SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O prazo previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99. 2.1. Natureza jurídica. 2.2. Aplicabilidade. 2.2.1. Atos nulos. 2.2.2 Atos normativos. 2.3. Contagem do prazo. 2.4. Efeitos. 3. Conclusão. 4. Referências bibliográficas.
RESUMO: O presente trabalho busca analisar o prazo previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99, que impõe limite temporal para a Administração Pública anular seus próprios atos, quando eivados de ilegalidades, tratando da natureza jurídica, da forma de contagem, dos efeitos e, especialmente, da sua aplicabilidade aos atos nulos e aos atos normativos.
PALAVRAS-CHAVE: Administrativo – Nulidade – Prazo – Atos nulos – Atos normativos.
ABSTRACT: This study analyzes the term contained in the art. 54 of Law nº 9.784/99, that establishes a temporal limit for Public Administration to annul its own illegal acts, examining the nature of this term, its effects, the correct way to count it and, specially, its applicability to null acts and normative acts.
KEY WORDS: Administrative – Nullity – Term – Null acts – Normative acts.
1. Introdução.
Os atos administrativos podem eventualmente apresentar vícios de legalidade que o maculem de nulidade. Caso provocado, o Poder Judiciário pode anular tais atos. Tal medida, contudo, obviamente também pode ser adotada pela própria autoridade que praticou o ato ilegal.
Trata-se da aplicação do princípio da autotutela, segundo o qual a própria Administração Pública pode, diante de seus erros, adotar as medidas necessárias para restaurar a situação de regularidade, sem necessidade de prévia provocação de terceiros. A súmula nº 473 do Supremo Tribunal Federal – STF consagrou tal entendimento, in verbis:
A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.
Na verdade, apesar de reforçar o poder de autotutela da Administração Pública, a súmula, que foi editada em 3 de outubro de 1969, acaba utilizando o verbo “poder”, dando, numa análise superficial, a ideia de uma mera possibilidade de anular seus atos. Contudo, o “poder” mencionado pela súmula deve ser interpretado como um poder-dever ou, como preferem alguns doutrinadores, um dever-poder.
Constatando uma ilegalidade, portanto, deve a Administração Pública, se não for caso de convalidação, anular seus atos quando eivados de ilegalidade. José dos Santos Carvalho Filho[1], nessa linha, afirma que “não se trata apenas de uma faculdade, mas também de um dever, pois que não se pode admitir que, diante de situações irregulares, permaneça inerte e desinteressada”.
Trata-se, assim, de dever de ofício, inclusive previsto no art. 53 da Lei nº 9.784/99, que disciplina o processo administrativo na esfera federal, dispondo exatamente que “a Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade (...)”.
Em contraponto a esse dever de anular, contudo, surge o prazo previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99:
Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.
§ 1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.
§ 2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.
Tal dispositivo, ao impor um limite temporal para que se proceda à anulação, ainda que aplicável a determinadas situações, mitiga esse dever de anular, em benefício do princípio da segurança jurídica. O legislador, portanto, materializou no dispositivo sua preferência, resultante de ponderação axiológica e aplicável a alguns casos, pela segurança das relações jurídicas, em detrimento do dever de anular atos ilegais. Após determinado prazo, tolera-se, então, a permanência de atos ilegais no seio da Administração Pública.
O objetivo do presente trabalho, então, é analisar os diversos aspectos que envolvem a aplicação desse prazo decadencial para que a Administração possa anular seus atos ilegais, incluindo natureza jurídica, forma de contagem, efeitos e, sobretudo, sua aplicabilidade aos atos nulos e aos atos normativos.
2. O prazo previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99.
2.1. Natureza jurídica.
Há basicamente dois institutos que buscam conferir estabilidade às relações jurídicas por meio do decurso do tempo: prescrição e decadência. Este se relaciona aos direitos potestativos, ao passo que aquele diz respeito aos direitos a uma prestação.
Os direitos potestativos são aqueles que conferem ao titular o direito de eles próprios serem capazes de gerar efeitos pela simples manifestação de vontade. São direitos, portanto, que não dependem de terceiros para seu efetivo exercício. Cotejando-se tal raciocínio com o direito processual civil, pode-se dizer que os direitos potestativos se relacionam com as ações constitutivas, em que o direito é exercido pela simples decisão judicial, sem necessidade de atos materiais subsequentes, ou melhor, sem necessidade de uma prestação. Aqui não se fala em violação do direito, pois seu exercício depende apenas do titular.
Já os direitos a uma prestação, ao contrário, são aqueles que, para seu efetivo exercício, dependem de atos subsequentes para surtirem efeitos. Exigem, portanto, a prática da prestação a que se tem direito, que não pode ser feita pela simples manifestação de vontade do seu titular. Em cotejo com o direito processual civil, se relacionam com as ações de prestação, ou seja, condenatórias, mandamentais e executivas em geral. Aqui, há violação do direito, que faz surgir a pretensão de exigir judicialmente de outrem a prestação a que ele tinha se obrigado.
Nessa linha, quando se trata de direitos a uma prestação, o instituto é o da prescrição da pretensão nascida com a violação do direito. Ultrapassado o prazo, considera-se prescrita a pretensão. Por outro lado, quando se trata de direitos potestativos, o instituto aplicável é o da decadência, que, uma vez incidida, pelo não exercício do direito no prazo decadencial, implica a extinção do próprio direito.
Maria Helena Diniz[2] leciona nesse mesmo sentido:
A decadência não se confunde com a prescrição. A decadência é a extinção do direito potestativo pela falta de exercício dentro do prazo prefixado, atingindo indiretamente a ação, enquanto a prescrição extingue a pretensão, fazendo desaparecer, por via oblíqua, o direito por ela tutelado que não tinha tempo fixado para ser exercido.
Dessa forma, observa-se que o direito da Administração de anular seus próprios atos administrativos, em razão de produzir efeitos pela simples manifestação nesse sentido, consubstancia um direito potestativo, sujeito, pois, à decadência. O prazo previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99, então, possui natureza jurídica de decadência, e não de prescrição. Almiro do Couto e Silva[3], corroborando a natureza de decadência do referido prazo, tece as seguintes considerações sobre o assunto:
A Administração Pública, quando lhe cabe esse direito [à invalidação] relativamente aos seus atos administrativos, não tem qualquer pretensão quanto ao destinatário daqueles atos. Este, o destinatário, entretanto, fica meramente sujeito ou exposto a que a Administração Pública postule a invalidação perante o Poder Judiciário ou que ela própria realize a anulação, no exercício da autotutela administrativa.
À luz desses pressupostos, é irrecusável que o prazo do art. 54 da Lei n° 9784/99 é de decadência e não de prescrição. O que se extingue, pelo transcurso do prazo, desde que não haja má fé do interessado, é o próprio direito da Administração Pública federal de pleitear a anulação do ato administrativo, na esfera judicial, ou de ela própria proceder a essa anulação, no exercício da autotutela administrativa. (COUTO E SILVA 2005:23)
De qualquer forma, a natureza de decadência já foi consagrada no art. 54 da Lei nº 9.784/99, que aduz, no seu caput, que o direito de anular “decai em cinco anos”, a ele fazendo referência, no seu §1º, com a expressão “prazo de decadência”.
2.2. Aplicabilidade.
Primeiramente, deve-se chamar atenção para o fato de que o art. 54 da Lei nº 9.784/99 se aplica apenas aos atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis aos seus destinatários (administrados ou servidores). A hermenêutica teleológica do dispositivo induz ao raciocínio de que, ponderando-se os valores da legalidade e da segurança jurídica, este há de prevalecer para salvaguardar os benefícios dos destinatários dos atos administrativos.
Portanto, só se dá preferência à segurança jurídica, em detrimento da legalidade, nos casos em que a anulação prejudicar os destinatários do ato. Se do ato administrativo não decorrer efeito favorável a seu destinatário, tal situação foge do âmbito de incidência do art. 54 da Lei nº 9.784/99, não havendo, nessa hipótese, prazo decadencial, em clara preferência ao princípio da legalidade.
A outra hipótese que de plano foge do âmbito de incidência do dispositivo é a de comprovada má-fé. Assim, quando a nulidade tiver comprovadamente sido praticada com má-fé por parte do servidor, há de prevalecer o princípio da legalidade, ainda que a anulação prejudique o destinatário do ato. Do contrário, admitir-se-ia a obtenção de um benefício ilegal decorrente da própria torpeza, consolidando-se no tempo situações intencionalmente nulas, o que é absurdo.
2.2.1. Atos nulos
Como se vê, a consequência da aplicação do art. 54 da Lei nº 9.784/99 é extremamente drástica, pois implica a permanência eterna no mundo jurídico de atos ilegais. Em razão disso, o dispositivo deve ser interpretado restritivamente.
Pois bem.
De pronto, urge saber se o ato administrativo é anulável, nulo ou inexistente. Em linhas gerais, a doutrina afirma que o ato anulável seria aquele passível de ser convalidado, tal como o praticado por sujeito incompetente. O ato nulo, por sua vez, seria aquele cujo conteúdo em si não pode ser repetido, como o vício de objeto. Já os atos inexistentes seriam os atinentes à esfera do impossível jurídico, abrangendo, inclusive, crimes, por exemplo.
Celso Antônio Bandeira de Mello[4] ensina que:
(...) são nulos: a) os atos que a lei assim declare; b) os atos em que é racionalmente impossível a convalidação, pois, se o mesmo conteúdo (é dizer, o mesmo ato) fosse novamente produzido, seria reproduzida a invalidade anterior. Sirvam de exemplo: os atos de conteúdo (objeto) ilícito; os praticados com desvio de poder; os praticados com falta de motivo vinculado; os praticados com falta de causa.
Dessa forma, defende-se que os atos nulos e, sobretudo, os inexistentes, não se sujeitam ao prazo decadencial para que sejam anulados, porquanto não se pode tolerar, a pretexto de segurança jurídica, a existência de atos flagrantemente ilegais (nulos ou inexistentes). Na verdade, o presente entendimento diz respeito mais aos atos nulos, já que os inexistentes, por sequer existirem, nem precisariam, a rigor, ser anulados. É que, se a anulação retira o ato do mundo jurídico, os atos inexistentes, na verdade, nunca chegaram a existir a ponto de que se exija sua retirada do mundo jurídico.
Não faltam doutrinadores especializados no assunto que defendem a inaplicabilidade do art. 54 da Lei nº 9.784/99 aos atos nulos ou que possuem vícios de maior gravidade. De fato, passados cinco anos sem que a Administração Pública tenha se pronunciado pela nulidade, ocorre uma convalidação tácita. O ato fica valendo de forma regularizada, não mais sendo possível anulá-lo. Entende-se, então, que o prazo decadencial de cinco anos só seria aplicável aos atos administrativos anuláveis, que são os convalidáveis. Para os atos administrativos nulos, por não serem convalidáveis, não seria aplicável esse prazo decadencial de cinco anos.
Mostra-se irrazoável, realmente, quando se trata de ato com vício grave em sua essência, deixá-lo valer apenas em virtude do decurso do tempo. Em obra sobre o assunto, Cristiana Fortini, Maria Pereira e Tatiana Camarão[5] lecionam:
Mas cremos que o atual reconhecimento do prestígio do princípio da segurança jurídica, historicamente desmerecido pela supervalorização do princípio da legalidade, não pode autorizar que hoje se cometa o excesso, em sentido contrário: superenaltecendo a segurança jurídica e aniquilando a legalidade.
Assim, preferimos o entendimento defendido por Juarez Freitas, para quem o porte do vício que acomete o ato será balizador da ocorrência ou não da decadência. Caso o vício fosse de alta monta, não seria possível admitir a eterna permanência do ato ilícito.
O autor exemplifica seu pensamento, ilustrando-o com a descrição de uma nomeação para o cargo efetivo realizada com ofensa ao princípio do concurso público. Seria correto dimensionar a importância do princípio da segurança jurídica a ponto de tal nomeação continuar a produzir efeitos para todo o sempre porque não mais possível desfazê-la após os 5 anos previstos no art. 54?
(...)
Parece-nos que o princípio da razoabilidade socorreria o intérprete, a fim de elucidar quando aplicar o quinquíndio legal afirmado no art. 54.
Almiro do Couto e Silva[6] também trata do tema:
Por certo, se tal ato administrativo for nulo, na acepção que damos ao qualitativo, não há que falar em decadência, não porque se trate de ato ilícito que tenha como consequência lesão ao erário ou haja agressão a valores constitucionais, como a moralidade pública, mas pela simples razão de que os atos nulos são insuscetíveis de decadência ou de prescrição.
Abordando o assunto sob o prisma da distinção entre nulidade absoluta e relativa, Elody Nassar[7] afirma que “o princípio da segurança jurídica, por evidente, há de ser aplicado com cautela, para não levar ao absurdo de impedir a Administração de anular atos praticados com inobservância da lei”. E defende a não aplicação do prazo de cinco anos quando for o caso de nulidade absoluta:
Segundo o entendimento dominante na doutrina nacional, a exegese do art. 54 da Lei nº 9784/99 comporta a seguinte orientação: o poder-dever da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, salvo se se tratar de ato de nulidade absoluta, porquanto em relação a estes seria desproporcional cogitar da aplicação do prazo quinquenal.
Felipe R. Deiab[8], no mesmo sentido, posiciona-se pela não convalidação de atos nulos em razão do decurso do tempo:
Os atos nulos ou absolutamente insanáveis, a seu turno, como já salientamos, contrariam de tal forma o ordenamento que não podem ser sanados nem pelo tempo. Correspondem às hipóteses de anulação de atos administrativos viciados, para as quais a lei não instituiu prazo decadencial (assemelhando-se a um direito potestativo sem prazo definido em lei para o seu exercício).
Por fim, colacionam-se as lições Raquel Melo Urbano de Carvalho[9]:
Atentando para a posição doutrinária majoritária de que atos com vícios de finalidade, de motivo ou de conteúdo são necessariamente nulos e, assim, não devem produzir efeitos, tem-se como incabível a decadência quinquenal para o exercício da autotutela administrativa em tais situações. O art. 54 da Lei Federal nº atingiria somente os atos anuláveis, a saber, aqueles com vícios de sujeito ou de forma, se esta não for exigida pela lei. Estes seriam os atos viciados que apenas poderiam ser revistos no prazo de decadência de 05 (cinco) anos, salvo comprovada má-fé.
Enfim, a Administração Pública pode, sim, pronunciar a nulidade dos atos nulos mesmo após o prazo de cinco anos, uma vez que o art. 54 da Lei nº 9.784/99 não é aplicável nem aos atos nulos (chamada nulidade absoluta) nem aos atos inexistentes. Reforça esse entendimento o fato de que desse ato administrativo necessariamente decorrem efeitos favoráveis aos seus destinatários – do contrário, nem sequer se discutiria sobre a aplicabilidade do dispositivo –, o que consubstancia ato ampliativo de direitos, a ensejar efeitos ex nunc da nulidade, como se verá mais adiante, sem retroatividade de prejuízos.
2.2.2. Atos normativos.
Outra restrição à aplicabilidade do art. 54 da Lei nº 9.784/99 diz respeito aos atos normativos. De fato, o dispositivo se refere, na verdade, aos atos administrativos concretos, e não aos atos normativos.
Um ato administrativo de conteúdo normativo possui, conceitualmente, um comando geral e abstrato, aplicável a todos que se enquadrem em sua previsão hipotética. Diferem, pois, dos atos concretos, que se dirigem a pessoas ou situações determinadas. José dos Santos Carvalho Filho[10] também chama os atos normativos de atos gerais, que seriam “aqueles que regulam uma quantidade indeterminada de pessoas que se encontram na mesma situação jurídica”, citando como exemplo os regulamentos e as instruções normativas.
Ora, sabe-se que, numa situação regida pelo direito público, não há direito adquirido a regime jurídico. Tal premissa é amplamente utilizada em várias vertentes. Aplicando-a ao trabalho em tela, tem-se que não há direito adquirido a ser eternamente regido por um determinado ato normativo.
O ato normativo, ao trazer as regras, gerais e abstratas, sobre um assunto, representa o regime jurídico desse assunto. Afinal, o regime jurídico nada mais é do que o conjunto de regras e princípios (normas) que disciplina determinada matéria. O raciocínio, portanto, é exatamente o mesmo de uma lei ordinária ou qualquer outro ato normativo hierarquicamente superior: consubstancia regime jurídico e, portanto, é naturalmente mutável, seja por alterações discricionárias seja por razões de nulidade, não havendo que se falar em direito adquirido à sua manutenção.
No que tange à inexistência de direito adquirido a regime jurídico, a jurisprudência do STF, mutatis mutandis, é pacífica, como se observa:
EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA. SÚMULA 287 DO STF. REGIME JURÍDICO. DIREITO ADQUIRIDO. INOCORRÊNCIA. AGRAVO IMPROVIDO. I - As razões do agravo regimental não infirmam os fundamentos da decisão agravada, o que atrai a incidência da Súmula 287 do STF. II - A jurisprudência do Tribunal é no sentido de que não há direito adquirido a regime jurídico, no qual se inclui o nível hierárquico que o servidor ocupa na carreira. Precedentes. III - Agravo regimental improvido. (AI 608441 AgR, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 17/03/2009, DJe-071 DIVULG 16-04-2009 PUBLIC 17-04-2009 EMENT VOL-02356-16 PP-03273)
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. SERVIDOR PÚBLICO. PROVENTOS. PRESERVAÇÃO DO VALOR NOMINAL. PRINCÍPIO DA IRREDUTIBILIDADE DE VENCIMENTOS. ANÁLISE. REEXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. 1. Não há direito adquirido a regime jurídico, sendo possível, portanto, a redução ou mesmo a supressão de gratificações ou outras parcelas remuneratórias, desde que preservado o valor nominal da remuneração. 2. Para afirmar que não houve redução da remuneração seria necessária a análise dos fatos e provas. Incide no caso a Súmula n. 279 deste Tribunal Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 591230 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 17/03/2009, DJe-071 DIVULG 16-04-2009 PUBLIC 17-04-2009 EMENT VOL-02356-14 PP-02892).
De fato, inexiste direito adquirido a regime jurídico. Nos setores regulados essa máxima ainda é mais forte, porquanto os agentes regulados têm que se adequar à regulamentação editada pelo órgão regulador, não havendo garantia de permanência das condições vigentes quando da expedição da outorga para explorar determinada atividade, ou seja, devem ser observados os novos condicionamentos impostos tanto por lei quanto pela regulamentação (ato administrativo normativo).
Fica clara, pois, a inaplicabilidade do art. 54 da Lei nº 9.784/99 aos atos normativos. Entender o contrário seria admitir que o administrado possui direito adquirido a regime jurídico. Pior. É admitir que o administrado tem direito adquirido a um regime jurídico ilegal. O dispositivo ilegal de um regulamento, por exemplo, deve necessariamente ser anulado. No caso de passarem os cinco anos sem que isso tenha ocorrido, e admitindo que não mais se possa anulá-lo, os administrados teriam direito adquirido a esse regime jurídico ilegal, o que é absurdo.
Sob outro prisma, é possível pensar que, em princípio, a Administração Pública poderia revogar o dispositivo, já que o prazo de cinco anos guarda relação com o instituto da anulação, e não com o da revogação. Situação esdrúxula seria essa: a Administração não mais poderia anular o dispositivo em razão da ilegalidade detectada, mas poderia revogá-lo por motivo de conveniência e oportunidade, causa bem mais branda para retirar o ato do ordenamento jurídico. Nessa ordem de ideias, a revogação afigurar-se-ia até mesmo como uma burla ao próprio art. 54 da Lei nº 9.784/99: decorridos os cinco anos, procede-se à revogação, ao invés da anulação.
Toda essa contradição corrobora o entendimento de que o referido art. 54 não pode ser aplicado a atos normativos.
Ademais, um ato normativo, a rigor, também não poderia ser enquadrado como um ato de que decorram efeitos favoráveis ao seu destinatário, uma vez que possui as características da generalidade e abstração, ou seja, não é dirigido especificamente a destinatários determinados, mas a todos aqueles que tenham sua situação subsumida ao comando normativo.
Dessa forma, o ato normativo, apesar de inevitavelmente afetar interesses, em benefício ou prejuízo de um ou de outro, o faz em caráter abstrato, sem que os eventuais efeitos favoráveis ingressem no patrimônio jurídico daqueles que, concretamente, sofrem a incidência do ato normativo. Os efeitos favoráveis, aqui, são abstratos, atingindo destinatários indeterminados, e indiretos ou reflexos, pois a finalidade do ato normativo é disciplinar situações hipotéticas, e não a de pessoas determinadas, que são atingidas pelo comando normativo apenas de maneira oblíqua.
2.3. Contagem do prazo.
É preciso, agora, analisar a forma de contagem do prazo decadencial de cinco anos, demarcando-se seus termos inicial e final.
Quanto ao termo inicial, o prazo para anulação começa na data da vigência do ato administrativo viciado, que, em regra, coincide com a de sua publicação. Referido prazo não se suspende nem se interrompe, nos termos do art. 207 do Código Civil, a menos que haja previsão legal em contrário.
Com relação ao fim do prazo, cumpre registrar que, nos termos do § 2º do art. 54 da Lei nº 9.784/99, o direito de anular o ato é exercido quando a Administração adota qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato. Como se vê, o legislador utilizou um critério bastante amplo para que se configure esse exercício do direito de anular. Basta uma medida de uma autoridade que implique impugnação ao ato.
Exige-se, pois, que (i) seja adotada uma medida; (ii) por uma autoridade administrativa, obviamente dotada de competente poder de decisão, nos termos do art. 1º, § 2º, inciso III, da Lei nº 9.784/99; e (iii) que importe impugnação formal e direta à validade do ato.
Estando os dois últimos elementos bem delineados, pode-se discutir acerca da “adoção de qualquer medida”. Entende-se que parece necessária a instauração formal de um processo de anulação, de ofício, ou a simples determinação de autoridade competente, também formalizada, para que seja instaurado esse processo de anulação. Ambos os casos podem claramente ser enquadrados na expressão legal (qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato).
Tecidas essas considerações, o fato a ser destacado é que a efetiva anulação pode ocorrer após o prazo de cinco anos, já que a norma exige apenas que, nesse prazo, seja adotada qualquer medida que implique impugnação do ato. Não há, portanto, exigência de se proceder à efetiva anulação dentro do prazo decadencial. Exercido o direito de anular, nos termos amplos do § 2º do art. 54 da Lei nº 9.784/99, nada impede que a anulação ocorra após os cinco anos, uma vez que a inércia administrativa, causa da estabilização de situações irregulares (atos anuláveis), já foi quebrada.
Sobre o assunto, ensina José dos Santos Carvalho Filho[11] que:
(...) Não há necessidade, pois, que a Administração anule de pronto o ato eivado de vício; basta que tome a efetiva iniciativa de fazê-lo. Tal iniciativa já estará apta a demonstrar que a Administração não está inerte e, como já está exercendo o direito no prazo quinquenal fixado na lei, não mais poderá considerar-se a possibilidade de ocorrer a decadência.
2.4. Efeitos.
Quanto aos efeitos, tem-se que a anulação de um ato administrativo provoca, em geral, efeitos ex tunc, ou seja, retroage à data da prática do ato, fazendo com que sejam fulminados eventuais efeitos que o ato nulo tenha gerado. Ocorre que em alguns casos a anulação tem efeitos ex nunc, sem retroação. Mais uma vez se vale das lições de Celso Antônio Bandeira de Mello[12]:
Na conformidade desta perspectiva, parece-nos que efetivamente nos atos unilaterais restritivos da esfera jurídica dos administrados, se eram inválidos, todas as razões concorrem para que sua fulminação produza efeitos ex tunc, exonerando por inteiro quem fora indevidamente agravado pelo Poder Público das consequências onerosas. Pelo contrário, nos atos unilaterais ampliativos da esfera jurídica do administrado, se este não concorreu para o vício do ato, estando de boa-fé, sua fulminação só deve produzir efeitos ex nunc, ou seja, depois de pronunciada.
Ao exemplificar, Bandeira de Mello chega a tratar da anulação de uma permissão de uso de bem público:
Assim, v.g., se alguém é nomeado em consequência de concurso público inválido, e por isto vem a ser anulada a nomeação dele decorrente, o nomeado não deverá restituir o que percebeu pelo tempo que trabalhou. Nem se diga que assim há de ser tão-só por força da vedação do enriquecimento sem causa, que impediria ao Poder Público ser beneficiário de um trabalho gratuito. Deveras, embora não compareça tal fundamento, a solução haverá de ser a mesma se alguém é permissionário de uso de um bem público e mais tarde vem-se a descobrir que a permissão foi invalidamente outorgada. A invalidação deverá operar daí para o futuro. Descaberia eliminar retroativamente a permissão; isto é: o permissionário, salvo se estava de má-fé, não terá que devolver tudo o que lucrou durante o tempo em que desfrutou da permissão de uso do bem.
Dessa forma, possuindo o ato administrativo contornos ampliativos da esfera jurídica do seu destinatário, sua nulidade deve ser pronunciada pela Administração Pública de modo que seus efeitos se operem a partir de então. Ex nunc, portanto.
Registra-se que, em virtude da não retroação do pronunciamento da nulidade, o destinatário do ato, no que toca ao período pretérito à anulação, não sofre quaisquer prejuízos em sua esfera jurídica de interesses, o que reforça, como já dito, a inaplicabilidade do art. 54 da Lei nº 9.794/99 aos atos nulos e aos atos normativos.
O direito da Administração de anular seus atos administrativos, em razão de produzir efeitos pela simples manifestação, consubstancia um direito potestativo, sujeito, pois, ao instituto da decadência. O prazo previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99, então, possui natureza jurídica de decadência, e não de prescrição.
De plano, chama-se atenção para o fato de que o art. 54 da Lei nº 9.784/99, que deve ser interpretado restritivamente, não se aplica aos atos administrativos de que decorram efeitos desfavoráveis aos seus destinatários, nem aos casos em que a nulidade tiver comprovadamente sido praticada com má-fé.
Os atos nulos (chamada nulidade absoluta) e, sobretudo, os inexistentes, também não se sujeitam ao prazo decadencial para que sejam anulados, porquanto não se pode tolerar, a pretexto de segurança jurídica, a existência de atos flagrantemente ilegais (nulos ou inexistentes). O prazo decadencial de cinco anos só seria aplicável aos atos administrativos anuláveis, que são os convalidáveis. Para os atos administrativos nulos, por não serem convalidáveis, ele não seria aplicável.
Ainda é inaplicável o prazo previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99 aos atos normativos. Entender o contrário seria admitir que o administrado possui direito adquirido a regime jurídico. Pior. É admitir que o administrado tem direito adquirido a um regime jurídico ilegal. Além disso, o ato normativo, a rigor, também não poderia ser enquadrado como um ato de que decorram efeitos favoráveis ao seu destinatário, uma vez que possui as características da generalidade e abstração, ou seja, não é dirigido especificamente a destinatários determinados, mas a todos aqueles que tenham sua situação subsumida ao comando normativo.
Quanto à contagem do prazo, ela tem início na data da vigência do ato administrativo viciado, exigindo-se que, dentro dos cinco anos seguintes, uma autoridade administrativa dotada de competente poder de decisão impugne, direta e formalmente, a validade do ato, por qualquer medida, que pode ser a instauração de um processo de anulação ou a simples determinação de sua instauração. Com isso, a efetiva anulação pode ocorrer após o prazo de cinco anos, já que a norma exige apenas que, nesse prazo, se adote uma medida que importe impugnação do ato.
Por fim, registra-se que a anulação de atos de que decorram efeitos favoráveis aos seus destinatários (contornos ampliativos da esfera jurídica) possui efeitos ex nunc, o que reforça a inaplicabilidade do art. 54 da Lei nº 9.794/99 aos atos nulos e aos atos normativos.
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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005;
NASSAR, Elody. Prescrição na administração pública. São Paulo: Saraiva, 2004.
[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 27.
[2]DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 245.
[3]COUTO E SILVA, Almiro do. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público Brasileiro e o Direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 2, abril, maio, junho, 2005. Disponível na internet: http://direitodoestado.com.br. Acesso em: 20 de novembro de 2012.
[4] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 446.
[5]FORTINI, Cristiana; Pereira, Maria Fernanda Pires de Carvalho; Camarão, Tatiana Martins da Costa. Processo Administrativo: comentários à Lei nº 9.784/1999. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 195 e 196
[6]COUTO E SILVA, Almiro do. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público Brasileiro e o Direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 2, abril, maio, junho, 2005. Disponível na internet: http://direitodoestado.com.br. Acesso em: 20 de novembro de 2012.
[7]NASSAR, Elody. Prescrição na administração pública. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 143, 144 e 196.
[8]DEIAB. Felipe R.. Algumas reflexões sobre a prescrição e a decadência no âmbito da atuação dos Tribunais de Contas. Revista Brasileira de Direito Público. Belo Horizonte: a. 2, nº 4, p. 128, jan/mar. 2004.
[9]CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 555.
[10]CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 111.
[11]CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal. Comentários à Lei nº 9.784 de 29/1/1999. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 287.
[12] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 447.
Procurador Federal, pós-graduado em Regulação de Telecomunicações e pós-graduando em Direito Administrativo e em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Paulo Firmeza. O direito da Administração de anular seus atos e a inaplicabilidade do prazo do art. 54 da Lei nº 9.784/99 aos atos nulos e normativos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 dez 2012, 07:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33283/o-direito-da-administracao-de-anular-seus-atos-e-a-inaplicabilidade-do-prazo-do-art-54-da-lei-no-9-784-99-aos-atos-nulos-e-normativos. Acesso em: 22 nov 2024.
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