza jurídica, regras, relação da repercussão geral com institutos correlatos e, obviamente, a posição do Supremo Tribunal Federal.
PALAVRAS-CHAVE: Constitucional – Supremo Tribunal Federal – Recurso extraordinário – Repercussão geral.
ABSTRACT: This study analyzes the historical context of the creation of general repercussion of extraordinary appeal, as well as its constitutionality, considering the principles of celerity and the access to justice. Therefore, the following topics will be analyzed: superior court’s function, legal nature, rules, the relation between the general repercussion and similar institutes and, obviously, the Supreme Court’s understanding.
KEY WORDS: Constitutional – Supreme Court – Extraordinary appeal – General repercussion.
1. Introdução.
O recurso está inserido dentro do sistema dos meios de impugnação a decisões judiciais. Não se confunde com a ação autônoma de impugnação, porquanto esta instaura um processo novo, como é o caso, por exemplo, da ação rescisória, do mandado de segurança contra ato judicial e da reclamação. Também há diferença entre o recurso e o chamado sucedâneo recursal, de que são exemplos o reexame necessário e o pedido de suspensão de segurança. Na verdade, o sucedâneo recursal possui conceituação residual, sendo todo meio de impugnação que não se classifica nem como recurso nem como ação autônoma.
O recurso, sendo o mais importante e conhecido meio de impugnação às decisões judiciais, possui algumas características peculiares, dentre outras: é voluntário, previsto em lei e não instaura processo novo, apenas prolongando o já existente.
Um desses recursos será objeto de análise do presente trabalho, qual seja, o recurso extraordinário. Mais precisamente, será abordada a chamada “repercussão geral da questão constitucional”, elemento inserido na Constituição Federal de 1988, por intermédio da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, e regulamentado pela Lei nº 11.418, de 19 de dezembro de 2006. O regramento pertinente está contido no art. 102, § 3º, da Constituição Federal, e no art. 543-A do Código de Processo Civil – CPC.
A repercussão geral merece atenção em virtude de ser uma medida pensada para brindar os jurisdicionados com uma maior celeridade processual, o que se coaduna com o princípio do acesso à justiça, tão importante no nosso país ainda cheio de desigualdades sociais. Pode-se dizer, inclusive, que sua previsão trouxe uma mudança de mentalidade acerca da real função dos tribunais superiores
Analisar-se-á sua constitucionalidade e implicação com os princípios constitucionais. Ademais, também serão abordados os seguintes temas: função dos tribunais superiores, natureza jurídica, regramento e, obviamente, a posição do Supremo Tribunal Federal – STF sobre a repercussão geral, bem como sua relação com institutos correlatos.
O sistema processual civil brasileiro prevê a existência de dois tipos gerais de recursos, quais sejam, o ordinário e o extraordinário. Este, que também é conhecido como excepcional, é o gênero do qual fazem parte o recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça – STJ e o recurso extraordinário para o STF, entendido como o extraordinário stricto sensu. São, pois, recursos que apresentam algumas características comuns, como a de serem classificados como de fundamentação vinculada e de exigirem prequestionamento e esgotamento das vias ordinárias. Todos os outros estão inseridos na acepção ordinária dos recursos.
2.1. Conceito.
O recurso extraordinário pode ser conceituado como um meio de impugnação às decisões judiciais de caráter excepcional, dirigido ao STF, cabível tão somente em casos específicos arrolados pela própria Constituição Federal, de onde retira sua essência, precisamente do art. 102.
2.2. Requisitos.
Diversos são os requisitos para se interpor um recurso extraordinário. Primeiro, faz-se mister o prévio esgotamento das instâncias ordinárias e o prequestionamento, ou seja, os outros tribunais devem ter se pronunciado previamente sobre o tema debatido.
Além disso, as hipóteses de cabimento estão taxativamente descritas no texto constitucional. Dessa forma, só cabe recurso extraordinário da decisão, proferida em única ou última instância, que: a) contrariar dispositivo da Constituição Federal; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição Federal; e d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.
A repercussão geral da questão constitucional, último requisito do presente recurso, será abordada em tópico próprio.
2.3. Tribunais Superiores. Função precípua.
Os tribunais superiores foram criados no intuito de conferir unidade à aplicação das normas pelo Poder Judiciário. Tal função é baseada no valor da igualdade, evitando-se, dessa forma, que tribunais locais profiram decisões diferentes para casos iguais.
O STF foi criado no Brasil após o advento da República, por meio do Decreto nº 510/1890. Possuía as funções de resolver conflitos envolvendo os entes políticos da federação e de julgar, em grau de recurso, as decisões que contestassem a validade das leis e atos governamentais em face da Constituição. Foi inspirado na Suprema Corte estadunidense. Oscar Vilhena Vieira relata que:
Atualmente, o STF tem como função precípua a guarda da Constituição, cabendo-lhe a interpretação das normas constitucionais e a uniformização nacional dos entendimentos, visando a evitar decisões contraditórias proferidas por diferentes tribunais em casos iguais. Fredie Didier Jr. ensina:
Os tribunais superiores, portanto, não são simplesmente uma instância a mais a que a parte tem direito de recorrer, até porque o acesso a eles é mais dificultoso. Os recursos excepcionais, como já dito alhures, além de serem de fundamentação vinculada, exigem outros requisitos específicos. Outra característica é o fato de não admitirem reexame de provas, justamente em virtude de não serem uma mera terceira ou quarta instância.
Atualmente, o grande volume de recursos extraordinários pode ser justificado pelo fato de a Constituição Federal de 1988 ser classificada, quanto à sua extensão, como analítica (ampla, extensa, larga ou prolixa). Trata de todos os assuntos que os constituintes entenderam como fundamentais, descendo às minúcias e estabelecendo regras que poderiam claramente estar previstas apenas em normas infraconstitucionais. E isso pode até ser explicado pelo período ditatorial vivido imediatamente antes da promulgação da Constituição de 1988. Assim, numa postura garantista, houve esse processo de constitucionalização das matérias, o que também evidencia o motivo da existência do grande número de emendas à Constituição no nosso país. As reformas acabam precisando ser feitas primeiramente no âmbito constitucional. O art. 242, § 2º, da Constituição Federal, é o caso exemplar de norma que deveria ser prevista na legislação infraconstitucional, porquanto apenas dispõe que o Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal, assunto de nenhuma importância para fins constitucionais. Eduardo de Avelar Lamy explica:
Percebe-se, portanto, que a amplitude trazida pelos ideais do acesso à justiça, bem como o advento da Constituição de 1988, provocaram considerável aumento no número de feitos a serem julgados. Embora o STF tenha se tornado uma corte exclusivamente constitucional, a Carta Magna tornou constitucional uma infinidade de matérias, dispondo sobre direito civil, penal, comercial, processual, agrário, tributário, financeiro, entre outros. Como afirmou certa vez o ex-Min. Maurício Corrêa: “se há excessos contra os bois, isso deveria ser resolvido pela polícia do Estado de Santa Catarina, mas essa história veio parar aqui porque boi borboleta, cavalo, é tudo assunto constitucional”. (Lamy, 2005, p. 171 e 172)
Destarte, a guarda da Constituição passa a ter um espectro muito amplo, já que praticamente todas as matérias são constitucionais e, supostamente, relevantes. E em tese não seria possível fazer distinção entre a relevância de normas igualmente constitucionais, a não ser que se fizesse uso da classificação de normas formal e materialmente constitucionais. Estas seriam aquelas relacionadas com a estrutura do Estado, a organização de seus órgãos e os direitos e garantias fundamentais. Ressalte-se, no entanto, que esse critério não é utilizado no Brasil, haja vista que o bloco de constitucionalidade usado como parâmetro para o controle de constitucionalidade é formado por todas as normas formalmente constitucionais, sem qualquer distinção.
Os tribunais superiores, portanto, não podem ser reduzidos a uma terceira ou quarta instância, devendo ocupar a função precípua para qual foram criados. No caso do STF, impõe-se a guarda da Constituição e a uniformidade na jurisprudência constitucional.
3. Repercussão geral.
A Emenda Constitucional nº 45/2004 inseriu um novo requisito para o manejo do recurso extraordinário, que foi a chamada repercussão geral da questão constitucional, contida no art. 102, § 3º, da Constituição Federal. Trata-se de uma espécie de filtro, numa clara tentativa de diminuir o número de recursos extraordinários à porta do STF. Na verdade, a própria necessidade de prequestionamento, estabelecida nas súmulas 282 e 356 do STF, já é uma espécie de filtro.
A repercussão geral passou a integrar o juízo de admissibilidade dos recursos extraordinários. Dessa forma, para seu manejo não basta a questão ter índole constitucional. É preciso que tal questão transcenda os meros interesses subjetivos das partes. Deve, pois, ter repercussão geral para poder ser aceita.
É de bom alvitre, porém, registrar que somente após o advento da Lei nº 11.418/2006, que regulamentou o assunto, é que a repercussão geral passou a ser exigível. Acontece que a regra constante do art. 102, § 3º, da Constituição Federal, tem natureza jurídica de norma constitucional de eficácia limitada de princípio institutivo obrigatório, possuindo, então, aplicabilidade indireta. Sua eficácia positiva dependia de regulamentação em lei.
3.1. A antiga “argüição de relevância”.
Instituto semelhante ao da repercussão geral já existiu no ordenamento jurídico brasileiro. Era a chamada “argüição de relevância”, também aplicável ao recurso extraordinário, prevista no art. 119 da Constituição de 1969. Foi introduzida por meio da Emenda Regimental nº 03/1975, que modificou o art. 308 do Regimento Interno do STF.
Muitos criticaram o surgimento da repercussão geral aduzindo que seria o renascimento da antiga “argüição de relevância”. Ocorre que os institutos são bem diferentes, como se demonstrará. Primeiramente, nota-se que a “argüição de relevância” foi requisito criado no regime militar, quando a ditadura alcançava seu auge. Por isso, não tinha qualquer feição democrática.
A “argüição de relevância” era julgada em sessão secreta e mediante decisão que dispensava fundamentação. Na verdade, não havia limites objetivos do que seria esse conceito jurídico indeterminado. A margem de discricionariedade existente transformava-se em arbitrariedade, como era de se esperar em uma ditadura. O STF, sem nenhum limite imposto por lei, era que estabelecia o que era considerado “argüição de relevância”. E o caráter dessa decisão era muitas vezes eminentemente político, deixando de lado a análise jurídica. Entendia-se, à época, embasando a arbitrariedade, que essa definição levada a cabo pelo STF era, na verdade, praticamente um ato legislativo. Levava-se ao extremo o sistema de freios e contrapesos. Nesse sentido, Eduardo de Avelar Lamy comenta:
Dessa maneira, percebe-se que o julgamento da argüição de relevância fugia ao âmbito do direito, repousando na seara política da qual o Supremo Tribunal, em muitos aspectos, tanto se aproxima. Nesse sentido entende Arruda Alvim que a decisão do STF a respeito da relevância da questão federal não constituía uma decisão jurisdicional, mas sim um ato político. (LAMY, 2005, p. 168 e 169)
Na realidade, a “argüição de relevância” tinha o condão de justificar o conhecimento, pelo STF, de questões que, em princípio, não estariam abrangidas pelas estritas hipóteses de cabimento do recurso extraordinário. Vale consignar que o caso específico de ofensa à Constituição era presumidamente relevante, sendo dispensável sua própria arguição.
Atualmente, a repercussão geral é julgada em sessão aberta e mediante decisão fundamentada, em conformidade com o art. 93, inciso IX, da Constituição Federal. Ademais, a lei impôs alguns limites objetivos, não ficando mais ao mero deleite do STF a definição dos casos que têm repercussão geral.
É verdade que ainda há certo grau de discricionariedade, porquanto as expressões utilizadas pela lei (repercussão política, social, econômica e jurídica) ainda são conceitos jurídicos indeterminados. Porém, é de se ter em mente que o legislador não tem condições de prever todos os casos passíveis de ocorrer na prática, mormente quando os dias de hoje são marcados pela instabilidade e pela imensa velocidade dos acontecimentos. Novas situações surgem com muita rapidez, muitas delas decorrentes, por exemplo, de inovações tecnológicas.
Esses conceitos jurídicos indeterminados podem ser considerados como poros axiológicos, que dão certa fluidez ao ordenamento jurídico, evitando, assim, constantes rupturas legislativas. O importante é estabelecer alguns limites objetivos, para afastar ao máximo o risco do cometimento de arbitrariedades.
Por fim, registra-se que a “argüição de relevância” não é o único antecedente histórico da presente repercussão geral. O recurso de revista, no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho – TST, desde a edição da Medida Provisória nº 2.226/2001, exige que se verifique se a causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica, conforme redação do art. 896-A da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. O inciso I do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 9.882/1999 traz mais um caso, ao estabelecer que cabe Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF quando o fundamento da controvérsia for relevante.
3.2. Natureza Jurídica.
A repercussão geral da questão constitucional foi introduzida no ordenamento jurídico como um novo requisito ou pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário. É um ônus do recorrente demonstrá-la, pois, se não fizer, seu recurso não será nem conhecido.
É pressuposto intrínseco de admissibilidade recursal, porquanto diz respeito ao próprio poder de recorrer, se juntando, assim, ao cabimento, à legitimidade e ao interesse recursais. Por outro lado, a repercussão geral é entendida como pressuposto extrínseco, já que a legislação manda o recorrente demonstrá-la em sede de preliminar recursal.
3.3. Constitucionalidade. Os princípios do acesso à justiça e da celeridade processual.
A constitucionalidade do novo instituto é patente e já pacificada. A grande maioria dos doutrinadores o considera em conformidade com os dispositivos da Constituição Federal. No entanto, Dirley Cunha Junior e Carlos Rátis (2005, p. 44) entendem que a introdução da repercussão geral no ordenamento jurídico é inconstitucional, por violar o princípio da indisponibilidade dos recursos, numa ofensa a direito fundamental.
Ocorre que, apesar de restringir o manejo do recurso extraordinário, a repercussão geral resgata a essência funcional da Suprema Corte, que estava concentrando todos os seus esforços no que se chama popularmente de “briga de vizinho”. Deixava-se de lado sua função de guardião da Constituição.
Alguns dados merecem ser destacados para que fique demonstrada a importância da repercussão geral. Destaca-se, para tanto, trecho da notícia veiculada no sítio eletrônico do próprio STF no ano de 2007, contando com a participação do Ministro Gilmar Ferreira Mendes:
Ao exemplificar o aumento freqüente do número de processos recebidos pelos tribunais brasileiros, Gilmar Mendes utilizou dados do STF. De acordo com o ministro, em 1988 o Supremo recebeu algo em torno de 20 mil processos. Em 2000, foram 105 mil. Dois anos depois, 160 mil processos chegaram à Suprema Corte. “Isso consome uma energia sobre-humana, não só dos juízes, mas de toda a estrutura do Tribunal”, afirmou o ministro. (STF, 2007, on line)
Percebe-se, então, o grande aumento do número de processos submetidos ao STF, muitos envolvendo as já citadas “brigas de vizinhos”. Além de se deturpar a função precípua do STF, ainda se prejudica a qualidade das decisões, que, em face do grande volume, precisam ser prolatadas com cada vez mais rapidez. E como diz o ditado popular, aplicável ao caso, a pressa pode ser inimiga da perfeição. Se houver uma diminuição de processos o STF pode concentrar esforços nos casos realmente relevantes para o país.
Destarte, como toda decisão é valorativa, no caso da repercussão geral, não obstante restrinja o manejo do recurso extraordinário, busca concretizar os princípios da celeridade processual e do acesso ao Judiciário. Assim, diante de uma ponderação axiológica, devem-se privilegiar estes últimos, por serem mais importantes no caso concreto. Ademais, não existe direito subjetivo à infinita interposição de recursos. Nem o tão badalado duplo grau de jurisdição tem sua obrigatoriedade levada ao extremo, já que inúmeros casos há em que não é possível a interposição de recursos. Basta pensar nas causas de competência originária do STF, das quais não cabe recurso para outro órgão judiciário.
O princípio da celeridade processual é tão importante que também foi erigido ao status de constitucional, exatamente por meio da mesma Emenda Constitucional que criou a repercussão geral. E mais. Foi inserido no contexto dos direitos e garantias fundamentais, ampliando o rol de cláusulas pétreas contido no art. 5º da Carta Magna. O novo inciso LXXVIII dispõe que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Portanto, o princípio da celeridade processual não é um princípio qualquer, mas um direito subjetivo das partes, de aplicabilidade imediata, consoante o § 1º do art. 5º da Constituição Federal. Possui status de direito fundamental contemplado sob a qualidade de cláusula pétrea.
É de se dizer, ainda, que a celeridade processual já estava prevista, como direito fundamental do ser humano, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica. Sua aplicação dependia, porém, de interpretação teleológica do sistema, sobretudo do princípio constitucional do devido processo legal e das regras integrativas provenientes do direito internacional. Agora, com a mudança implementada pela Constituição brasileira, a celeridade processual pode ser aplicada devido a ordem expressa imposta a todos.
Também se chama atenção para o fato salutar de que o texto constitucional não impôs prazo certo para a duração do processo, uma vez que infinitas variedades há que determinam o tempo de seu trâmite. Um processo pode durar cinco anos e ser extremamente célere, ao passo que outro, que terminou em dois anos, pode ser considerado bastante lento. Tudo depende do caso concreto. A doutrina, no entanto, estabelece alguns pontos a serem observados pelos magistrados, quais sejam, a complexidade do caso, a necessidade de produção de provas, o comportamento das partes, dos juízes e serventuários, o volume de processos no juízo, etc. Com base em todos esses fatores é que se pode fazer um previsão de um tempo razoável de duração de um processo.
A demora na solução do processo, frise-se, não é exclusiva do modelo brasileiro. Países como Argentina, Espanha e Itália também sofrem desse mal. Este último foi inclusive punido pela Corte de Estrasburgo pela sua excessiva morosidade processual.
Depreende-se do texto constitucional que também é necessário que se garantam os meios que concretizem a celeridade processual. Assim, cabe ao legislador infraconstitucional inserir no ordenamento jurídico mecanismos para tanto. A repercussão geral é um desses mecanismos, só que inserida pelo próprio Poder Constituinte derivado reformador. A Lei nº 11.418/2006, ao traçar as linhas delimitadores da repercussão geral, cumpre esse papel.
Urge ter em mente, porém, que o problema só será resolvido com um conjunto de mudanças estruturais. Quando se está diante de várias causas, é preciso fazer uso de várias medidas. Pondera João Batista Lopes:
Deixe-se claro, antes de tudo, que o problema da morosidade da Justiça não será resolvido “por decreto”, ou melhor, por simples alterações legislativas.
É que, como foi dito, o tema não pode ser analisado com uma visão reducionista, porque numerosas são as causas do quadro de lentidão da Justiça: insuficiência de juízes e de funcionários, falta de informatização, ausência de vontade política dos governantes, “pacotes econômicos”, anacrônica organização judiciária, litigância de má-fé, prolixidade das petições, baixa remuneração dos servidores etc. (Lopes, 2005, p. 330)
No que tange ao princípio do acesso ao Judiciário, que também possui status constitucional, é preciso fazer uso de mecanismos que permitam às pessoas ingressarem em juízo em busca de seus direitos, quando violados. Essa é a base de um sistema democrático, ou seja, a existência de um Poder independente e aberto a todos para solucionar os conflitos de interesses. Sem o acesso ao Judiciário, todas as demais regras normativas caem por terra.
Para a exata compreensão do princípio do acesso ao Judiciário, é preciso fazer uma observação. O acesso à justiça e o acesso ao Judiciário não se confundem. Aquele é muito mais amplo, abrangendo todas as formas de acesso à justiça, desde breves orientações até o próprio litígio judicial. Já o acesso ao Judiciário guarda relação com o direito de ação, restrito à busca de uma solução em juízo.
Na verdade, o acesso ao Judiciário também não é completo se for separado das demais garantias processuais. De nada adiantaria o acesso à porta do Judiciário se no decorrer do processo não for respeitado, por exemplo, o contraditório, a ampla defesa e a própria celeridade. Muitas vezes a parte morre sem ter obtido sua devida prestação jurisdicional. E quando se fala em celeridade, não se está buscando tutelar interesse apenas do autor, mas de todos os envolvidos no litígio. É preciso haver justiça no ingresso ao Judiciário e no decorrer do processo. Alguns falam, atualmente, em devido processo justo, ao invés de devido processo legal.
Dois exemplos ilustram bem a sistemática da justiça no acesso ao Judiciário, a saber: a gratuidade de justiça e a figura do defensor público, que permitem às pessoas de baixa renda demandar na busca da efetivação dos seus direitos.
Destarte, de início faz-se mister a existência de um justo acesso ao Judiciário, e durante o curso processual deve imperar a celeridade e a efetividade. Diante do abarrotamento de processos no STF, a prestação jurisdicional desta Corte é lenta, comprometendo o próprio acesso à justiça. Nesse sentido, colacionam-se as lições de Jorge de Oliveira Vargas:
A demora na prestação jurisdicional leva as pessoas, muitas vezes, a desistir de buscar seu direito em juízo, optando pela litigiosidade contida ou “fazendo justiça” com as próprias mãos, com conseqüências imprevisíveis e muitas vezes desastrosas, em ambos os casos, pelos excessos cometidos.
A garantia constitucional da prestação jurisdicional em prazo razoável está intimamente ligada com a do acesso aos tribunais, explicitando a necessidade de este serviço público ser eficiente; é norma de eficácia plena e de aplicabilidade imediata. (Vargas, 2005, p. 347)
A repercussão geral, pois, tem a função de diminuir a quantidade de recursos extraordinários, fazendo com que seja possível o respeito ao direito fundamental à celeridade processual, ao acesso ao Judiciário e à própria efetividade do processo.
3.4. Espécies de repercussão.
A repercussão geral, como já mencionado, não tem mais aquele grau de subjetividade arbitrária encontrada na antiga “argüição de relevância”. Agora, a Lei nº 11.418/2006, que regulamentou o tema no art. 543-A do CPC, traçou certos limites, senão vejamos:
Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão fundamentada, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo.
§ 1º Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.
(...)
§ 3º Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.
O ponto crucial para se determinar se há ou não repercussão geral da questão envolvida é saber se esta ultrapassa ou não os interesses subjetivos da causa. Com isso, busca-se afastar as “brigas de vizinho” que se acumulam às portas do STF, deturpando sua função essencial. Luiz Manoel Gomes Junior (2001, p. 28 e 29) lembra de um célebre caso, ao perguntar “quem não se recorda de reportagem televisiva onde o STF, em sede de recurso extraordinário, foi obrigado a decidir a questão referente à propriedade de um bode?”.
Diante desse parâmetro, que é um conceito jurídico indeterminado, cabe ao STF, único que poderá examinar a repercussão geral, construir sua jurisprudência sobre o assunto. Não se trata de arbitrariedade, mas de, no caso concreto, verificar se a questão se encontra dentro do parâmetro estabelecido pela Constituição Federal. Se a questão repercutir em outros casos que não só o das partes envolvidas, impõe-se a admissibilidade do recurso. Além disso, para não admitir um recurso com fundamento na falta de repercussão geral é preciso que dois terços do STF assim entendam. Confere-se, assim, maior segurança e confiabilidade a esse sistema.
Afora esse parâmetro, que exige interesse superior ao subjetivo das partes, ainda foram traçadas outras linhas delimitadoras, desta vez sobre os tipos de relevância, que deve ser econômica, política, social ou jurídica. A relevância econômica pode existir no caso de se discutir a constitucionalidade de tributos. A jurídica, quando do julgamento resulte divergência de entendimento entre tribunais locais. A política, no caso de tratar de inelegibilidade de parlamentar ou da implementação de relevantes políticas públicas. E por fim, a social, quando a questão guardar relação com a merenda escolar, por exemplo. Medina, Wambier e Wambier, antes mesmo do advento da Lei nº 11.418/2006, sistematizaram da seguinte maneira:
Pensamos poderem ser os critérios a orientar a identificação de uma questão de repercussão geral, por exemplo, os de ordem econômica, social, política, e mesmo jurídica, no sentido estrito.
A Repercussão geral jurídica no sentido estrito existiria, por exemplo, quando estivesse em jogo o conceito ou a noção de um instituto básico do nosso direito, de modo que aquela decisão, se subsistisse, pudesse significar perigoso e relevante precedente, como a de direito adquirido. Relevância social haveria, numa ação em que se discutissem problemas relativos à escola, moradia ou mesmo à legitimidade do Ministério Público para a propositura de certas ações. Pensamos, aliás, que essa repercussão geral deverá ser pressuposta em um número considerável de ações coletivas só pelo fato de serem coletivas. Repercussão econômica haveria em ações que discutissem, por exemplo, o sistema financeiro da habitação ou a privatização de serviços públicos essenciais, como a telefonia, o saneamento básico, a infra-estrutura etc. Repercussão política haveria quando, por exemplo, de uma causa pudesse emergir decisão capaz de influenciar relações com Estados estrangeiros ou organismos internacionais. (Wambier; Wambier; e Medina, 2007, p 377)
A legislação regulamentar ainda previu hipótese de presunção absoluta da existência da repercussão geral. É no caso de o recurso extraordinário impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do STF. Constitui-se, pois, espécie de repercussão geral jurídica, só que legalmente presumida.
Tecidos esses comentários, é preciso analisar o outro lado do tema. Pois bem. Rodrigo Barioni (2005) traz à tona duas desvantagens da repercussão geral. A primeira seria a impossibilidade de o STF desfazer um erro de uma decisão judicial atinente a uma questão constitucional. Isso implica a perpetuação de uma injustiça ao caso de um indivíduo. A injustiça é individual, mas não deixa de ser injustiça, e aos olhos da sociedade isso não aflora como uma alternativa correta. A segunda seria a possibilidade de existência de decisões conflitantes proferidas por tribunais locais, sem que se possa recorrer à Corte Suprema para dirimir a divergência de entendimento. É de bom alvitre colacionar as lições do citado autor:
(...) Omissis
A recusa do STF em julgar recursos cuja matéria constitucional não tenha repercussão geral pode originar falta de uniformidade de interpretação das normas constitucionais pelos tribunais locais. (...) A falta de unidade na aplicação do direito constitucional é perniciosa ao ordenamento jurídico como um todo, porquanto o elevado grau de abstração das normas constitucionais faz com que estas estejam situadas como princípios gerais, que expressam idéias matrizes da consciência jurídica nacional, que cimentam e iluminam a compreensão de todas as normas jurídicas, tanto as encontradas na Constituição quanto as que vigem à parte. (Barioni, 2005, p. 722 e 723)
No caso de decisões conflitantes em sede de tribunais locais, o problema é facilmente resolvido, uma vez que tal tema, trazendo insegurança jurídica a todo o ordenamento jurídico pátrio, possui relevância jurídica que transcende os meros interesses subjetivos das partes. Nesse caso, basta que o STF admita a existência da repercussão geral quando a decisão divergir de outra proferida por outro tribunal, de maneira semelhante ao que acontece com o recurso especial para o STJ sob fundamento de divergência jurisprudencial. Por óbvio que também se pode exigir que se faça um cotejo analítico entre os dois julgados, demonstrando, ponto a ponto, sua semelhança no que toca à questão constitucional. Não seria, é verdade, uma decisão vinda da própria lei, mas teria o mesmo efeito prático. Assim, após assentada a posição do STF, futuras decisões que desrespeitem a Corte Suprema poderiam ser atacadas com a reclamação.
A outra desvantagem relacionada, sobre o cometimento de injustiça a casos individuais, não merece grandes atenções. A uma, porque se o erro judicial for grave, pode ser possível até a interposição de uma ação rescisória. A duas, porque, diante de uma ponderação axiológica, as vantagens superam bastante uma suposta desvantagem como essa.
Portanto, patente a constitucionalidade da repercussão geral, mormente em função do direito fundamental à celeridade processual. Autores há que, de tão favoráveis, consideram um absurdo a não introdução da repercussão geral também para o recurso especial, dirigido ao STJ. Criticam o fato de o legislador constitucional ter exigido a distinção das questões relevantes face às não relevantes na esfera do direito constitucional, e não ter feito a mesma coisa no plano da legislação federal, como se tudo o que constasse da lei federal fosse relevante. Vêem, portanto, a necessidade da criação de um filtro também para o recurso especial. Eduardo Cambi defende:
Ademais, o critério da transcendência, inexplicavelmente, somente foi contemplado em relação ao recurso extraordinário, não podendo ser estendido ao recurso especial. Esta era a proposta de EC n. 96-A, da Deputada Zukaiê Cobra, prevendo a introdução de um § 2º ao art. 105 da CF, com a seguinte redação: “No recurso especial, o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões federais discutidas no caso, a fim de que o Tribunal examine o seu cabimento, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”. Não se justifica a omissão da EC. 45/2004, ao não prever o critério da transcendência para o recurso especial, posto que o STJ também se encontra emperrado, pelo acúmulo de recursos, perdendo espaço em sua agenda para a definição e mais ampla discussão de questões de direito federal de alta relevância. (Cambi, 2005, p. 160 e 161)
De fato, a tendência é de que os recursos excepcionais (extraordinário e especial) tenham o mesmo regramento. A Lei nº 11.672, de 08 de maio de 2008, acrescentou o art. 543-C ao CPC, conferindo ao recurso especial o mesmo tratamento já dado ao recurso extraordinário pelo art. 543-B no que concerne à multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia. Tudo isso faz parte da tentativa de os tribunais superiores resgatarem suas funções essenciais.
3.5. Aplicação. Art. 543-A do Código de Processo Civil.
Primeiramente, ressalta-se que a repercussão geral representa um requisito à admissibilidade do recurso extraordinário. E o recurso, como um meio de impugnação às decisões judiciais, nada mais é do que um ônus da parte, uma conduta alternativa, ou seja, que pode gerar-lhe uma situação favorável, mas que também pode ser que não dê certo.
Cabe à parte, então, manejar o recurso preenchendo todos os pressupostos de admissibilidade. Se assim não proceder, a única consequência será perder a possibilidade de conquistar uma situação mais favorável. É, como se disse, um ônus. Não é nem dever nem obrigação.
No caso da repercussão geral, a lei dispõe que o recorrente deve demonstrá-la preliminarmente. Significa que, na peça recursal, o recorrente deve abrir um tópico, anterior ao mérito, só para demonstrar que seu caso goza de repercussão geral.
O juízo de admissibilidade no Brasil se submete ao que a doutrina chama de controle binário. O recurso extraordinário, por exemplo, é interposto perante o juízo a quo, que realiza o primeiro juízo de admissibilidade. Se não admitido, cabe recurso (agravo do art. 544 do CPC) para o STF, que realiza o segundo juízo de admissibilidade. Se houver admissão já pelo próprio juízo a quo, ainda assim o STF procede ao segundo juízo de admissibilidade, podendo admitir o recurso, confirmando a decisão da instância inferior, ou não admiti-lo, discordando dela. Em suma, o segundo juízo de admissibilidade é totalmente independente do primeiro, não havendo qualquer vinculação.
O sistema de controle binário funciona apenas como uma espécie de filtro, para que recursos que não preenchem os requisitos não subam ao STF sem necessidade, com a negativa de conhecimento ocorrendo logo na instância inferior. Porém, é claro que a parte sempre poderá interpor o agravo conta a decisão que não conheceu o seu recurso, fazendo com que, no final das contas, o STF realize o segundo juízo de admissibilidade.
No que se refere à repercussão geral, no entanto, diz-se que é um pressuposto de admissibilidade que não se submete ao controle binário, porquanto sua análise será feita exclusivamente pelo STF, tão somente após o juízo a quo ter admitido o recurso ao realizar o primeiro juízo de admissibilidade. O STF, então, procede ao segundo juízo de admissibilidade e, se tudo estiver em conformidade com as exigências legais, aí sim é que será analisada a repercussão geral, que é, pois, o último pressuposto de admissibilidade a ser analisado, ou seja, só ocorrerá se todos os outros já tiverem sido superados.
A Constituição Federal aduz que o STF só poderá não admitir um recurso extraordinário com base da ausência de repercussão geral se dois terços dos Ministros assim entenderem. Houve elogios doutrinários no sentido de que o texto constitucional não trouxe um número fechado de Ministros, mas sim uma proporção, que pode se adequar a diversas situações práticas. Rodrigo Barioni comentou:
O constituinte derivado foi cuidadoso ao não atribuir um número exato de Ministros para a recusa ou acolhimento da argüição de relevância da matéria constitucional. Não integrarão o cômputo do quorum de dois terços dos membros do tribunal os Ministros impedidos ou suspeitos de participar do julgamento do recurso. De outra parte, se o tribunal eventualmente estiver com dez ou nove membros, no interregno compreendido entre a saída de um Ministro do cargo e o ingresso de outro, o quorum de julgamento da repercussão geral será proporcionalmente reduzido (BARIONI, 2005, p. 727)
Acontece que a Lei nº 11.418/2006, sem se atentar para tal benefício, acabou adotando o sistema numérico, prevendo que, se quatro Ministros decidirem pela existência da repercussão geral, será desnecessária a remessa do recurso ao Plenário do STF. Isso porque, em linhas gerais, para que não seja admitido o recurso sob a alegação de ausência de repercussão geral é preciso concordância de no mínimo dois terços dos membros. Como a Corte Suprema é composta de onze Ministros, seriam necessários oito votos favoráveis. Dessa forma, se quatro já entendem o contrário, não há mais como a outra posição prevalecer, haja vista que só pode chegar a sete votos.
O recurso extraordinário é distribuído a uma das Turmas do STF. Se quatro do cinco membros da Turma se manifestarem pela presença da repercussão geral, passa-se ao julgamento do mérito recursal. Caso contrário, a questão da repercussão é remetida ao Plenário para análise. Dependendo dos votos, o recurso pode não ser conhecido, decisão da qual não cabe mais recurso, ou ser conhecido e, consequentemente, voltar à Turma para que esta julgue seu mérito.
O § 5º do art. 543-A do CPC traz mais um mecanismo que favorece a celeridade processual, senão vejamos:
§ 5º Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
Esse dispositivo legal, juntamente com o art. 543-B, regulariza o julgamento em massa de recursos, quando versam sobre matéria idêntica. Muitos casos batem à porta do STF para discutir o mesmo assunto, mormente em demandas evolvendo a Fazenda Pública, que possuem um efeito multiplicador devastador. Uma interpretação concernente à remuneração de um servidor acaba repercutindo em todos os outros da mesma carreira, ou até mesmo em todos os servidores de um mesmo Estado-Membro. Situação semelhante acontece nas relações de massa, como a dos consumidores. As partes são diferentes, mas tanto o mérito da demanda quanto a suposta repercussão geral são os mesmos, motivo pelo qual não faz sentido que o STF analise os casos individualmente, um por um. Patente que são idênticas as demandas, analisa-se uma como parâmetro e estende-se o entendimento nela esposado às demais, tanto com relação ao mérito como quanto à existência ou não de repercussão geral.
Esses são, em linhas gerais, os regramentos procedimentais da repercussão geral trazidos pela legislação infraconstitucional.
3.6. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Resta, agora, analisar a posição do STF quanto à caracterização da repercussão geral. Para tanto, é preciso trazer à baila alguns casos já enfrentados pela Suprema Corte.
De início, salienta-se que o requisito da repercussão geral só passou a ser exigido dos recursos extraordinários interpostos a partir de 03 de maio de 2007, dia da entrada em vigor da regulamentação do assunto pela Emenda Regimental nº 21/2007, integrante do Regimento Interno do STF.
Em 2008, o STF julgou o mérito de dois recursos que tiveram presente a repercussão geral. O primeiro (RE nº 570177) tratava da constitucionalidade de se pagar soldo em valor inferior ao salário mínimo aos praças que prestam serviço militar obrigatório. Houve entendimento de que o deslinde da questão pode afetar a situação de um grande contingente de jovens brasileiros que prestam o serviço militar obrigatório nas Forças Armadas, o que é suficiente para ultrapassar o interesse subjetivo das partes. Acompanhando a solução do mérito recursal, foi editada a súmula vinculante nº 6, com a seguinte redação: “Não viola a Constituição o estabelecimento de remuneração inferior ao salário mínimo para as praças prestadoras de serviço militar inicial”.
O outro caso (RE nº 565714) dizia respeito à constitucionalidade de se utilizar o salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade. Entendeu-se que o assunto possuía repercussão geral em virtude de envolver não só o regime remuneratório dos servidores públicos, mas também a disciplina da CLT, afetando, pois, inúmeras pessoas.
O STF também já considerou presente a repercussão geral nos casos que envolvem as seguintes matérias: a) contribuição social, base de cálculo, Pis/Cofins, inclusão do ICMS e desembaraço aduaneiro; b) execução fiscal, contribuição previdenciária e prescrição; c) servidor público, vencimentos e conversão em URV; d) imposto de renda pessoa física e repetição de indébito, e) ordem social, saúde e fornecimento de medicamento; f) contribuição social, incidência e lucro de exportação; g) execução fiscal, contribuição previdenciária e redirecionamento da responsabilidade ao sócio da empresa; e h) vencimentos dos militares.
Por outro lado, decidiu que não há repercussão geral nas demandas que tratam dos seguintes assuntos: a) processo civil, liquidação de sentença e multa diária; b) responsabilidade civil e indenização por dano moral; c) cabimento de ação direta de inconstitucionalidade; d) desapropriação, indenização e parcelamento de precatórios; e) nulidade de decreto de desapropriação por utilidade pública; e f) execução fiscal, cobrança de dívida ativa e exigência de cobrança administrativa prévia.
Passa-se, agora, a tratar de alguns casos de maneira mais detalhada. Pois bem. Em caso (RE nº 560900) que questionava a possibilidade de se restringir a participação em concurso público de candidatos denunciados criminalmente, o STF decidiu que há transcendência dos interesses subjetivos das partes, pois a questão interessa a todos os entes federados e a todas as entidades submetidas à feitura de certame público para a contratação de pessoal.
Num recurso extraordinário (RE nº 568596) em face de decisão que considerou inelegível a ex-cônjuge de prefeito reeleito, sob o fundamento de que a dissolução da sociedade conjugal havia se dado no curso do mandato eletivo do prefeito, o STF também entendeu presente a repercussão geral. Argumentou que o tema apresenta relevância política, jurídica e social, uma vez que afeta os direitos políticos dos cidadãos, mostrando-se necessário estabelecer o alcance e os limites da inelegibilidade prevista no art. 14, § 7º, da Constituição.
A existência da repercussão geral, em outro caso (RE nº 575088), foi justificada pelo fato de que a medida serviria de orientação para os diversos tribunais do país instados a decidir sobre a mesma matéria. Buscava-se definir se a limitação da contagem de tempo de serviço realizado sob condições especiais imposta pela Lei nº 9.876/99 ofenderia o direito adquirido dos segurados que já reuniam os requisitos para a concessão do benefício antes mesmo da Emenda Constitucional nº 20/98, porém só o haviam reivindicado na vigência das novas regras promovidas por esta emenda.
Sob o mesmo fundamento, o STF também entendeu presente a repercussão geral em virtude de afetar número elevado de demandas submetidos ao Superior Tribunal Militar (RE nº 575144). Por fim, em outro caso (RE nº 572762), restou consignado estar presente as relevâncias política e econômica, em razão de dizer respeito a todos os Municípios de determinado Estado-Membro, e a relevância jurídica, devido à tese debatida revelar os limites dos dispositivos constitucionais tidos por violados.
Percebe-se, portanto, que sempre que a decisão do STF num caso for extensiva a outros, já existentes ou futuros, há repercussão geral. Quando se trata de demandas consideradas repetitivas, o STF também tende a aceitar a transcendência, em virtude do efeito multiplicador que terá.
Feita essa exposição sobre alguns casos com repercussão geral, resta relatar o outro lado, qual seja, o da inexistência de relevância.
Em recurso extraordinário (RE nº 565138) em sede de ação de indenização por danos morais, o STF considerou que tais danos decorreriam, na situação dos autos, de fatos particulares e específicos do caso concreto, motivo pelo qual não vislumbrou a existência da repercussão geral. Tratava-se de situação em que fraudes praticadas por alguns árbitros do campeonato brasileiro de futebol da série B causaram, segundo a sentença, dúvida, aflição, angustia e desequilíbrio no bem-estar do torcedor.
O STF também considerou inexistente a repercussão geral no caso de recurso extraordinário (RE nº 565506) contra decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios que julgou improcedente ação direta de constitucionalidade local proposta contra lei distrital que obrigava a instalação de semáforos com dispositivo de acionamento pelos próprios pedestres, nas faixas especificadas. A Suprema Corte entendeu que se tratava de questão específica, local e de efeito restrito, sem qualquer importância transcendente.
Outro fundamento apresentado pelo STF para afastar a repercussão geral é a já existência de jurisprudência pacificada do próprio Supremo sobre o assunto guerreado. O caso (RE nº 562581) envolvia pedido de equiparação remuneratória entre os procuradores autárquicos e os procuradores do Estado, todos no âmbito paulista. Como o STF já decidiu, em outros casos, ser impossível essa equiparação, não pode admitir a existência de relevância a justificar novo pronunciamento sobre o mesmo tema.
Por fim, o STF também deixou consignado não haver repercussão geral no caso de a solução da causa ter dependido da análise dos direitos e interesses das partes segundo o estipulado entre elas em instrumento contratual. O caso (RE nº 573181) envolvia contrato de exclusividade de fornecimento de produtos derivados de petróleo celebrado entre distribuidora e revendedora. Assim, infere-se que, por se tratar de contrato peculiar, não há que se falar em repercussão geral. Mas quando se pensa em contratos de massa, milhares de igual teor celebrados com consumidores, por exemplo, a relevância resta plenamente configurada, uma vez que o próprio STF considerou suficiente para a admissão de recurso extraordinário a existência de inúmeras outras demandas em curso sobre o mesmo tema, in casu, sobre o mesmo conteúdo contratual.
Destarte, o STF, por meio de seus julgados, vai delineando os limites interpretativos da repercussão geral. Claro está que existe repercussão geral nas causas repetitivas, com inúmeras demandas iguais abarrotando o Judiciário, nos casos que estabeleçam os limites de certa norma constitucional para todas as pessoas, e quando há interesse de mais de um ente da federação em algum instituto, como o concurso público e a licitação, por exemplo. Por outro lado, inexiste a transcendência quando o STF já tiver jurisprudência pacífica sobre o assunto, quando a resolução do caso se fundar em contrato peculiar firmado entre as partes, e, de uma maneira geral, quando tratar-se de tema restrito ou local, sem possibilidade de extensão a outras pessoas.
3.7. Repercussão geral em matéria criminal.
A repercussão geral como pressuposto de admissibilidade foi prevista inicialmente na Constituição Federal. Após, foi regulamentada pela legislação infraconstitucional, por da inserção de dispositivos no CPC. Assim, poderia ser questionada a necessidade da demonstração desse requisito nos recursos extraordinários que tratam de matéria criminal.
Ocorre que a repercussão geral foi inserida no âmbito da Constituição Federal, tendo, pois, caráter geral. Não obstante os recursos criminais sejam dotados de certas peculiaridades, isso não afeta a disciplina dos recursos extraordinários, de índole substancialmente constitucional.
O fato de a legislação regulamentadora, que deu aplicabilidade ao instituto, ter sido inserida no âmbito do direito processual civil não tem relevância, a ponto de afastar sua aplicação da seara criminal. O CPC pode muito bem ser aplicado subsidiariamente, sobretudo porque o conteúdo dessa regulamentação possui caráter totalmente geral. A única relação com o âmbito cível é realmente o fato de estar inserida no CPC.
Ademais, também resta afastada uma suposta presunção de existência de repercussão geral, em virtude de o recurso extraordinário criminal tutelar, em última análise, a liberdade de locomoção. Esse recurso visa a preservar a autoridade da Constituição, bem como dar uniformidade à sua interpretação, necessitando, então, da demonstração do requisito de admissibilidade em comento. Para tutelar diretamente a liberdade de locomoção existe o habeas corpus, que difere totalmente do recurso extraordinário.
É de bom alvitre registrar a posição contrária de Esdras dos Santos Carvalho, para quem não se pode exigir a presença da repercussão geral em recursos extraordinários que versem sobre matéria criminal. Defende que, pelo fato de tal requisito de admissibilidade ter sido previsto na constituição como norma de eficácia limitada, depende de regulamentação específica para cada área. A Lei nº 11.418/2006, por ter sido inserida no CPC, não poderia ser aplicada ao processo penal, para o qual ainda não teria havido a devida regulamentação. Ainda sustenta que, se exigida, a repercussão geral se impõe pela simples relevância do direito criminal, que é de interesse de toda a sociedade por envolver a persecução penal. Colacionam-se seus comentários:
Por todo o exposto, conclui-se que não se poderá exigir do recorrente a demonstração, em sede preliminar, da transcendência ou repercussão geral no recurso extraordinário ofertado em matéria criminal, vez que a norma contida no art. 102, parágrafo 3º, da Constituição Federal não possui eficácia imediata, ou como quer parte da doutrina, é preceito constitucional com eficácia relativa dependente de complementação legislativa, sendo, portanto, necessário a alteração do Código de Processo Penal, como já ocorreu na esfera do direito processual civil com a Lei 11.418 de 19 de dezembro de 2006, que acrescentou os artigos 543-A e 543-B ao CPC.
Não se imporá também a exigência da repercussão geral em virtude da relação jurídica na esfera criminal ser completamente distinta das estabelecidas nas demais áreas do direito, até mesmo pelo bem jurídico protegido que, por vezes, ultrapassa a esfera de disponibilidade do titular do direito, repercutindo em toda a coletividade. Haverá, assim, grande dificuldade do legislador em regulamentar a questão da transcendência, pois, com dissemos, a própria relação jurídica processual penal, de per si, já extrapola os interesses pessoais envolvidos. (Carvalho, 2007, p. 16)
Deixa-se claro, porém, que a posição do STF é no sentido de que deve haver, sim, a demonstração da repercussão geral no recurso extraordinário que trate de matéria criminal, em consonância com os argumentos aqui aduzidos.
4. Conclusão.
A Emenda Constitucional nº 45/2004 acrescentou ao texto constitucional o § 3º do art. 102, prevendo a necessidade de demonstração de uma repercussão geral da questão constitucional para que se possa interpor o recurso extraordinário. A nova regra é classificada como uma norma constitucional de eficácia limitada de princípio institutivo obrigatório, dependendo, pois, de regulamentação. Diz-se que possui aplicabilidade indireta.
A Lei nº 11.418/2006, ao acrescentar o art. 543-A ao CPC, regulamentou a repercussão geral, que, no entanto, só passou a ser exigida em 03 de maio de 2007, data da entrada em vigor da regulamentação do assunto pela Emenda Regimental nº 21/2007, integrante do Regimento Interno do STF.
A repercussão geral se apresenta, em sua natureza jurídica, como um novo requisito ou pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário. Assim, o recorrente tem o ônus de, em sede de preliminar, demonstrar, para apreciação exclusiva do STF, a relevância da matéria. Ressalta-se que a Suprema Corte só pode recusar o recurso sob esse argumento por dois terços dos seus membros.
Verificou-se, ainda, que a repercussão geral é instituto diferente da antiga “argüição de relevância”, seu antecedente histórico, porquanto esta era analisada em sessão secreta e sem qualquer fundamentação, com um viés muito mais político do que jurídico. Ademais, não havia qualquer delimitação do que seria a relevância, motivo pelo qual se abria margem a arbitrariedades, em consonância com o período ditatorial por que passava o Brasil à época. Considerava-se, inclusive, que o STF, ao determinar os casos que tinham relevância, praticava atos de natureza eminentemente legislativa.
O atual instituto, ao contrário, possui alguns limites, haja vista que a legislação considera, para efeito de repercussão geral, a existência, ou não, de questão relevante do ponto de vista econômico, político, jurídico ou social, que ultrapasse os meros interesses subjetivos das partes. Ainda, além de ser julgada em sessão aberta por decisão fundamentada, consagra um caso de presunção absoluta da repercussão geral, sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do STF.
Assim, num atual quadro de grande volume de processos no STF, muitos dizendo respeito às chamadas “brigas de vizinhos”, a repercussão geral surge como uma forma de concretizar os princípios da celeridade processual, do acesso ao Judiciário e da efetividade, resgatando, também, a função precípua da Suprema Corte, que é a de guardar a Constituição e uniformizar a interpretação de suas normas.
O STF, por meio de seus julgados, vai delineando os limites interpretativos da repercussão geral. Assim, há repercussão geral nas causas repetitivas, com inúmeras demandas iguais abarrotando o Judiciário, nos casos que estabeleçam os limites de certa norma constitucional para todas as pessoas, e quando há interesse de mais de um ente da federação em algum instituto, como o concurso público e a licitação, por exemplo. Por outro lado, inexiste a transcendência quando o STF já tiver jurisprudência pacífica sobre o assunto, quando a resolução do caso se fundar em contrato peculiar firmado entre as partes, e, de uma maneira geral, quando tratar-se de tema restrito ou local, sem possibilidade de extensão a outras pessoas.
Ainda foi trazida à baila a questão do recurso extraordinário em matéria criminal, que, embora conte com pensamento em sentido contrário, também exige a demonstração da repercussão geral como pressuposto de admissibilidade, inclusive conforme entendimento do STF.
Conclui-se, portanto, que a repercussão geral é um novo pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário que veio para contribuir para a celeridade processual e para o resgate das funções essenciais da nossa Corte Constitucional.
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Procurador Federal, pós-graduado em Regulação de Telecomunicações e pós-graduando em Direito Administrativo e em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Paulo Firmeza. A repercussão geral no recurso extraordinário: contexto histórico de sua abrangência e finalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 dez 2012, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33193/a-repercussao-geral-no-recurso-extraordinario-contexto-historico-de-sua-abrangencia-e-finalidade. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
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