RESUMO: A relativização da coisa julgada é um dos temas de maior discussão no Direito Processual Civil contemporâneo. O fenômeno da relativização da coisa julgada, de acordo com a doutrina, pode ocorrer de maneira típica (prevista no ordenamento jurídico) ou atípica (não prevista no ordenamento jurídico). O objetivo do presente artigo é concluir pela possibilidade ou impossibilidade da relativização da res judicata por meios atípicos. Para solução desta problemática utiliza-se o método jurídico-dogmático-instrumental e, subsidiariamente, o Jurídico-Epistemológico. Nesse sentido, após analisar os fundamentos epistemológicos do caso julgado, apresentam-se importantes teses doutrinárias acerca do tema, para, ao final, chegar a uma conclusão sobre a viabilidade da relativização atípica da coisa julgada quando em conflito com outros direitos e garantias fundamentais ou quando inexistente juridicamente. Sendo assim, por não existir direito absoluto, as decisões judiciais transitadas em julgado eivadas por vício de inconstitucionalidade podem ser impugnadas por ação autônoma denominada de querela nullitatis, a partir da técnica da ponderação de bens. De outro lado, as decisões judiciais das quais não caibam mais recursos eivadas com vício de inexistência podem ser superadas pela propositura de uma nova demanda de igual teor, dispensando-se a necessidade de ação de impugnação.
Palavras-chave: Coisa Julgada. Relativização Atípica. Inconstitucionalidade. Inexistência. Querela Nullitatis. Nova Demanda.
ABSTRACT: The relativization of res judicata is one of the most discussed topics in contemporary civil procedure law. The phenomenon of relativization of res judicata according to the doctrine, can occur in a typical (under law) or atypical way (not provided for by law). The objective of this article is to conclude either for possibility or for the impossibility of relativizing the res judicata by atypical means. For solving this problem we use the legal-instrumental-dogmatic method and, secondarily, the legal-epistemological method. Accordingly, after reviewing the epistemological bases of res judicata, we present important doctrinal arguments about the theme, in order to reach a conclusion on the feasibility of atypical relativization of res judicata when it’s in conflict with other fundamental rights and guarantees or when it’s legally absent. Therefore, since there is no absolute right, final judicial decisions ridden by vice of unconstitutionality may be challenged by autonomous lawsuit called querela nullitatis, derived from technique of balancing values. On the other hand, judicial decisions which do not admit further appeals, but have the vice of legal absence can be overcome by the filing of a new lawsuit with the same subject, eliminating the need for querela nulillitatis.
Keywords: Res Judicata. Atypical relativization. Unconstitutionality. Absence. Querela Nullitatis. New Lawsuit.
INTRODUÇÃO
O presente artigo propõe-se a estudar a fundo um dos dogmas mais relevantes do Direito Processual, a coisa julgada. Tal instituto é considerado tradicionalmente como um valor imutável, absoluto e inerente ao Estado Democrático de Direito, porquanto concede imutabilidade às decisões judiciais e, por conseguinte, a certeza e a segurança que se pretende alcançar na Atividade Jurisdicional do Estado.
Contudo, diante da evolução dos valores constitucionais, a coisa julgada deve se compatibilizar com os direitos e garantias fundamentais, enfrentando uma inevitável relativização. Isso porque não se admite mais direitos absolutos em nosso Ordenamento Jurídico.
Nesse sentido, surgiram vários instrumentos processuais aptos a relativizar a coisa julgada em nosso Ordenamento Jurídico, como a Ação Rescisória e os Embargos à execução, bem ainda a doutrina propõe novas formas de rever a coisa julgada, porém, sem previsão expressa na lei, como a querela nullitatis.
A doutrina denomina as formas de revisão da coisa julgada previstas expressamente em nosso Ordenamento Jurídico de relativização típica da coisa julgada, enquanto as formas de revisão da res judicata que não encontram previsão expressa na legislação, de relativização atípica da coisa julgada. A relativização atípica é o tema central desta pesquisa, que busca identificar a possibilidade de sua utilização no âmbito do Direito Processual Civil.
Com o fim de solucionar a problemática proposta, realizamos uma pesquisa do tipo jurídico-dogmática-instrumental, a qual se caracteriza pela circunstância de seu tema, problema e solução serem encontrados no Ordenamento Jurídico interno. Ademais, a presente pesquisa também pode ser considerada do tipo jurídico-epistemológica, que se caracteriza por ser aquela em que o tema, o problema e a solução são abordados no âmbito da Teoria Jurídica, bem como por se buscar os fundamentos jurídicos dos institutos pesquisados.
Seguindo esses parâmetros metodológicos, na primeira parte deste trabalho, nos propusemos a estudar os fundamentos epistemológicos da coisa julgada, abordando alguns conceitos que consideramos fundamentais ao entendimento do tema, como a legitimação da coisa julgada; as suas espécies; a sua posição dentro do Ordenamento Jurídico, bem como tecemos alguns comentários sobre a ponderação de bens e sobre o critério hierárquico de resolução de antinomias.
Firmados os conceitos fundamentais ao entendimento do tema, na parte seguinte do trabalho, nos propusemos a falar sobre a Teoria da Relativização da Coisa Julgada, destacando algumas teses doutrinárias favoráveis e contrárias à relativização, tudo com o objetivo de fornecer uma base segura para a tomada de conclusões sobre o tema. Após essa breve exposição doutrinária, esclarecemos o uso de algumas expressões técnicas utilizadas ao longo do trabalho, bem ainda expomos a nossa solução para o problema da relativização atípica da coisa julgada.
Na terceira e derradeira parte, trouxemos exemplos jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, nos quais se utilizou a relativização atípica como fundamentação para as decisões. Encerramos essa parte com uma breve análise sobre os instrumentos atípicos de revisão da res judicata, dentre os quais se destaca a querela nullitatis.
Ressalte-se, por fim, que a relativização da coisa julgada é uma temática própria à processualística. Precisamente, é um estudo referente à Teoria Geral do Processo, e, como tal, se aplica a todas as disciplinas processuais (Processo do Trabalho, Penal, Constitucional e Civil). Contudo, é no Processo Civil, por este ser a origem de todos os demais ramos do processo, que se encontra o maior número de pesquisas e trabalhos acerca do tema.
Essa parte inicial do trabalho destina-se a firmar os conceitos fundamentais e as noções necessárias ao entendimento do tema. Nesse sentido, tentaremos, com base em uma análise legal e doutrinária, tecer um conceito seguro do que consistiria a coisa julgada, bem ainda definir a sua posição dentro do ordenamento jurídico.
Inicialmente, convém esclarecer que o Processo Judicial consiste em um encadeamento de atos que se destinam a alcançar a prestação jurisdicional pleiteada pelas partes. Portanto, com o processo, busca-se uma solução para o conflito colocado perante o Estado Juiz, alcançando assim pacificação social.
Naturalmente, na busca dessa solução, devem ser oportunizado às partes o contraditório e a ampla defesa, com todos os meios de impugnação a ela inerentes. Ocorre que a impugnabilidade das decisões judiciais não pode se perpetuar indefinidamente, sob pena de se eternizar a incerteza sobre a relação jurídica deduzida no processo. Destarte, em um determinado momento, esgotados os recursos previstos em lei, encerra-se a discussão e o julgamento final torna-se imutável e indiscutível, surgindo, neste momento, a coisa julgada (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 477).
Contudo, nem sempre, ao final do processo, formar-se-á a coisa julgada. Em verdade, a res judicata trata-se de uma opção do legislador ordinário que, de acordo com critérios de conveniência que exigem estabilidade nas relações sociais, opta pela estabilidade muitas vezes em detrimento da certeza jurídica ou da verdade real (MARINONI; ARENHART, 2008, p. 645).
Assim, ao instituir a coisa julgada, o legislador não tem preocupação com o que é justo ou injusto, nem muito menos com o que é verdadeiro, apenas o faz, por exigência de ordem prática, que beira a banalidade, porém legitima, de não permitir que questões decididas pelo Poder Judiciário voltem a ser discutidas (THEODORO JÚNIOR, 2009, p. 529-530).
Rodolfo Camargo Mancuso (1996, p. 240-241) comunga do mesmo entendimento de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, afirmando que a coisa julgada é
[…] simples técnica de que se pode valer o legislador, quando entender oportuno – sob o ponto de vista da conveniência social e da estabilidade de certas relações jurídicas – que determinados tipos de julgados permaneçam imutáveis e projetem essa imutabilidade erga omines. Prova disso é que em muitos casos não se dá a formação da coisa julgada material: nos feitos de jurisdição voluntária (CPC, art. 1.111); mesmo nos de jurisdição contenciosa, se a sentença não apreciou o mérito (CPC, art. 267); nas sentenças que resolvem sobre relações jurídicas continuativas, sujeitas à cláusula rebus sic stantibus (ex.: ações de alimentos, Lei 5.478/68, art. 15); no campo penal, onde existe a possibilidade de revisão criminal a qualquer tempo (CPP, art. 622). Na verdade, como diz Álvaro Luís Valery Mirra, 'a existência do instituto da coisa julgada em um dado ordenamento jurídico é apenas uma questão de conveniência do legislador. Decorre de uma opção em face do eterno dilema, apontado por Celso Neves: de um lado existe a necessidade de segurança extrínseca das relações jurídicas (certeza), a exigir um limite no tempo para as controvérsias; de outro, o anseio de justiça, a permitir a indefinida impugnabilidade das decisões injustas.
Destarte, a partir do posicionamento dos autores supracitados, percebemos que a coisa julgada é uma resposta ao anseio da sociedade de buscar soluções definitivas para seus conflitos de interesses, entretanto, nem sempre tal solução será justa ou de acordo com a realidade. Isso nos leva a concluir que, em alguns casos, os valores da justiça (verdade) e da segurança jurídica podem se colocar de lados opostos.
1.2 Legitimação da coisa julgada
Expostas essas noções acerca do tema, buscaremos agora expor os fundamentos sociológicos e jurídicos que dão suporte ao instituto da coisa julgada, legitimando a sua existência.
1.2.1 Fundamentos sociológicos e políticos
No item anterior, vimos que as decisões judiciais acobertadas pelo manto da coisa julgada nem sempre são justas, porém, mesmo injustas, conforme a doutrina clássica, tais decisões, em regra, devem permanecer imutáveis, devido a fundamentos políticos, jurídicos e sociais que legitimam a res judicata.
Para Moacyr Amaral Santos (2008, p. 49), o fundamento de ordem política consistiria nos “motivos de ordem prática, de exigência social, a impor a partir de dado momento – que se verifica com a preclusão dos prazos para recursos – a sentença se torne imutável, adquirindo autoridade de coisa julgada”. Apesar de esse autor denominar tal fundamento apenas como político, percebe-se claramente que o fundamento defendido também é sociológico.
Quanto ao fundamento político da coisa julgada, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2008, p. 678) afirmam que
A coisa julgada material é atributo indispensável ao Estado Democrático de Direito e à efetividade do direito fundamental de acesso ao Poder Judiciário – obviamente quando se pensa no processo de conhecimento. Nesse exato sentido é a lição de Rosenberg, Schwab e Gottwald, quando defendem a idéia de que 'a coisa julgada material é uma conseqüência necessária do direito de proteção legal dos tribunais'. Sua ancoragem constitucional é encontrada no princípio do Estado de Direito.
Seguem o raciocínio de Marinoni e Arenhart, defendendo que a coisa julgada é inerente ao Estado Democrático de Direito, os autores Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina (2003, p. 22) para os quais
[...] é irrelevante a menção expressa da Constituição, acerca da coisa julgada – muito embora a Constituição Federal brasileira faça, no art. 5º, inc. XXXVI, no sentido de não se permitir à lei retroagir para atingir a coisa julgada – porquanto esta é umbilicalmente ligada ao Estado Democrático de Direito.
Portanto, o instituto da coisa julgada seria ínsito ao Estado Democrático de Direito, posto que essencial ao acesso à justiça, na medida em que todo jurisdicionado busca soluções definitivas para seus conflitos. Destarte, trata-se a coisa julgada de exigência sociológica e política do Estado de Direito.
O fundamento jurídico da coisa julgada trata-se de um tema bastante controvertido, existindo diversas teorias doutrinárias acerca do tema. A fim de subsidiar o presente trabalho, exporemos, brevemente, algumas das teorias citadas por Moacyr Amaral Santos (2008, p. 50-56) a respeito do tema.
1.2.2.1 Teoria da presunção da verdade
A Teoria da Presunção da Verdade, capitaneada por Ulpiano e Pothier e concebida no pensamento da escolástica, defendia que a sentença (decisão) era resultado de um silogismo, no qual a premissa menor seria a matéria fática e a premissa maior a matéria de direito. Contudo, as sentenças nem sempre apreciavam os fatos ou o direito de forma acertada, o que gerava sentenças injustas, as quais, mesmo assim, estariam acobertadas pela coisa julgada, porquanto se presumia que a decisão judicial sempre chegava à verdade dos fatos.
Adotada por Pothier, essa teoria passou para os tempos modernos, consagrando-se no Código Napoleônico e se espalhando para outros Códigos. Foi adotada pelo Reg. n. 737, de 1850, cujo artigo 185 asseverava que “São presunções legais absolutas os fatos ou atos que a lei expressamente estabelece como verdade ainda que haja prova em contrário, como a coisa julgada” (SANTOS, 2008, p. 50).
1.2.2.2 Teoria da ficção da verdade
Adotada por Savigny, a Teoria da Ficção da Verdade propugna que a sentença, ainda que injusta, faz coisa julgada, e aquilo que declara não pode mais ser considerado como inverdade. Nesse sentido, a sentença produziria uma verdade artificial ou uma ficção da verdade que deve ser respeitada não apenas pelas partes, como também por qualquer juiz, no mesmo ou em outro processo.
Essa teoria não pode ser aplicada no Ordenamento Jurídico Brasileiro diante da previsão dos meios típicos de revisão da coisa julgada, os quais demonstram que o decidido na sentença pode ser revisto. Ademais, os meios atípicos de revisão da coisa julgada, como será visto adiante, também se opõem a esta teoria.
1.2.2.3 Teoria da força legal, substancial, da sentença
A Teoria da Força Legal ou Substancial da Sentença defende que toda sentença, ainda que meramente declaratória, cria direito, é constitutiva de direito. A incontestabilidade, a indiscutibilidade, a imutabilidade da sentença, ou seja, o fundamento da coisa julgada teria origem nesse direito novo criado, por força de lei, pela sentença. Tal teoria foi idealizada por Pagenstecher.
1.2.2.4 Teoria da eficácia da declaração
A Teoria da Eficácia da Declaração é conhecida por essa denominação porque seus criadores (Hellwig, Binder e Stein) fundamentam a autoridade da coisa julgada na eficácia da declaração de certeza contida na sentença. Para essa teoria, a declaração produz um fenômeno processual de dois aspectos: de um lado atribui às partes o direito de exigir o seu cumprimento reciprocamente; de outro obriga todos os juízes a respeitar o que foi decidido (SANTOS, 2008).
1.2.2.5 Teoria da extinção da obrigação jurisdicional
Por essa teoria, ao direito de ação corresponde a obrigação jurisdicional do Estado, o qual se desincumbe com a sentença, ato culminante do processo, no qual se declara o direito aplicável à espécie. Satisfeita tal obrigação, ocorreria a extinção do direito de ação. Assim, extintos o direito de ação e a obrigação jurisdicional, não poderia a relação de direto material ser rediscutida; neste aspecto residindo o fundamento da coisa julgada.
1.2.2.6 Teoria da vontade do estado
A Teoria da Vontade do Estado, segundo Chiovenda (apud ZUQUETI, 2009, p. 1), um dos seus maiores defensores, considera que
[…] o raciocínio sobre os fatos é obra de inteligência do juiz, necessária como meio de preparar a formulação da vontade da lei. Por vezes, como verificamos (nas provas legais), o juiz não pode sequer raciocinar sobre os fatos. O juiz, porém, não é somente um lógico, é um magistrado. Atingindo o objetivo de dar formulação à vontade da lei, o elemento lógico perde, no processo, toda a importância. Os fatos permanecem como eram, nem pretende o ordenamento jurídico que sejam considerados como verdadeiros aqueles que o juiz considera como base de sua decisão; antes, nem se preocupa em saber como se passaram as coisas, e se desinteressa completamente dos possíveis erros lógicos do juiz; mas limita-se afirmar que a vontade da lei no caso concreto é aquilo que o juiz afirma ser a vontade da lei. O juiz, portanto, enquanto razoa, não representa o Estado; representa-o enquanto lhe afirma a vontade. A sentença é unicamente a afirmação ou negação de uma vontade do Estado que garanta a alguém um bem da vida no caso concreto; e só a isto se pode estender a autoridade do julgado; com a sentença só se consegue a certeza da existência de tal vontade e, pois, a incontestabilidade do bem reconhecido ou negado.
Assim, segundo esta corrente, o fundamento jurídico da res judicata está na vontade do Estado, a qual atribui à sentença a qualidade de ato estatal, irrevogável e de força obrigatória.
Carnelutti, assim como Chiovenda, entende que o fundamento jurídico da coisa julgada encontra-se no fato de esta provir do Estado. Contudo, a teoria de Carnelutti é diferente da Teoria da Vontade do Estado. Para Chiovenda, a sentença nada mais é do que o comando da lei especializado e concretizado, sendo a sentença norma jurídica paralela e independente da Lei, enquanto Carnelutti entende que a sentença, pressupondo a lei, caracteriza-se por ser uma norma suplementar a esta (SANTOS, 2008).
Por fim, Moacyr Amaral Santos expõe a teoria de Liebman, segundo a qual a autoridade da coisa julgada se fundaria na necessidade social, reconhecida pelo Estado, de evitar a perduração de litígios. Assim, a teoria de Liebman fundamenta a coisa julgada, juridicamente, pela vontade estatal, que, ao ceder aos anseios sociais, põe fim aos litígios de forma definitiva (SANTOS, 2008).
1.2.2.9 Teoria adotada no Brasil
Para Moacyr Amaral Santos (2008, p. 56), é “[...] a lei, como vontade do estado, que confere à sentença a autoridade de caso julgado, a partir de dado momento”. Pela leitura da presente passagem conclui-se que a coisa julgada, no Brasil, busca autoridade na própria lei, conforme percebemos da leitura do artigo 468 do Código de Processo Civil, verbis:
Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.
Portanto, podemos concluir que a teoria adotada no Brasil consiste numa variação da Teoria da Vontade do Estado, sendo que, especificamente, tal vontade é exteriorizada por meio de ato normativo, abstrato, geral e inovador no mundo jurídico, ou seja, por meio da Lei, no caso, o Código de Processo Civil.
A doutrina costuma dividir a coisa julgada em duas espécies distintas, coisa julgada formal (endoprocessual) e coisa julgada material (extraprocessual). (MARINONI; ARENHART, 2008, p. 642).
Igualmente, vale ressaltar que parcela da doutrina defende que não há propriamente duas espécies de coisa julgada. Seguindo este entendimento Marcos Vinícius Rios Gonçalves (2009, p. 23) aduz que
Não há propriamente duas espécies de coisa julgada, como preconizam alguns. Ela é fenômeno único ao qual correspondem dois aspectos, um de cunho meramente processual, que se opera no mesmo processo no qual a sentença é proferida [coisa julgada formal], e outro que se projeta para fora, tornando definitivos os efeitos da decisão [coisa julgada material].
Para o presente artigo, apenas a coisa julgada material possui importância, contudo discorreremos brevemente acerca da coisa julgada formal, para depois destrincharmos o conceito de coisa julgada material.
A coisa julgada formal consiste na imutabilidade da decisão judicial dentro do processo em foi proferida, em razão de não mais ser possível interpor recurso para combatê-la, ou seja, quando já houve o esgotamento das vias recursais ou decorreu o prazo para interposição do recurso cabível na espécie (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 479).
Na realidade, a coisa julgada formal seria uma espécie de preclusão, ou seja, a perda de uma faculdade processual pelo decurso de tempo, realização de ato ou tomada de uma posição em um determinado sentido. Assim, a res judicata formal constituiria a perda da possibilidade de atacar uma decisão judicial em razão de um determinado processo ter chegado ao fim.
Seguindo esse raciocínio Fredie Didier Júnior; Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira (2007, p. 479) defendem que o caso julgado seria a preclusão máxima dentro de um processo jurisdicional, a qual também é chamada de trânsito em julgado. Em sentido contrário, diferenciando coisa julgada e preclusão, Ada Pellegrini Grinover (apud DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 479), comentando e atualizando a obra de Liebman, defende que
[…] a coisa julgada formal e a preclusão são dois fenômenos diversos na perspectiva da decisão irrecorrível. A preclusão é, subjetivamente, a perda de uma faculdade processual e, objetivamente, um fato impeditivo; a coisa julgada formal é a qualidade da decisão, ou seja, sua imutabilidade, dentro do processo. Trata-se, assim, de institutos diversos, embora ligados entre si por uma relação lógica de antecedente-consequente.
Dizer que coisa julgada formal torna imutável a decisão dentro do processo, significa que fora do processo, ou seja, em outra relação jurídica processual, será possível rediscutir o seu objeto. Destarte, por meio de outra ação de igual conteúdo, por exemplo, e não por meio de recurso, será possível rever o que foi decidido. Clássico exemplo de coisa julgada formal são as sentenças constantes nos incisos IV e VI do rol do artigo 267 do Código de Processo Civil, in verbis:
Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito:
[...]
IV - quando se verificar a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo;
[...]
Vl - quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual;
Dessa forma, a coisa julgada formal apenas é capaz de pôr fim ao processo, impedindo que seja reaberta a discussão sobre o seu objeto no mesmo feito. Assim, a mera existência de res judicata formal não é capaz de impedir que tal discussão reapareça em outro processo (CÂMARA, 2006, p. 282).
1.3.2.1 Considerações iniciais
A coisa julgada material produz efeitos dentro e fora do processo e se trata do instituto jurídico que se pretende discutir no presente artigo científico. Seguindo esse raciocínio, para ser mais técnico, o título deste artigo deveria ser “Considerações acerca da relativização atípica da coisa julgada 'material' no âmbito cível”. Ressalte-se ainda que, quando utilizarmos a expressão coisa julgada, fazemos referência à coisa julgada material.
No mesmo sentido, defende Luiz Rodrigues Wambier (2008, p. 564), que
Quando se usa a expressão coisa julgada isoladamente, está-se significando coisa julgada material. Quando se pergunta se determinada decisão fez (ou produziu) coisa julgada, está-se querendo saber se houve coisa julgada material. Quando se quer, portanto, referir-se à coisa julgada formal, é necessário que se o diga expressamente.
Para a doutrina clássica, prefere-se o ponto final do processo do que a perpetuação da “Espada de Dâmocles”. Pergunta-se: quem foi Dâmocles, bem como o que tem sua espada de especial?
Conforme a lenda, narrada por Pedro Lenza, Dâmocles foi um cortesão bajulador do Rei de Siracusa, que, por um dia, ocupou a posição de Rei. Ocorre que, ao fim da refeição real, esse personagem olhou para cima e percebeu uma espada afiada suspensa sobre sua cabeça por um único fio de rabo de cavalo. A partir daí Dâmocles não quis mais ocupar a posição de Governante do Reino (PALESTRA, 2010).
Da leitura dessa história, inferimos que a expressão “Espada de Dâmocles” passa a ideia de insegurança decorrente da indefinição sobre determinada situação. Logo, para evitar essa eterna insegurança, a doutrina clássica defende o fim do processo e a imutabilidade da decisão, ainda que injusta ou absurda, ou seja, mesmo que afirme que o quadrado é redondo ou que o branco é preto.
Texto dos glosadores é bastante elucidativo da ideia clássica de coisa julgada. Os glosadores propalavam, com certa dose de exagero, o dístico de Scassia: "A coisa julgada faz do branco preto, origina e cria coisas; transforma o quadrado em redondo; altera os laços de sangue e transforma o falso em verdadeiro" (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 478). Expostas essas considerações iniciais sobre a coisa julgada material, passemos a discutir acerca do conceito processual e doutrinário do referido instituto.
Existem quatro entendimentos doutrinários que se destacam ao definir o conceito de coisa julgada material, quais sejam, o que considera a coisa julgada como um efeito da decisão; a coisa julgada como uma qualidade dos efeitos da decisão; a coisa julgada como qualidade do elemento declaratório da decisão e a coisa julgada como uma situação jurídica do conteúdo da decisão.
A primeira corrente, de forte influência alemã, perfilhada por Pontes de Miranda, Ovídio Baptista e Araken de Assis, sustenta ser a coisa julgada um efeito da decisão. Para esta corrente, a coisa julgada se restringiria ao elemento (efeito ou eficácia) declaratório da decisão. Assim, a res judicata tornaria imutável e indiscutível a declaração judicial, nada podendo apagar aquilo que o juiz declarou (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 482).
O atual Código de Processo Civil Brasileiro (Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973) seguindo a corrente alemã, em seu artigo 467, define a coisa julgada como um efeito da sentença:
Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.
O segundo entendimento doutrinário, seguido pela doutrina majoritária e capitaneado por Enrico Túlio Liebman, considera que a res judicata não é um efeito da sentença, mas uma qualidade especial do julgado, a qual reforça a imutabilidade e a indiscutibilidade do conteúdo da sentença (THEODORO JÚNIOR, 2009, p. 529).
Defende o referido processualista italiano que a coisa julgada não é um efeito da sentença, porquanto não tem existência própria, ou seja, a coisa julgada não produz alterações, por si só, no mundo jurídico ou fático. Na realidade, a coisa julgada é uma característica das sentenças definitivamente julgadas, dotando os efeitos de tais decisões de indiscutibilidade e imutabilidade.
Entretanto, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2008, p. 647-648) propõem uma releitura da teoria de Liebman, aperfeiçoando a definição da coisa julgada material. Para os referido autores, os quais capitaneiam o terceiro entendimento doutrinário supracitado, nem todos os efeitos da sentença se tornam imutáveis em razão da res judicata, mas somente o efeito declaratório é capaz, efetivamente, de se tornar imutável em razão da coisa julgada. De certa maneira, os referidos autores misturam as concepções da primeira corrente e da segunda corrente.
Para entender a explicação acima exposta, faz-se necessário conceituar o que sejam sentenças meramente declaratórias, constitutivas, condenatórias, mandamentais e executivas.
As sentenças meramente declaratórias são aquelas que apenas certificam a existência ou a inexistência de uma situação jurídica, sem intuito de efetivá-la, portanto, não se destinam a produzir efeitos no mundo dos fatos. As sentenças constitutivas alteram, criam e extinguem situações jurídicas ou se referem a um direito potestativo. Por sua vez, as sentenças condenatórias destinam-se a certificar o direito a uma prestação, isto é, uma conduta – de fazer, não fazer ou dar coisa, podendo ou não ser dinheiro (COSTA, 2009).
Contudo, essas três primeiras sentenças dependem de eventos externos para se efetivaram no mundo fático (efeito externo), aí se incluam, até mesmo, as sentenças meramente declaratórias, que também podem ser executadas, de acordo com o disposto no art. 475-N, I, do Código de Processo Civil, alterado pela Lei n.º 11.232/2005, verbis:
Art. 475-N. São títulos executivos judiciais:
I – a sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia;
Por fim, as sentenças mandamentais são aquelas que podem ser efetivadas no mesmo processo, por medida de coerção indireta, em que não se dispensa nem se substitui a conduta do devedor. Nesse tipo de decisão, o juiz “estimula” ou força o próprio executado a cumprir a prestação (exemplo: impõe-se multa, ameaça-se com prisão, oferece-se redução ou isenção de custas ou honorários). Enquanto as sentenças executivas são aquelas que podem ser efetivadas no mesmo processo, por medida de coerção direta ou sub-rogação – exemplo: faz-se o despejo; não é necessária a colaboração do executado, pois o juiz se sub-roga na posição do devedor, determinando as providências a serem adotadas (COSTA, 2009).
Cada um desses tipos de sentença é nomeada pelo efeito preponderante que nela existe. Seguindo este raciocínio, podemos falar em efeitos declaratórios; constitutivos; condenatórios; mandamentais e executivos. Em especial, deve-se alertar que todas as sentenças possuem, em sua essência, um efeito declaratório, porquanto na decisão judicial sempre se declara a existência da causa de pedir, a qual se trata do fundamento para o decisum.
Outrossim, ressalte-se que os efeitos condenatório, constitutivo e meramente declaratório se operam exclusivamente no plano jurídico (efeito interno), realizam-se independentemente de qualquer coisa, não necessitando de um agente externo para serem materializados. No entanto, os efeitos executivo e mandamental materializam-se somente com a adoção de providências externas às sentenças e, por isso, podem ou não operar concretamente (MARINONI; ARENHART, 2008, p. 647).
Destarte, pode acontecer que, após uma sentença condenatória, deixe de ser efetivado o efeito executivo porque a parte simplesmente desistiu de requerer a execução. Também pode acontecer que o efeito mandamental deixe de se operar materialmente, porque o mandado de reintegração de posse não foi cumprido. Pode ocorrer ainda, e. g., de o efeito executivo ser inibido pelo pagamento voluntário da parte condenada.
Assim, de acordo com Marinoni e Arenhart, podemos concluir que a coisa julgada acoberta, em realidade, o elemento declaratório das sentenças meramente declaratórias, condenatórias, constitutivas, mandamentais e executivas, projetando para fora da relação processual um efeito declaratório imutável, que pode ser analisado sob o seu aspecto positivo ou negativo.
No entanto, mais acertado é o quarto entendimento, o qual afirma que os efeitos da decisão não são imutáveis, mas disponíveis e modificáveis no mundo dos fatos. Trata-se de entendimento de doutrina autorizada, como Machado Guimarães e Barbosa Moreira. Para esses autores, a coisa julgada seria uma situação jurídica do conteúdo da decisão (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 485).
Dessarte, a coisa julgada consistiria na imutabilidade do conteúdo da decisão, do seu comando (dispositivo), que é composto pela norma jurídica concreta, ou seja, a norma que rege a relação jurídica discutida em juízo. Segundo este entendimento, até o efeito declaratório poderia não se realizar, porquanto as partes podem travar uma relação jurídica declarada inexistente em juízo, bem ainda podem pôr fim a uma relação jurídica reconhecida judicialmente.
Diante de todos os argumentos apresentados, nos arriscaremos a expor um conceito próprio de coisa julgada, logicamente, sem a pretensão de esgotar tal instituto de diversas implicações. De acordo com nosso entendimento, a coisa julgada se trata de instituto processual capaz de acobertar o conteúdo do dispositivo da decisão definitiva sobre o mérito da causa, impedindo que se volte a discutir a matéria ou que se decida de forma contrária em outro processo.
Do conceito apresentado, extraímos a noção dos efeitos positivo e negativo do caso julgado. Infere-se tal noção quando se afirma que a coisa julgada impede que se volte a discutir a matéria (efeito negativo) ou que se decida de forma contrária em outro processo (efeito positivo).
Seguindo esse raciocínio, a função positiva da res judicata corresponde à noção de imutabilidade da decisão transitada em julgado, ou seja, uma vez retornando a causa ao Poder Judiciário como questão incidental, não pode ser decidida de forma distinta. Por outro lado, o efeito negativo da coisa julgada “impede que a questão principal já definitivamente decidida seja novamente julgada como questão principal em outro processo (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 493).
Os limites subjetivos da coisa julgada indicam quem serão os beneficiados e os prejudicados pelas decisões judiciais. Em regra, o caso julgado alcança apenas quem foi parte no processo, isso nos termos do artigo 472 do Código de Processo Civil, in verbis:
Art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.
Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido regularmente citados todos os interessados, a res judicata também poderá alcançá-los. Perceba-se que os interessados não são terceiros, porque uma vez citados passam a ser também partes no processo, portanto, não constituem exceção à regra de que a sentença faz coisa julgada entre as partes às quais é dada (SIQUEIRA, 2006, p. 89).
Em contrapartida, os limites objetivos da coisa julgada indicam quais as partes da sentença ficarão acobertadas pela autoridade da coisa julgada. De acordo com o Código de Processo Civil, apenas o dispositivo, entendido como a parte da sentença ou acórdão que contém a norma concreta que soluciona a lide, é apto a se revestir da característica de coisa julgada material. Nesse sentido, excluem-se os motivos da decisão (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008, p. 331).
A doutrina diverge ao determinar a posição dentro do sistema normativo da coisa julgada. Conflitam dois entendimentos, para um, a coisa julgada possuiria índole constitucional, para o outro, possuiria o caso julgado natureza infraconstitucional.
A primeira corrente doutrinária, defendida por Cândido Rangel Dinamarco (2003, p. 36) e Fredie Didier Júnior; Paula Sarna Braga e Rafael Oliveira (2007, p. 478) afirma que a coisa julgada deriva do direito fundamental à segurança jurídica previsto no caput do artigo 5º da Carta Magna, bem ainda que encontra proteção expressa constitucional, no inciso XXXVI da Constituição Federal. Para esses autores, a Legislação Infraconstitucional apenas regulamentaria a res judicata.
Em sentido contrário, a segunda corrente doutrinária, capitaneada por Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria (2003, p. 140-141), os quais afirmam que:
A Constituição Federal de 1988, ao contrário da Portuguesa, não se preocupou em dispensar tratamento constitucional ao instituto da coisa julgada em si. Muito menos quanto aos aspectos envolvendo a sua inconstitucionalidade. Apenas alude à coisa julgada em seu art. 5º, XXXVI, quando elenca entre as garantias fundamentais a de que estaria ela imune aos efeitos da lei nova. Ou seja, ‘a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada’. (…)
Daí que a noção de intangibilidade da coisa julgada, no sistema jurídico brasileiro, não tem sede constitucional, mas resulta, antes, de norma contida no Código de Processo Civil (art. 457), pelo que de modo algum pode estar imune ao princípio da constitucionalidade, hierarquicamente superior.
Destarte, a Constituição Federal, ao prever que a lei não prejudicaria a coisa julgada, apenas estabeleceu uma limitação temporal ao legislativo, ou seja, o legislativo não poderia criar leis que modificassem as decisões já transitadas em julgado. Afirmam ainda os referidos autores que tal proteção não alçaria a coisa julgada ao status constitucional, tratando-se o referido instituto de criação legislativa, que não está imune ao princípio da constitucionalidade, hierarquicamente superior.
De acordo com esta segunda corrente, por ser a coisa julgada matéria estritamente de índole jurídico-processual, inserta no ordenamento infraconstitucional, sua intangibilidade e imutabilidade poderia ser contestada desde que ofensiva a algum dos dispositivos da Constituição Federal. Destarte, nesse caso, “estar-se-ia operando no campo da nulidade. Nula é a sentença desconforme com os cânones constitucionais, o que desmistifica a imutabilidade da coisa julgada [...]” (NASCIMENTO, 2003, p. 13).
Partindo de uma interpretação literal, notaremos que a nossa Carta Magna, em momento algum, faz referência à proteção da coisa julgada em relação ao Poder Judiciário. Mais ainda, perceberemos que a Constituição Federal até chega a dispor sobre a Ação Rescisória, admitindo, implicitamente, que o Poder Judiciário poderia rever seus julgados. Percebe-se, então, que o constituinte deixou bem claro que as decisões definitivamente julgadas poderiam ser revistas, de acordo com instrumentos processuais criados pelo legislador infraconstitucional.
Contudo, isso não permite afirmar que a res judicata não detém status constitucional. Em nosso entendimento, a coisa julgada é inerente ao Estado Democrático de Direito e se trata de decorrência lógica e necessária do Direito Fundamental à segurança jurídica. A outra conclusão não podemos chegar quando interpretamos de forma sistemática e teleológica a Carta Maior. Porém, como nenhum direito fundamental é absoluto, é perfeitamente possível que a coisa julgada entre em choque com outros direitos fundamentais. Neste ponto, a doutrina não chegou a um consenso, como se verá adiante.
A depender da posição hierárquica da coisa julgada dentro do nosso ordenamento jurídico, a doutrina propõe que o seu choque com valores constitucionais poderá ser solucionado pela ponderação de bens ou pelo controle de constitucionalidade. Nesse sentido, Pedro Eduardo Antunes de Siqueira (2006, p. 3-5) afirma que
Para os que entendem constitucionalizado o princípio da intangibilidade da coisa julgada, a solução do problema deve passar pelo princípio da unidade da Constituição […] Para os que se encontram nesta linha de pensamento, estuda-se o choque entre o princípio da intangibilidade da coisa julgada e alguma outra norma da própria Lei Maior. Equaciona-se tal situação com a aplicação da técnica da ponderação de valores. […]
Na leitura do texto constitucional brasileiro, entretanto, nem todos os intérpretes encontram a consagração da intangibilidade da coisa julgada. Para estes, tal princípio tem amparo infraconstitucional. O Raciocínio que utilizam para a correção das injustiças causadas pelas decisões que afrontam a Lei Fundamental parte de lição do mesmo Hans Kelsen: diante do escalonamento do ordenamento jurídico existente (que define a hierarquia entre suas normas), a Constituição ocupa a camada jurídica mais alta. […] De acordo com essa posição, aplica-se o critério hierárquico de solução de antinomias.
Teceremos, a partir de agora, breves comentários sobre a ponderação de bens e sobre o controle de constitucionalidade, com o objetivo de sedimentar esses conceitos que serão utilizados na próxima parte do trabalho.
1.5.1 Ponderação de bens (conflito de normas constitucionais)
Entendendo que a coisa julgada se trata de instituto de índole constitucional e derivado do direito fundamental à segurança jurídica, caso a res judicata contrarie outro direito fundamental constitucionalmente assegurado, ocorrerá uma colisão entre Direitos Fundamentais, a qual deve ser resolvida pela proporcionalidade.
Conforme preceitua Alexandre Reis (2007, p. 3) a colisão entre Direitos Fundamentais “[...] ocorre quando o exercício de um direito fundamental de um titular impede ou embaraça o exercício de outro direito fundamental de outro titular, sendo irrelevante, para tanto, a coincidência dos direitos envolvidos”. Essa modalidade de conflito de normas foi dividida por Alexy em duas espécies: as de direitos fundamentais em sentido estrito e as de direitos fundamentais em sentido amplo.
Em sentido estrito, a colisão entre direitos fundamentais sucede a partir do momento em que o exercício ou realização de um direito fundamental de um titular irradia efeitos negativos sobre direitos fundamentais de outros titulares de direitos fundamentais idênticos ou diversos. Por sua vez, a colisão de direitos fundamentais em sentido amplo “ocorre quando estão em conflito direitos fundamentais individuais e bens coletivos constitucionalmente protegidos” (FREIRE, 2007, p. 8).
A colisão da coisa julgada com outro direito ou garantia constitucional pode ser observada tanto em sentido estrito, como em sentido amplo. No primeiro aspecto, estaríamos diante, por exemplo, do conflito entre a pretensão de ver assegurado um direito constitucionalmente assegurado de um indivíduo, e a coisa julgada formada em favor de outro indivíduo. No segundo aspecto, estaríamos, por exemplo, diante da colisão de uma pretensão individual contra o direito à segurança jurídica e confiança de toda a sociedade.
Para solucionar possível conflito entre a coisa julgada e outros direitos fundamentais deve-se, primeiramente, delimitar o âmbito de proteção da garantia fundamental ou tatbestand, a partir do qual será possível eliminar eventual erro interpretativo que confunda um mero conflito aparente de normas com um conflito real (BESSA, 2006).
Após a constatação de que existe realmente um conflito autêntico de normas, o primeiro parâmetro proposto para a solução do problema da colisão de direitos fundamentais é a observância do princípio da unidade da constituição. Este determina que, quando houver colisão de direitos, deve o intérprete harmonizar sua decisão com o sistema constitucional, analisando de forma geral o conflito. Outrossim, na solução do conflito deve-se utilizar do princípio da concordância prática, corolário do princípio da unidade da constituição. Para Edilson Pereira de Farias (apud BESSA, 2006, p. 11),
[…] De acordo com o princípio da concordância prática, os direitos fundamentais e valores constitucionais deverão ser harmonizados […] por meio de juízo de ponderação que vise preservar e concretizar ao máximo os direitos e bens constitucionalmente protegidos.
Ressalte-se que essa preservação máxima deve ser entendida dentro do conceito de âmbito de proteção. Por fim, levando-se em consideração a dignidade da pessoa humana, deve-se aplicar a regra da proporcionalidade, sob os seus três aspectos – adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito – para solucionar o conflito entre o caso julgado e outro direito fundamental.
Portanto, a aplicação da ponderação de bens passa por três fases, como ensina Leandro Sousa Bessa (2006, p. 10),
Primeiramente, o aplicador identifica as normas veiculadoras de direitos fundamentais que estão em conflito. Depois, passa a examinar a situação fática e sua repercussão sobre as normas conflitantes. Na última fase, que é a da decisão, deve haver uma apreciação conjunta dos diferentes grupos de normas e repercussão dos fatos sobre eles, com o desiderato de atribuir “pesos” aos diferentes elementos em colisão, determinando quais devem prevalecer e em que intensidade. É o que se chama de sopesamento.
Ante o exposto, em existindo um conflito real entre direitos fundamentais deve-se, inicialmente, identificar o âmbito de proteção do direito. Posteriormente, obedecer aos princípios da unidade da constituição, da concordância prática e da dignidade da pessoa humana, na aplicação da regra da proporcionalidade, a fim de inferir qual direito deve prevalecer no caso concreto. Seguindo esses parâmetros, as decisões em casos concretos a respeito do conflito da coisa julgada com outros direitos e garantias fundamentais irão encontrar certa uniformidade, em benefício da unidade e da coerência do sistema jurídico.
1.5.2 Critério hierárquico (controle de constitucionalidade)
A Constituição da República Federativa Brasileira encontra-se no topo do nosso ordenamento jurídico e, a partir dela, todas as demais normas jurídicas encontram seu fundamento de validade. No Brasil, nenhuma norma infraconstitucional pode se opor aos mandamentos constitucionais, devendo-se aplicar o critério hierárquico ou, mais tecnicamente, o controle de constitucionalidade para manter a integridade de nossa Constituição.
Nesse sentido, o critério hierárquico pressupõe a existência de duas normas jurídicas de diferentes posições hierárquicas no sistema normativo. Tal critério, se considerado que a coisa julgada possui status infraconstitucional, é aplicável para solucionar o conflito existente entre a res judicata e uma norma de índole constitucional.
O Princípio da Supremacia Formal da Constituição, corolário da rigidez constitucional, é o principal fundamento do controle de constitucionalidade, o qual, por sua vez, é garantia de supremacia dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal (MORAES, 2005, p. 629).
Seguindo esse raciocínio, o sistema de controle de constitucionalidade foi idealizado com o objetivo de evitar violações à ordem constitucional e, consequentemente, aos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. O controle de constitucionalidade, conforme José Afonso da Silva (2007, p. 49), pode se realizar por
[…] dois critérios de controle da constitucionalidade: o controle difuso (ou jurisdição constitucional difusa) e o controle concentrado (ou jurisdição constitucional concentrada). Verifica-se o primeiro quando se reconhece o seu exercício a todos os componentes do Poder Judiciário, e o segundo, se só for deferido ao tribunal de cúpula do Poder Judiciário ou a uma corte especial.
Destarte, qualquer órgão jurisdicional (juízes ou tribunais) podem realizar o controle de constitucionalidade em sua modalidade difusa, na qual se analisa a inconstitucionalidade de forma incidental, como questão prejudicial ao direito que se pleiteia no Judiciário. Justamente, o controle difuso que desperta a atenção deste trabalho, porquanto, por meio dele, seria possível rever a coisa julgada quando esta contrariar algum fundamento constitucional.
2 TEORIA DA RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA
2.1 O problema da relativização da coisa julgada
A coisa julgada no âmbito civil, entendida como atributo de imutabilidade dos atos provenientes da atividade jurisdicional do Estado, para a maioria da doutrina, carrega a característica de ser absoluta, admitindo-se apenas, excepcionalmente, sob pena de prejuízo irreparável à segurança jurídica, a sua revisão por meio da ação rescisória ou de embargos à execução, este último, aliás, de constitucionalidade duvidosa para muitos. Contudo, a possibilidade da res judicata se chocar com direitos e garantias fundamentais, de índole constitucional, coloca em cheque a supremacia do caso julgado. Eventual decisão judicial que se contraponha à Constituição ameaça a unidade de todo o Sistema Normativo e deve ser analisada à luz de todas as fontes do direito, mesmo não havendo previsão legal expressa nesse sentido.
Seguindo esse raciocínio, diversas teorias se formaram tentando resolver esse conflito, propondo uma revisão do conceito da coisa julgada. Sobre a necessidade de se rever o conceito clássico de coisa julgada, convém transcrever o posicionamento de Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina (2003, p. 13):
Trata-se, isto sim, de uma certa desmistificação da coisa julgada. Ao que parece, o instituto da coisa julgada, tal qual vinha sendo concebido pela doutrina tradicional, já não corresponde mais às expectativas da sociedade, pois a segurança que, indubitavelmente, é o valor que está por detrás da construção do conceito da coisa julgada, já não mais se consubstancia em valor que deva ser preservado a todo custo, à luz da mentalidade que vem prevalecendo.
Feitas essas considerações, pergunta-se de que forma deve ser solucionado o conflito entre a coisa julgada e demais valores previstos na Constituição Federal? Será que a coisa julgada deve sempre prevalecer ou a prevalência deve ser analisada à luz de uma ponderação de valores?
2.2. Teses a respeito da relativização da coisa julgada
Nesta seção, abordaremos as diversas teses que falam a respeito da relativização da coisa julgada. Portanto, incluiremos a relativização típica neste ponto, porém, ressaltamos que o objetivo central deste trabalho é a relativização atípica da coisa julgada.
2.2.1 Teses favoráveis à relativização da coisa julgada
Paulo Manoel Cunha da Costa Otero, autor português, citado por Carlos Valder do Nascimento (2003, p. 16), distingue os casos de inexistência e inconstitucionalidade das decisões judiciais. Para ele, as decisões que não possuem um mínimo de juridicidade, ou seja, que apenas aparentam ser atos judiciais, não podem ser classificadas como inconstitucionais, porquanto são inexistentes juridicamente. Afirma Otero que “Apenas as decisões judiciais com o mínimo de identificabilidade são passíveis de um juízo de inconstitucionalidade”.
No entanto, a Constituição Portuguesa dá um tratamento constitucional à coisa julgada, alçando o princípio da intangibilidade das decisões judiciais ao ápice do sistema normativo. Dessa maneira, em Portugal, pela literalidade do texto de sua Carta Magna, a coisa julgada, mesmo que baseada em lei inconstitucional, estaria imune à rescindibilidade, exceto nos casos de lei penal lato sensu mais favorável ao réu (SIQUEIRA, 2006, p. 98).
A despeito do texto constitucional português, Paulo Otero (apud NASCIMENTO, 2003, p. 17) não descarta a possibilidade de rescisão da coisa julgada, aduzindo que:
A ideia da defesa da segurança e certeza da ordem jurídica constituem princípios fundamentadores de uma solução tendente a limitar ou mesmo excluir a relevância da inconstitucionalidade como factor autónomo de destruição do caso julgado. No entanto, se o princípio da constitucionalidade determina a insusceptibilidade de qualquer acto normativo inconstitucional se consolidar na ordem jurídica, tal facto poderá fundamentar a possibilidade, senão mesmo a exigência, de destruição do caso julgado conforme a Constituição.
Para Paulo Otero (apud SIQUEIRA, 2006, p. 98), existem três tipos de inconstitucionalidade: a) decisão que viola, pelo seu conteúdo, direta e imediatamente a norma constitucional; b) decisão judicial que aplica norma inconstitucional; e c) decisão judicial que não aplica determinada norma sob o pretexto de sua inconstitucionalidade, quando o vício inexiste. Ressalte-se que ele dá destaque ao primeiro tipo de inconstitucionalidade.
Em síntese, podemos dizer que a tese de Paulo Otero aponta para a possibilidade de rescindibilidade da coisa julgada como regra, contudo, sem abandonar a segurança e a certeza da ordem jurídica em um Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, para ele, seria possível rescindir o caso julgado por meio de uma ação autônoma de impugnação.
2.2.1.2 Tese de Paulo Roberto de Oliveira Lima
Seguindo a concepção de Paulo Otero, Paulo Roberto de Oliveira Lima (apud NASCIMENTO, 2003, p. 18) também sustenta que a coisa julgada não é absoluta como muitos imaginam. Para Paulo Roberto, o erro da sentença é a causa de sua revisão, aduzindo que
O princípio da legalidade não pode ser sacrificado em homenagem à coisa julgada, tampouco o princípio da isonomia. No choque entre uns e outros, a imutabilidade tem de ceder passagem àqueles princípios basilares do constitucionalismo nacional.
Conclui Paulo Roberto que os casos de relativização são infindáveis, devendo o sistema normativo instituir remédio jurídico próprio para rebater a coisa julgada ofensiva à Constituição Federal. Portanto, para o referido autor, deve ser criada uma solução de lege ferenda, para regulamentar e pôr em prática a relativização da coisa julgada.
2.2.1.3 Tese de Cândido Rangel Dinamarco
A ideia de relativização da coisa julgada de Cândido Rangel Dinamarco se apoia no equilíbrio que deve existir entre a segurança e certeza jurídicas versus a justiça e legitimidade da decisão, as quais, embora possam entrar em conflito, devem ser sopesadas, com o objetivo de se buscar um equilíbrio. Dessa maneira, Cândido Rangel Dinamarco (2003, p. 39) entende que
[…] o valor da segurança das relações jurídicas não é absoluto no sistema, nem o é portanto a garantia da coisa julgada, porque ambos devem conviver com outro valor de primeiríssima grandeza, que é o da justiça das decisões judiciárias, constitucionalmente prometido mediante a garantia ao acesso à justiça (Const., art. 5º, inc. XXXV)
Portanto, seguindo as premissas de Dinamarco, as decisões judiciais podem ser relativizadas quando em conflito com princípios constitucionais de igual importância à do caso julgado. Entretanto, Dinamarco ressalta que a relativização deve ficar restrita a casos excepcionais.
Ademais, quanto ao risco de disseminação de incerteza e insegurança jurídica, o autor afirma que a Ordem Jurídica dispõe de meios para corrigir eventuais desvios e exageros, como a técnica dos recursos, a ação rescisória e a reclamação aos tribunais superiores. Nesse sentido, como métodos aptos a relativizar a coisa julgada, Dinamarco propõe o uso do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade, a fim de sopesar a coisa julgada e outros princípios de natureza constitucional, quando postos em rota de colisão (DINAMARCO, 2003, p. 67- 68).
Por fim, em relação aos instrumentos processuais aptos a relativizar, tomando por base as lições de Pontes de Miranda, Dinamarco sugere, em primeiro lugar, a proposição de uma nova demanda igual à primeira, com a desconsideração da coisa julgada. Ainda, propõe a oposição de embargos à execução ou alegação incidental em outro processo, inclusive em peças defensivas como instrumentos capazes de sobrepujar a res judicata.
2.2.1.4 Tese de Carlos Valder do Nascimento
Assim como Dinamarco, Carlos Valder do Nascimento (2003, p. 3) aponta como fundamento para a relativização da coisa julgada o cotejo entre os valores da segurança e da justiça. Defende também que não há hierarquia entre os atos do Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como que todos os atos dos Poderes Públicos devem estar sujeitos ao controle de constitucionalidade; assim, leciona que:
O sistema jurídico positivo fornece os elementos essenciais à compreensão do exame do controle das atividades que envolvem o exercício das funções típicas do Estado: administrativa, legislativa e jurisdicional, cujos atos dele emanados devem guardar absoluta fidelidade ao Texto Magno, sob pena de invalidade. Essa submissão ao princípio da constitucionalidade é o traço revelador do Estado de Direito Democrático, que se assenta no Direito Constitucional.
Outrossim, afirma o referido autor que a segurança jurídica não pode ser invocada para fundamentar um suposto poder absoluto da coisa julgada. À luz desse ensinamento, propõe que a segurança jurídica [coisa julgada] submeta-se aos princípios da moralidade, justiça e equidade, porquanto defende a natureza infraconstitucional da res judicata.
Justifica, ainda, a relatividade da coisa julgada, afirmando que “[...] seu alcance já sofre limitações no seu aspecto subjetivo, com a possibilidade de manuseio da rescisória, para desconstituição do julgado. Segundo, porque presente, nesses casos, os pressupostos da relatividade inerentes a natureza das coisas”. Finalmente, propõe como instrumentos aptos a relativizar a res judicata, a querela nullitatis, como ação declaratória de nulidade da sentença e os embargos do devedor, dispostos no art. 741, parágrafo único, do Código de Processo Civil (NASCIMENTO, 2003, p. 12).
2.2.1.5 Tese de Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria
Ao defenderem a tese de relativização da coisa julgada Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria (2003, p. 148) pressupõem que essa não apresenta natureza constitucional. Para eles: “A intangibilidade da coisa julgada não possui, no Brasil, foro constitucional, resultando do sistema ordinário processual (especificamente, da regra contida no art. 475 do CPC).”.
Com isso, dispensam a aplicação do sopesamento entre princípios constitucionais como forma de resolução de eventual conflito entre a coisa julgada e outra norma constitucional. Dessa forma, a res judicata deveria sempre se curvar diante de normas constitucionais.
Igual a Carlos Valder do Nascimento, Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria (2003, p. 151) defendem que os atos jurisdicionais devem se sujeitar ao Controle de Constitucionalidade, bem ainda ressaltam que “até mesmo a coisa julgada que contém vício menor (ilegalidade) sujeita-se à impugnação através da ação rescisória contemplada nos arts. 485 e seguintes do Código de Processo Civil.”.
Humberto Theodoro e Juliana Cordeiro apontam como instrumentos aptos a impugnar a coisa julgada: a Ação Rescisória, com fulcro no art. 485, V, do CPC, a qual não estaria sujeita ao prazo decadencial de dois anos, desde que verse sobre violação à Constituição Federal, para não haver equiparação equivocada entre a inconstitucionalidade e a ilegalidade. Afirma ainda que seriam cabíveis os embargos à execução e a querela nullitatis como instrumentos de revisão da res judicata.
2.2.1.6 Tese de José Augusto Delgado
A moralidade encontra, na tese de José Augusto Delgado (2003, p. 80), posição central. Para o referido autor:
A moralidade está ínsita em cada regra posta na Constituição e em qualquer mensagem de cunho ordinário ou regulamentar. Ela é comando com força maior e de cunho imperativo, reinando de modo absoluto sobre qualquer outro princípio, até mesmo sobre o da coisa julgada. A moralidade é da essência do direito. A sua violação, quer pelo Estado, quer pelo cidadão, não gera qualquer tipo de direito. Este inexiste, por mais perfeito que se apresente no campo formal, se for expresso de modo contrário à moralidade.
À luz desses ensinamentos, o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça defende que o Poder Judiciário, como instituição efetivadora da função jurisdicional do Estado, deve se sujeitar mais à moralidade do que os demais poderes, por lhe caber defender o rigorismo ético nos padrões de sua própria conduta e dos seus jurisdicionados.
Ainda, para José Augusto Delgado (2003, p. 90), a proteção constitucional da coisa julgada é tímida, sendo perfeitamente compatível com a existência de restrições e de instrumentos de revisão e controle dos julgados. Nesse raciocínio, defende a relatividade do caso julgado, aduzindo que, se a amplitude da coisa julgada tivesse sido acolhida em nosso ordenamento constitucional, a ação rescisória e a revisão criminal seriam inconstitucionais, tendo em vista que as duas ações atacam a res judicata.
2.2.1.7 Tese de Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina
Para os referidos autores, não há ação, mas mero direito de petição, quando se prolata sentença de mérito com inobservância das condições da ação. Como consequência disso, a sentença prolatada em uma demanda que não preenche todos os requisitos da ação não transitaria em julgado, posto que inexistente. Nesta linha de pensamento, para eles, a coisa julgada que contrariasse a Constituição seria também inexistente, porquanto as sentenças que lhe deram ensejo são inconstitucionais, e, por conseguinte, acolhem pedidos inconstitucionais, como tais, impossíveis. Defendem seu posicionamento com essas palavras, verbis:
[...] as sentenças que acolhem pedidos inconstitucionais são sentenças (estas sim!) que não transitam em julgado, porque foram proferidas em processos instaurados por meio de mero exercício de direito de petição e não de direito de ação, já que não havia possibilidade jurídica do pedido. (WAMBIER; MEDINA, 2003, p. 39).
Portanto, sendo o pedido inconstitucional, correto seria reconhecer-se sua impossibilidade jurídica. Logo, o deferimento desse pedido acabaria resultando em uma sentença inexistente, haja vista que não estaria preenchida a possibilidade jurídica do pedido, condição da ação, nos termos do art. 267, VI, do Código de Processo Civil. Igualmente, por ser inexistente, toda sentença que contrariasse a Constituição nunca transitaria em julgado, dispensando a ação rescisória para ser rescindida.
Os referidos autores apontam como instrumentos hábeis para rever tais sentenças inconstitucionais a ação declaratória de inexistência e os embargos à execução, os quais declaram a inexistência, nada desconstituem (WAMBIER; MEDINA, 2003).
2.2.1.8 Tese de Alexandre Freitas Câmara
Para Alexandre Freitas Câmara (apud SIQUEIRA, 2006), a sentença mesmo quando eivada de vício de inconstitucionalidade, é acobertada pela coisa julgada. Afirma ainda que a relativização da coisa julgada é necessária, bem ainda que a res judicata se trata de uma garantia constitucional, a qual é consequência da segurança jurídica, disposta no art. 5º, caput e inciso XXXVI, da Constituição Federal.
Como considera a coisa julgada um instituto de natureza constitucional, Câmara (apud SIQUEIRA, 2006) propõe a técnica da ponderação de interesses para efetivar a relativização do caso julgado. Assim, ele retira do devido processo legal a possibilidade de rever a coisa julgada, bem como admite que a legislação infraconstitucional proponha critérios para ponderar os interesses, estabelecendo a maneira como a relativização deve se efetivar. Ressalta, no entanto, que não se deve admitir a relativização com base em mera alegação de injustiça ou erro da sentença, sob pena de se destruir o conceito de coisa julgada.
Aponta, como instrumentos aptos a relativizar: a ação rescisória, a qual deve respeitar o prazo decadencial de dois anos; os embargos a execução; a querela nullitatis, a qual se trataria de ação declaratória de ineficácia da sentença, tendo em vista que a coisa julgada sanaria todas as invalidades do processo, perdurando, no entanto, a ineficácia (CÂMARA apud SIQUEIRA, 2006).
Outrossim, propõe de lege ferenda, novo inciso para o art. 485 do Código de Processo Civil, o qual possuiria a seguinte redação:
[…] a sentença de mérito transitada em julgado que ofende a Constituição só deixa de produzir efeitos após rescindida na forma prevista neste Capítulo, permitida a concessão, pelo relator, de medida liminar que suspenda temporariamente seus efeitos se houver risco de que sua imediata eficácia gere dano grave, de difícil ou impossível reparação, sendo relevante a fundamentação da demanda rescisória.” (CÂMARA apud SIQUEIRA, 2006).
Assim, apoia o referido autor a regulamentação legal da desconstituição da sentença inconstitucional, a qual seria a única hipótese adequada para desconstituir a res judicata inconstitucional.
2.2 Teses Contrárias à Relativização da Coisa Julgada
2.2.2.1 Tese de Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira
Os supracitados autores afirmam que não é possível relativizar a coisa julgada com base na existência de grave injustiça ou na inconstitucionalidade da decisão. Para eles, relativizar a res judicata com base na justiça da decisão, significa franquear ao Poder Judiciário uma “cláusula geral de revisão da coisa julgada”, o que pode gerar interpretações diversas no âmbito dos tribunais, resultando, assim, em grave insegurança jurídica (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 506).
Igualmente, afirmam que a relativização com base na inconstitucionalidade é problemática, porquanto, a qualquer momento, a lei em que se fundou a decisão judicial poderia ser considerada inconstitucional, autorizando, por conseguinte, a desconstituição do que já fora decidido definitivamente. Novamente, malferir-se-ia a garantia da segurança jurídica (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 506).
Portanto, para os referidos autores, no âmbito civil, a segurança jurídica é mais importante que qualquer outra garantia constitucional. Desse modo, implicitamente, propõem uma hierarquia entre direitos constitucionais, ocupando a segurança jurídica posição privilegiada no Sistema Normativo.
Afirmam ainda que o problema da revisão da sentença inconstitucional foi resolvido pelo direito positivo brasileiro de duas maneiras:
a) com a possibilidade de ação rescisória da sentença, lastreada no inciso V do art. 485 do CPC, mitigando o rigor do n. 343 da súmula da jurisprudência do STF […]; b) a previsão do § 1º do art. 475-L e do par. ún. do art. 741 do CPC (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 506).
Com esses fundamentos, concluem que não há necessidade de revisão de sentença inconstitucional sob qualquer fundamento e por qualquer meio inominado ou atípico. Finalmente, expõem quatro raciocínios para demonstrar a impossibilidade de se relativizar a coisa julgada de maneira atípica.
Primeiramente, defendem que a decisão judicial se trata de norma jurídica nova e individualizada, a qual é construída pelo processo jurisdicional, no qual são observados o contraditório e a ampla defesa. Concluem, assim, que não há uma justiça anterior ao processo que fundamente a relativização, mas uma justiça criada dentro do devido processo legal, o qual é considerado o melhor método de construção de justiça criado pelo gênio humano (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 507).
Em segundo lugar, ponderam que a imutabilidade específica das decisões judiciais se justifica pelo fato de serem as últimas, devendo prescrever a solução normativa para o caso concreto, evitando-se a perpetuação da insegurança jurídica. Acrescentam também que a res judicata é um limite ao Poder Jurisdicional do Estado e, consequentemente, uma garantia do cidadão, a qual determina que deve haver um momento em que nem mesmo os órgãos jurisdicionais possam rever aquilo que foi decidido (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 508).
Em terceiro lugar, lecionam que o processo garante a certeza dos meios e a incerteza do resultado, concluindo que permitir a revisão da coisa julgada por meios atípicos é perigosíssimo, porque a parte vencida poderá alegar injustiça/desproporcionalidade/inconstitucionalidade, instaurando um novo processo de resultado incerto. Desse modo, nunca se chegaria a uma resolução dos conflitos (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 508).
Em quarto lugar, expõem que não se pode criar uma regra geral por indução, a partir de situações absurdas, haja vista que o movimento da relativização da coisa julgada surgiu como necessidade de revisão de algumas sentenças, as quais revelam situações específicas marcadas pela desproporcionalidade (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 509).
Vale destacar que os referidos autores, apesar de serem ferrenhos críticos da relativização atípica da coisa julgada, defendem a necessidade de se repensar o instituto, notadamente em razão das inovações científicas, como, e. g., o exame genético para identificação biológica.
2.2.2.2 Tese de Luiz Guilherme Marinoni
Luiz Guilherme Marinoni (2008) é um dos ferrenhos críticos da relativização atípica da coisa julgada. Para ele, a simples afirmação de que o Poder Judiciário não pode decidir contrariamente à justiça, à realidade e à lei, não é fundamento adequado para uma cláusula geral de revisão da coisa julgada. Afirma ainda que o próprio sistema já previu o conflito da coisa julgada com a justiça, a realidade e as leis, estabelecendo as hipóteses em que se admite a revisão da coisa julgada. Portanto, Marinoni defende que as hipóteses legais de revisão da res judicata são taxativas, não comportando novas hipóteses.
Marinoni (2008) ensina ainda que não é necessário utilizar a regra da proporcionalidade para relativizar a coisa julgada material. Isso porque tal regra só deve ser utilizada excepcionalmente, no caso de não haver outra maneira positivada para solucionar o problema, o que não é o caso da revisão da coisa julgada, a qual pode ocorrer através de ação rescisória. Nessa linha de raciocínio, propõe Marinoni uma hierarquia entre a coisa julgada e demais direitos constitucionais.
Conclui Luiz Guilherme Marinoni (2008) que a relativização da coisa julgada caminha na contramão da doutrina processualista contemporânea, a qual pugna pela celeridade processual. Por fim, aduz que a alegação de injustiça é imprecisa e não pode dar suporte a uma ponderação com a res judicata.
2.2.2.3 Tese de Leonardo Greco
Leonardo Greco (2005, p. 559-562) afirma que a doutrina da relativização da coisa julgada tem grande repercussão, no Brasil, por razões históricas e culturais que levam ao descrédito da força da decisão definitivamente julgada. Igualmente, entende que res judicata possui índole infraconstitucional.
Diante de ponderações sobre a função do controle de constitucionalidade no Brasil, conclui o referido processualista que as decisões em Controle Concentrado de Constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal não atingem coisas julgadas já formadas. Outrossim, critica até mesmo os meios de revisão típica da coisa julgada, os quais, para ele, “merecem severa análise à luz da segurança jurídica como direito fundamental e da coisa julgada como garantia desse direito” (GRECO, 2005, p. 576-577).
Conclui Leonardo Greco que a coisa julgada somente poderá ser rescindida, por ação própria, para assegurar a tutela de direito fundamental considerado em juízo de ponderação mais valioso do que a segurança jurídica. Porém, ressalta que a segurança jurídica, como direito fundamental, assegurada pela coisa julgada, não permite, como regra, a propositura de ação de revisão para desconstituí-la.
A tese da Relativização da Coisa julgada incorre em grave imprecisão terminológica, porquanto só se pode relativizar, no sentido próprio da palavra, aquilo que é absoluto. No entanto, a res judicata, em nosso Ordenamento Jurídico, a despeito do que já foi defendido pela doutrina clássica, não é dotada de caráter absoluto, o que é fácil de perceber, diante da existência da ação rescisória e da revisão criminal, por exemplo.
Assim, no sentido técnico, quando a doutrina propõe a relativização da coisa julgada, mais correto seria se falar em revisão da coisa julgada. Explicando melhor, não se pode falar em relativização, pois a coisa julgada sempre foi relativa na nossa atual ordem constitucional, mas em revisão da res judicata por meios atípicos. Logo, a melhor conceituação da teoria ora analisada seria “revisão atípica da coisa julgada”, tendo em vista que a revisão típica não é alvo deste trabalho.
Entretanto, a despeito da imprecisão terminológica, decidimos utilizar a denominação relativização da coisa julgada no presente trabalho, em razão do uso corrente da expressão, a qual já se difundiu de maneira a ser utilizada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal.
2.4 Relativização típica e atípica
O fenômeno da relativização da coisa julgada pode ocorrer através de meios típicos ou atípicos. Os meios típicos são os previstos expressamente no Ordenamento Jurídico, como a ação rescisória (art. 485 do CPC), os embargos à execução (art. 741 do CPC) e a impugnação ao cumprimento de sentença (art. 475-L do CPC). Por sua vez, os meios atípicos são aqueles não previstos na legislação, sendo assim, sua utilização tem origem através da interpretação proposta pela doutrina e jurisprudência.
Reforçando essa classificação, Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira (2007, p. 504) afirmam que
Há na doutrina, quem entenda que a decisão judicial não pode se cristalizar quando injusta ou inconstitucional. Nesses casos, não produziria coisa julgada material, podendo a decisão ser revista, revisada, a qualquer tempo, por critérios e meios atípicos. Trata-se de movimento recente que vem propondo a chamada relativização da coisa julgada atípica – já que há hipóteses de revisão da coisa julgada típicas que, dessa forma, já é relativa, como percebeu Barbosa Moreira.
Ressalte-se que os meios típicos, em geral, são aceitos pela doutrina. Assim, de acordo com a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, admite-se a utilização da ação rescisória lastreada em violação a literal disposição constitucional (RE 328812 AgR/AM). Exatamente por isso o presente trabalho se foca nos meios de revisão atípicos do caso julgado.
2.5 Coisa julgada inconstitucional x relativização da coisa julgada
A doutrina, quando aborda o fenômeno da revisão atípica da coisa julgada, costuma chamá-la de relativização da coisa julgada ou de coisa julgada inconstitucional. No entanto, pensamos que a primeira expressão se encaixa melhor para explicar o fenômeno, haja vista que as decisões judiciais das quais não caibam mais recursos, como veremos, podem ser revistas de maneira atípica não somente em razão de conflito com outro direito ou garantia constitucional, como também em razão de inexistência jurídica ou surgimento de novo meio de prova. Portanto, a expressão relativização da coisa julgada, em detrimento de sua imprecisão técnica, delimita de maneira satisfatória o fenômeno da revisão atípica da coisa julgada.
Como já foi adiantado na parte anterior do trabalho, entendemos que o instituto da coisa julgada possui natureza constitucional, diante de sua vital importância no Estado Democrático de Direito, sendo, inclusive, inerente a este. Ademais, a res judicata caracteriza-se por ser corolário da segurança jurídica, a qual é direito fundamental de primeira geração, assegurado expressamente no art. 5º, caput, da Constituição Federal.
Desse modo, como o instituto da imutabilidade das decisões judiciais possui índole constitucional e natureza jurídica de direito fundamental, deve coabitar com os demais direitos constitucionalizados de forma harmônica, haja vista que não existe direito absoluto em nosso sistema normativo. Outrossim, não pode o caso julgado sobressair-se em relação a todos os demais dispositivos constitucionais, quebrando a unidade do ordenamento jurídico.
A nossa carta magna não estabeleceu diferenciações entre normas constitucionais, bem ainda a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que não há hierarquia entre essas. Portanto, é incorreto defender que a coisa julgada deve prevalecer a todo custo, apesar de ser essencial ao Estado Democrático Constitucional de Direito.
Nesse sentido, o próprio ordenamento jurídico prevê a revisão criminal, a ação rescisória, os embargos a execução e a impugnação ao cumprimento de sentença como formas de revisão da coisa julgada que infringe a constituição ou as leis. Percebe-se, com isso, que a res judicata, a despeito de seu prestígio no Direito Brasileiro, pode sucumbir até mesmo diante de conflito com literal dispositivo de lei.
Portanto, o Sistema Normativo já estabelece hipóteses de revisão dos casos definitivamente julgados, o que denominamos de relativização típica. Isso ocorre porque os atos do Poder Judiciário não estão imunes aos mandamentos constitucionais. No entanto, o legislador infraconstitucional, ao regulamentar as hipóteses de revisão da coisa julgada, não tinha como prever todas as situações possíveis de confronto entre o instituto da imutabilidade das decisões judiciais e a Constituição Federal, bem ainda as demais situações onde a coisa julgada deve ceder espaço a uma inevitável revisão.
Assim, pensamos ser possível rever de forma atípica (não prevista expressamente) a res judicata, com o objetivo de harmonizar eventuais decisões conflitantes com a Constituição Federal. Para isso, propomos a utilização do método da ponderação de bens, a partir do qual seria possível determinar, no caso concreto, o que deve prevalecer: a coisa julgada ou outro direito constitucional. Com a finalidade de tornar possível a utilização deste método, seria o caso de propor ação autônoma de impugnação da decisão judicial, a qual poderia ser ajuizada a qualquer tempo, e será alvos de maiores explicações na parte seguinte do trabalho.
Quanto aos casos de inexistência jurídica da decisão judicial, o tratamento é distinto. Nesses casos, não ocorre formação da coisa julgada material, tendo em visto que a teratologia da decisão judicial sequer permite que o ato judicial possa existir no sistema normativo. Dessa forma, não seria necessário ajuizar uma ação autônoma para desconstituir o julgado, bastaria propor uma nova ação de igual teor, desconsiderando a decisão anterior. Todavia, deve-se ressaltar que é possível propor ação declaratória de inexistência jurídica, com o único objetivo de obter o reconhecimento judicial da inexistência da decisão teratológica.
Por fim, além da inconstitucionalidade e da inexistência jurídica, pensamos que também é possível rever de forma atípica a coisa julgada com base no surgimento de uma nova modalidade de prova, a qual não existia à época da decisão judicial ou a que a parte, justificadamente, não tinha acesso. Nessa situação, a coisa julgada não poderia se manter, caso contrário, a realidade se chocaria com o Direito, de tal forma, que este perderia sua legitimidade.
Entendemos que, neste último caso, só será possível a revisão da coisa julgada se a matéria de direito possuir índole constitucional, ou seja, seria o caso de aplicar a técnica da ponderação de bens e de utilizar a ação autônoma de impugnação da sentença, também denominada de Querela Nullitatis. Assim, estaríamos diante também de uma coisa julgada contrária à Magna Carta, suportando o mesmo tratamento da coisa julgada inconstitucional.
Ressalte-se, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal, no RE 363889/DF, que fez parte do Informativo 629, do ano de 2010, aceitou que, no caso de prova nova, seria possível a propositura de ação igual à primeira, com o objetivo de se conseguir a revisão da coisa julgada. Ora, temos que discordar do Supremo Tribunal Federal neste ponto, tendo em vista que, no caso, houve formação da coisa julgada, a qual não pode simplesmente ser desconsiderada por uma demanda idêntica. Teceremos maiores comentários sobre esse decisum na próxima seção.
Por fim, ressalte-se que, diante da importância da coisa julgada em nosso ordenamento jurídico, nem todo direito fundamental será capaz de se opor a ela. Reserva-se, assim, a relativização para casos extremos. Como alguns exemplos que autorizam a revisão da coisa julgada, podemos citar:
A) O surgimento de Exame de DNA, posterior a sentença negatória de paternidade, que confirme ser o réu do processo anterior pai;
B) A descoberta de fraude processual que prejudique a fruição de direitos fundamentais;
C) A ausência de citação no processo ou a nulidade desta, se o processo correu a revelia[1];
D) A posterior declaração de inconstitucionalidade de lei em que se baseou determinada sentença.
Pensamos que os críticos da teoria da relativização da coisa julgada estão errados ao afirmar que a teoria destruiria por completo a segurança jurídica nas relações sociais. Para nós, aquele que de fato é possuidor do direito não sofrerá assédio no resultado do processo original, tendo em vista que não se pode provar contra a realidade, salvo, por óbvio, nos casos de fraudes, as quais também são combatidas pela relativização.
Destarte, os ameaçados pela relativização da coisa julgada são aqueles que se enriquecem ilicitamente ou obtêm vantagens judiciais indevidas, utilizando-se de fraudes, influência do poder econômico e outras condutas eticamente condenáveis. Ademais, a jurisprudência indicará as possibilidades de aplicação da teoria, tendo em vista que não é possível propor um regramento fechado para sua utilização.
Nesta seção faremos breves comentários a alguns precedentes jurisprudenciais, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, os quais trataram da relativização atípica da coisa julgada no âmbito cível.
3.1.1 Superior Tribunal de Justiça
No Superior Tribunal de Justiça o tema não é novo, posto que já discutido no âmbito dessa Egrégia Corte desde a década de 90, quando se deparou com a temática do Exame de DNA contrário à coisa julgada.
Os membros desse Egrégio Tribunal ainda não harmonizaram o entendimento sobre a possibilidade ou impossibilidade da relativização da coisa julgada, existindo decisões a favor e contra.
Assim, comentaremos alguns precedentes do Superior Tribunal de Justiça, uns a favor e outros contra a relativização da res judicata.
O primeiro julgado do Superior Tribunal de Justiça que nos propomos a comentar trata a respeito da possibilidade de utilização de ação de impugnação autônoma, a qual, no caso, apresentou-se na forma de ação civil pública, quando a decisão judicial estiver impregnada por vício transrecisório, a exemplo da ausência de citação. O referido acórdão encontra-se assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL - VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC - INEXISTÊNCIA - SENTENÇA IMPREGNADA DE VÍCIO TRANSRESCISÓRIO - RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA - QUERELA NULLITATIS - ARTS. 475-L, I E 741, I, DO CPC - AÇÃO CIVIL PÚBLICA: ADEQUABILIDADE - DEFESA DO PATRIMÔNIO PÚBLICO - LEGITIMIDADE DO PARQUET.
1. Não ocorre ofensa ao art. 535 do CPC, se o Tribunal de origem, para resolver a lide, analisa suficientemente a questão por fundamentação que lhe parece adequada e refuta os argumentos contrários ao seu entendimento.
2. A sentença proferida em processo que tramitou sem a citação de litisconsorte passivo necessário está impregnada de vício insanável (transrescisório) que pode ser impugnado por meio de ação autônoma movida após o transcurso do prazo decadencial para ajuizamento da ação rescisória. Querela nullitatis que encontra previsão nos arts. 475-L, I e 741, I, do CPC.
3. Por ação autônoma de impugnação (querela nullitatis insanabilis) deve-se entender qualquer ação declaratória hábil a levar a Juízo a discussão em torno da validade da sentença.
4. O Ministério Público detém legitimidade para atuar na defesa do patrimônio público.
5. A ação civil pública constitui instrumento adequado a desconstituir sentença lesiva ao erário e que tenha sido proferida nos autos de processo que tramitou sem a citação do réu. Precedente.
6. Recurso especial provido.
(REsp 445664/AC, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/08/2010, DJe 03/09/2010) (grifo nosso).
Nesta decisão, a Segunda Turma do STJ, de forma unânime, entendeu por admitir a relativização da coisa julgada diante da ausência ou nulidade de citação, levando em consideração que tais matérias podem ser alegadas em embargos à execução e na impugnação ao cumprimento de sentença. Assim, não haveria motivo para restringir essas alegações em ações declaratórias autônomas de inexistência.
Outrossim, a mesma 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça acenou pela possibilidade de se propor ação autônoma de impugnação em caso de conluio entre as partes, como se verifica na ementa do Recurso Especial n.º 1187297/RJ:
PROCESSUAL CIVIL - ADMINISTRATIVO - RECURSO ESPECIAL AÇÃO CIVIL PÚBLICA - RESSARCIMENTO DE DANO AO ERÁRIO PÚBLICO - IMPRESCRITIBILIDADE - RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA - ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA - DEFESA DO PATRIMÔNIO PÚBLICO - LEGITIMIDADE DO PARQUET.
1. A ação de ressarcimento dos prejuízos causados ao erário é imprescritível (art. 37, § 5º, da CF).
2. A ação civil pública, como ação política e instrumento maior da cidadania, substitui com vantagem a ação de nulidade, podendo ser intentada pelo Ministério Público objetivando afastar os efeitos da coisa julgada.
3. Presença das condições da ação, considerando, em tese, a possibilidade jurídica da pretensão deduzida na inicial, a legitimidade do Ministério Público e a adequação da ação civil pública objetivando o ressarcimento ao erário.
4. Julgo prejudicada a MC 16.353/RJ por perda de objeto.
5. Recurso especial provido, para determinar o exame do mérito da demanda.
(REsp 1187297/RJ, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/09/2010, DJe 22/09/2010) (grifo nosso).
Por fim, em recentíssimo julgado, a Segunda Seção do STJ admitiu a viabilidade da aplicação da ponderação de bens, a fim de se relativizar a coisa julgada, vejamos:
PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. AGRAVO REGIMENTAL NA MEDIDA CAUTELAR. AÇÃO RESCISÓRIA. PRETENDIDA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DE DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO. ADMISSIBILIDADE SOMENTE EM SITUAÇÕES EXCEPCIONALÍSSIMAS, DE COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS.
INEXISTÊNCIA NA ESPÉCIE. CAUTELAR EXTINTA.
- Somente na hipótese de colisão entre direitos fundamentais é que se deve admitir, pelo menos em tese, a chamada "relativização da coisa julgada", fazendo-se uma ponderação dos bens envolvidos, com vistas a resolver o conflito e buscar a prevalência daquele direito que represente a proteção a um bem jurídico maior.
- Apenas nas situações de colisão entre direitos fundamentais é que é cabível suspender, via provimento cautelar, a execução da decisão rescindenda, a fim de que outro direito fundamental em jogo, que represente a proteção a um bem jurídico maior do que aquele da segurança jurídica decorrente da coisa julgada, prevaleça.
- Agravo não provido.
(AgRg na MC 12581/RN, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 08/06/2011, DJe 15/06/2011) (grifo nosso)
Assim, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, existem muitas vozes que defendem a viabilidade de se relativizar a coisa julgada por meio ou instrumento não previsto expressamente no Ordenamento Jurídico. Ressalte-se que há outros julgados que acenam de forma favorável à temática.
Como decisão contrária à relativização da coisa julgada, trazemos, primeiramente, julgado de 2008, no qual a Segunda Seção do STJ, pacificou o entendimento pela impossibilidade de se afastar a coisa julgada material mesmo diante da perspectiva de realização de exame de DNA, que encontra-se assim ementado:
PROCESSO CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. Coisa julgada decorrente de ação anterior, ajuizada mais de trinta anos antes da nova ação, esta reclamando a utilização de meios modernos de prova (exame de DNA) para apurar a paternidade alegada; preservação da coisa julgada. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 706987/SP, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, Rel. p/ Acórdão Ministro ARI PARGENDLER, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/05/2008, DJe 10/10/2008).
Assim, a partir deste precedente, o STJ passou a dar preferência à coisa julgada, quando em conflito com o direito à filiação. Porém, apesar desse revés para a teoria, o Supremo Tribunal Federal, como veremos a seguir, admitiu a relativização da coisa julgada no caso de superveniência de Exame de DNA, embora os ministros não o tenham afirmado de forma expressa, o que provavelmente fará com que o STJ reveja seu posicionamento.
3.1.2 Supremo Tribunal Federal
No Supremo Tribunal Federal não encontramos muitas decisões que falam sobre a relativização da coisa julgada. Contudo, no RE 363889/DF (ainda pendente de publicação), relatado pelo Ministro Dias Tofolli, a Excelsa Corte, apesar de restringir muito o âmbito de seu decisum, foi a favor da relativização atípica da coisa julgada em ação de investigação de paternidade.
Vejamos os trechos dos Informativos 621 e 629 do ano de 2011, que retratam o entendimento da Suprema Corte:
Ação de investigação de paternidade e coisa julgada - 1
O Plenário iniciou julgamento de recurso extraordinário em que se discute a possibilidade, ou não, de superação da coisa julgada em ação de investigação de paternidade cuja sentença tenha decretado a extinção do processo, sem julgamento do mérito, por insuficiência probatória. Na situação dos autos, a genitora do autor não possuía, à época, condições financeiras para custear exame de DNA. Reconheceu-se a repercussão geral da questão discutida, haja vista o conflito entre o princípio da segurança jurídica, consubstanciado na coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI), de um lado; e a dignidade humana, concretizada no direito à assistência jurídica gratuita (CF, art. 5º, LXXIV) e no dever de paternidade responsável (CF, art. 226, § 7º), de outro. O Min. Luiz Fux salientou o aspecto de carência material da parte — para produção da prova extraída a partir do exame de DNA — como intrínseco à repercussão geral da matéria, tendo em vista a possibilidade, em determinados casos, de o proponente optar por não satisfazer o ônus da prova, independentemente de sua condição sócio-econômica, considerado entendimento jurisprudencial no sentido de se presumir a paternidade do réu nas hipóteses de não realização da prova pericial.
Ação de investigação de paternidade e coisa julgada – 2
Em seguida, o Min. Dias Toffoli, relator, proveu o recurso para decretar a extinção do processo original sem julgamento do mérito e permitir o trâmite da atual ação de investigação de paternidade. Inicialmente, discorreu sobre o retrospecto histórico que culminara na norma contida no art. 226, § 7º, da CF (“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. ... § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.”), dispositivo que teria consagrado a igualdade entre as diversas categorias de filhos, outrora existentes, de modo a vedar qualquer designação discriminatória que fizesse menção à sua origem. A seguir, destacou a paternidade responsável como elemento a pautar a tomada de decisões em matérias envolvendo relações familiares. Nesse sentido, salientou o caráter personalíssimo, indisponível e imprescritível do reconhecimento do estado de filiação, considerada a preeminência do direito geral da personalidade. Aduziu existir um paralelo entre esse direito e o direito fundamental à informação genética, garantido por meio do exame de DNA. No ponto, asseverou haver precedentes da Corte no sentido de caber ao Estado providenciar aos necessitados acesso a esse meio de prova, em ações de investigação de paternidade. Reputou necessária a superação da coisa julgada em casos tais, cuja decisão terminativa se dera por insuficiência de provas. Entendeu que, a rigor, a demanda deveria ter sido extinta nos termos do art. 267, IV, do CPC (“Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito: ... IV - quando se verificar a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo;”), porque se teria mostrado impossível a formação de um juízo de certeza sobre o fato. Aduziu, assim, que se deveria possibilitar a repropositura da ação, de modo a concluir-se sobre a suposta relação de paternidade discutida. Afirmou que o princípio da segurança jurídica não seria, portanto, absoluto, e que não poderia prevalecer em detrimento da dignidade da pessoa humana, sob o prisma do acesso à informação genética e da personalidade do indivíduo. Assinalou não se poder mais tolerar a prevalência, em relações de vínculo paterno-filial, do fictício critério da verdade legal, calcado em presunção absoluta, tampouco a negativa de respostas acerca da origem biológica do ser humano, uma vez constatada a evolução nos meios de prova voltados para esse fim. Após, pediu vista dos autos o Min. Luiz Fux.
Ação de investigação de paternidade e coisa julgada - 3
Em conclusão, o Plenário, por maioria, proveu recurso extraordinário em que discutida a possibilidade, ou não, de superação da coisa julgada em ação de investigação de paternidade cuja sentença tenha decretado a extinção do processo, sem julgamento do mérito, por insuficiência probatória — v. Informativo 622. Decretou-se a extinção do processo original sem julgamento do mérito e permitiu-se o trâmite da atual ação de investigação de paternidade. Prevaleceu o voto proferido pelo Min. Dias Toffoli. Para ele, dever-se-ia ressaltar a evolução dos meios de prova para aferição da paternidade — culminada com o advento do exame de DNA — e a prevalência da busca da verdade real sobre a coisa julgada, visto estar em jogo o direito à personalidade. Ressaltou que este direito teria sido obstaculizado, no caso, pelo fato de o Estado haver faltado com seu dever de assistência jurídica, uma vez que não custeara o exame à época da ação anterior. Os demais Ministros que deram provimento ao recurso ressaltaram que a espécie envolveria o cotejo entre a coisa julgada e o princípio da dignidade da pessoa humana, consubstanciado no direito à informação genética. O Min. Luiz Fux destacou a existência de corrente doutrinária que flexibilizaria o prazo para ajuizamento de ação rescisória nas hipóteses de ação de investigação de paternidade julgada improcedente por ausência de provas, o que corroboraria a superação da coisa julgada. Vencidos os Ministros Marco Aurélio e Cezar Peluso, Presidente, que desproviam o recurso. O Min. Marco Aurélio apontou que o réu, na ação em comento, não poderia ser obrigado a fazer o exame de DNA. Isso, entretanto, não implicaria presunção absoluta de paternidade, mas apenas relativa, a ser confrontada com as provas trazidas ao processo. Asseverou que o ordenamento traria exceções à imutabilidade da coisa julgada, a exemplo da ação rescisória, limitada ao prazo de 2 anos após o trânsito em julgado da ação de origem. Como, na situação em tela, haveria lapso de mais de 10 anos, a aludida exceção não seria aplicável. Destacou, ainda, a probabilidade de o interesse do autor ser patrimonial, e não relativo à sua identidade genética. O Presidente, por sua vez, afirmou que o princípio da coisa julgada seria o postulado da certeza, a própria ética do direito. A respeito, assinalou que o direito não estaria na verdade, mas na segurança. Reputou que a relativização desse princípio em face da dignidade da pessoa humana poderia justificar, de igual modo, a prevalência do direito fundamental à liberdade, por exemplo, de maneira que nenhuma sentença penal condenatória seria definitiva. Salientou que, hoje em dia, o Estado seria obrigado a custear o exame de DNA do autor carente, de forma que a decisão da Corte teria pouca aplicabilidade prática. Por fim, frisou que a questão envolveria também a dignidade humana do réu, não apenas do autor, visto que uma nova ação de investigação de paternidade teria profunda repercussão na vida familiar daquele.
RE 363889/DF, rel. Min. Dias Toffoli, 2.6.2011. (RE-363889)
Neste leading case, o Supremo Tribunal Federal admitiu a relativização da coisa julgada e sinalizou, a despeito de ter restringido bastante a abrangência de sua decisão, pela possibilidade de a coisa julgada ser revista em situações excepcionais. Quanto à limitação da decisão, convém trazermos trecho do voto vista do Ministro Luiz Fux, in verbis:
Assim, e em suma, deve-se ter por válido, à luz da Constituição, o afastamento da coisa julgada material, formada sobre decisão de improcedência por falta de provas, em demandas que envolvam relação de filiação, quando for alegada a viabilidade de produção de prova técnica capaz de reverter a conclusão do julgamento anterior, cuja realização só tenha se mostrado possível, do ponto de vista prático, pelo avanço tecnológico superveniente, somado à inadequação do regime da assistência jurídica aos necessitados, respeitado, em qualquer caso, o prazo de dois anos para o ajuizamento de nova demanda, que flui, por presunção iuris tantum, a contar do trânsito em julgado da demanda anterior, salvo nas hipóteses excepcionais em que restar também excepcionalmente demonstrado que apenas posteriormente se tornou viável, do ponto de vista prático, o acesso ao exame de DNA, cabendo ao demandante o ônus do afastamento da referida presunção. (INFORMATIVO 631 STF)
Inferimos desta decisão que a coisa julgada, quando em confronto com outro dispositivo constitucional, pode ser desconsiderada, utilizando-se da técnica da ponderação de valores. Entretanto, como deixou claro em sua decisão, o Supremo Tribunal Federal ressalta que a relativização da coisa julgada deve ser utilizada em casos extremos.
A decisão do Supremo Tribunal Federal, no entanto, merece algumas considerações. Primeiramente, entendemos que incorreu em equívoco a Excelsa Corte ao entender que o primeiro processo, o qual foi extinto em razão de ausência de provas, apenas está assegurado por coisa julgada formal.
Ora, como bem ressaltou o Ministro Luiz Fux, em seu voto vista, a coisa julgada secundum eventum probationis apenas ocorre, excepcionalmente, nos casos em que há expressa previsão legal, a exemplo do que ocorre com a ação popular – Lei nº 4.717/65, art. 18 –, com a lei da ação civil pública – Lei nº 7.347/85, art. 16 – e, ainda, com as ações coletivas disciplinadas pelo Código de Defesa do Consumidor a respeito de direitos difusos e coletivos – CDC, art. 103, inc. I e II (INFORMATIVO 631 STF).
Ademais, não pode o juiz extinguir o processo sem resolução de mérito em razão da insuficiência de provas, tendo em vista que estaria incorrendo em non liquet, o que é vedado no direito brasileiro. Destarte, diante da proibição do non liquet e da excepcionalidade da coisa julgada secundum eventum probationis, concluímos que a primeira decisão judicial do caso em análise transitou em julgado, estando protegida pela coisa julgada material.
No entanto, o Supremo Tribunal Federal, com a intenção de rejeitar a teoria da relativização da coisa julgada nos moldes propostos pela doutrina, utilizou-se dessa estratégia de afirmar que a primeira demanda só estava acobertada pela coisa julgada formal, o que permitiria a sua revisão, para evitar uma grande repercussão de sua decisão.
Por fim, o outro ponto que merece observações nessa decisão do STF é a desconsideração da coisa julgada anterior sem a utilização de ação autônoma de impugnação. Aliás, esse erro tem origem no fato de a Corte considerar apenas a existência de coisa julgada formal em ações de investigação de paternidade julgadas improcedentes em virtude da ausência de provas da filiação.
Nos casos de relativização pelo surgimento de prova nova, indisponível à época da propositura da ação, faz-se necessário desconstituir a res judicata já formada, para, posteriormente, rediscutir a matéria de fundo. Sem a superação deste óbice, a nova demanda, em nosso entendimento, está fadada à extinção sem resolução de mérito.
Anteriormente, vimos que a Teoria da Relativização da Coisa Julgada é viável e já encontra adeptos nas maiores cortes de justiça do país. Dentre os precedentes que analisamos e as teses propostas pela doutrina especializada, a querela nullitatis é o principal instrumento de revisão da coisa julgada não expressamente previsto no Ordenamento Jurídico. Dedicaremos essa seção para falar a respeito desse instrumento.
A querela nullitatis é uma criação do direito medieval, o qual, diante da inexistência de um instrumento jurídico viável para impugnar errores in procedendo, acabou por criar as bases deste instrumento jurídico que ora se indica para impugnar a res judicata (WAMBIER; MEDINA, 2003, p. 211).
Portanto, ao contrário do que indica seu nome em latim, a querela nullitatis não é de origem romana. No Direito Romano, existia apenas a appellatio (protótipo dos recursos) e a restitutio in integrum, a qual era semelhante às modernas ações impugnativas (MOREIRA, 2001, apud SIQUEIRA, 2006, p. 200).
No Direito Medieval, o instituto da querela nullitatis se desdobrava em duas espécies: a querela nullitatis sanabilis (impugnava os errores in procedendo menos graves) e a querela nullitatis insanabilis (impugnava os errores in procedendo mais graves). Nos ordenamentos jurídicos modernos, a sanabilis transformou-se nos recursos de apelação, e a insanável, oponível mesmo após o trânsito em julgado, transformou-se em diversos remédios processuais.
Contudo, em alguns países, como na França e na Itália, os fundamentos para desconstituição da sentença passaram a ser alegáveis, unicamente, através dos recursos. Já em outros sistemas, como o luso-brasileiro, é possível perceber nos textos das Ordenações a possibilidade de se impugnar sentenças que contivessem vícios processuais graves. O remédio previsto para a impugnação era semelhante a atual ação rescisória (SIQUEIRA, 2006, p. 201-202).
3.2.2 Conceito e natureza jurídica
Atualmente, no Brasil, pode-se utilizar a querela nulitatis como forma de impugnar a coisa julgada impregnada de vícios insanáveis ou transrescisórios, a qual, nesses casos, assumiria feição de ação autônoma de invalidação da decisão judicial. Entretanto, de acordo com Fredie Didier Júnior e Leonardo José Carneiro da Cunha (2009, p. 453-454), outros autores como Eduardo Talamini e Tereza Arruda Alvim Wambier, entendem que a querela nullitatis se equipararia a uma ação declaratória de inexistência.
Adotamos um posicionamento misto, assim, para nós, a querela nulitatis poderá assumir tanto a feição de ação declaratória de inexistência jurídica (nas situações em que se pretende ser reconhecida a inexistência jurídica de determinada decisão judicial) como a de ação autônoma de invalidação (nas situações em que se pretende ser desconstituída a coisa julgada em face de inconstitucionalidade da decisão).
Portanto, a querela nullitatis poderá assumir a natureza jurídica de ação declaratória de inexistência ou de ação autônoma de invalidação, a depender da sua causa de pedir.
Desse modo, a possibilidade de ser utilizada nesses dois sentidos nos permite conceituar a querela nullitatis como o instrumento processual destinado a atacar as decisões judiciais das quais não caibam mais recursos, tanto com fundamento em vício de inconstitucionalidade (não se submete ao prazo decadencial de dois anos da ação rescisória), como na inexistência da decisão judicial, resultando na invalidação da coisa julgada formada ou na declaração de sua inexistência.
3.2.3 Competência para o processamento e julgamento
A doutrina que trata da matéria aponta o juízo de primeiro grau como competente, em regra, para apreciar a querela nullitatis, talvez influenciada pela competência legal e fechada dos tribunais, o que acaba, de certa maneira, a impossibilitar o ajuizamento de instrumento atípico no 2º grau de jurisdição.
Seguindo esse raciocínio, Pedro Eduardo Antunes de Siqueira (2006, p. 204) afirma que: “a doutrina, por sua vez, também entende subsistir, no Brasil, a querela nullitatis insanabilis na forma de ação declaratória de nulidade, a ser proposta no juízo de primeiro grau (salvo os casos de competência originária dos tribunais).”.
Fredie Didier Júnior e Leonardo José Carneiro da Cunha (2009, p. 457) explicam melhor a competência para ajuizamento da querela nullitatis, expondo que: “A competência para a querela nullitatis é do juízo que proferiu a decisão nula, seja o juízo monocrático, seja o tribunal, nos casos em que a decisão foi proferida em processo de sua competência originária”.
Portanto, a competência para julgar a querela é do órgão do judiciário que proferiu a decisão a ser impugnada, seja por vício de inconstitucionalidade ou de inexistência. Contudo, os dois últimos autores entendem que, mesmo em caso de competência derivada, é possível imaginar hipóteses em que o ajuizamento deve ocorrer diretamente no tribunal.
Seria o caso de uma apelação contra sentença que indefere a petição inicial. Se o Tribunal der provimento a essa apelação, reformando a sentença e, mesmo não citado o réu, julga procedente o pedido do autor, a querela deverá ser proposta no tribunal, porque é dele a decisão que se pretende desconstituir, bem ainda assim deve ser por respeito à organização hierarquizada da função jurisdicional.
A querela nullitatis, de acordo com nossa proposta, pode ser utilizada nos casos de conflito da res judicata com outros direitos e garantias fundamentais. Dessa forma, o principal fundamento para a propositura desta ação autônoma é a técnica da ponderação de valores, sendo possível propor a querela, para atacar as sentenças transitadas em julgado inconstitucionais, desde que por fundamento não apresentado na demanda original. Ressalte-se que a querela nullitatis também poderá ser utilizada em casos de inexistência jurídica da decisão, quando tomará feição de ação declaratória de inexistência jurídica.
Note-se que os embargos à execução (art. 741, I, do CPC) e a impugnação ao cumprimento de sentença (art. 475-L, I, do CPC), remédios processuais voltados à defesa do executado, permitem a impugnação de sentenças que se baseiam em lei ou atos normativos declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, bem como em casos em que a sentença é considerada inexistente (ausência de citação, e. g.).
Sendo assim, já que é possível a defesa do executado com base em inconstitucionalidade e inexistência da sentença, dentro do processo execução ou na fase de cumprimento de sentença, nada impede a sua utilização fora do processo de execução, notadamente, se estivermos diante de lesões a direitos e garantias fundamentais.
A querela nullitatis, no Direito Brasileiro, pode assumir diversos formatos. Pode a querela tomar a forma de impugnação ao cumprimento de sentença ou de embargos a execução, sendo, nesses casos, instrumento típico de relativização da coisa julgada.
Outrossim, o direito potestativo de impugnar a decisão judicial, em casos de inconstitucionalidade ou inexistência da decisão, pode ser exercido por outros meios, bem ainda a querela pode assumir a feição de outro procedimento (DIDIER JÚNIOR, CUNHA, 2009, p. 455).
Por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça (Resp 445.664/AC) já admitiu a utilização de Ação Civil Pública para atacar decisão judicial proferida sem a citação de um Estado-membro, o qual era litisconsorte necessário-unitário. O referido acórdão foi assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL - VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC - INEXISTÊNCIA - SENTENÇA IMPREGNADA DE VÍCIO TRANSRESCISÓRIO - RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA - QUERELA NULLITATIS - ARTS. 475-L, I E 741, I, DO CPC - AÇÃO CIVIL PÚBLICA: ADEQUABILIDADE - DEFESA DO PATRIMÔNIO PÚBLICO - LEGITIMIDADE DO PARQUET.
1. Não ocorre ofensa ao art. 535 do CPC, se o Tribunal de origem, para resolver a lide, analisa suficientemente a questão por fundamentação que lhe parece adequada e refuta os argumentos contrários ao seu entendimento.
2. A sentença proferida em processo que tramitou sem a citação de litisconsorte passivo necessário está impregnada de vício insanável (transrescisório) que pode ser impugnado por meio de ação autônoma movida após o transcurso do prazo decadencial para ajuizamento da ação rescisória. Querela nullitatis que encontra previsão nos arts. 475-L, I e 741, I, do CPC.
3. Por ação autônoma de impugnação (querela nullitatis insanabilis) deve-se entender qualquer ação declaratória hábil a levar a Juízo a discussão em torno da validade da sentença.
4. O Ministério Público detém legitimidade para atuar na defesa do patrimônio público.
5. A ação civil pública constitui instrumento adequado a desconstituir sentença lesiva ao erário e que tenha sido proferida nos autos de processo que tramitou sem a citação do réu. Precedente.
6. Recurso especial provido.
(REsp 445664/AC, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/08/2010, DJe 03/09/2010)
Igualmente, pensamos ser possível a querela nullitatis assumir a feição de ação popular ou de ação anulatória autônoma a ser proposta no primeiro ou no segundo grau de jurisdição (competência originária de tribunais), a depender do caso.
De acordo com o entendimento exposto no capitulo anterior, nos casos em que a sentença estiver eivada por vício de inexistência, não ocorre formação da coisa julgada material, tendo em visto que a teratologia da decisão judicial sequer permite que o ato judicial possa existir no sistema normativo.
Dessa forma, não seria necessário ajuizar uma ação autônoma para desconstituir o julgado, bastaria propor uma nova ação de igual teor, desconsiderando a decisão anterior. Todavia, deve-se ressaltar que é possível propor ação declaratória de inexistência jurídica, com o único objetivo de obter o reconhecimento judicial da inexistência da decisão teratológica.
3.4 Proposta legislativa (de lege ferenda)
Feitas essas considerações sobre a querela nullitatis e sobre uma nova demanda, achamos interessante propor uma normatização para sistematizar a revisão da coisa julgada nessas hipóteses. Para nós, deve surgir uma sequência de artigos no Código de Processo Civil com a seguinte redação:
Art. º. Quando a decisão judicial transitada em julgado de forma material estiver eivada por vício de inconstitucionalidade ou de inexistência será possível impugná-la, mesmo esgotado o processo ou a fase executiva, desde que tal vício não tenha sido alegado e apreciado anteriormente.
Art º. A impugnação de sentença transitada em julgado eivada com vício de inconstitucionalidade realizar-se-á por ação de impugnação autônoma, a qual deverá demonstrar, por meio da técnica da ponderação de valores, a necessidade de se rever a coisa julgada, a partir da existência de violação a outro valor constitucional de igual ou maior importância no caso concreto.
Parágrafo único. A ação de impugnação autônoma proposta neste artigo não se submete ao prazo decadencial da rescisória.
Art. º. A decisão judicial transitada em julgado eivada com vício de inexistência poderá ser declarada inexistente por meio de ação declaratória própria, a qual poderá ser proposta a qualquer tempo.
Parágrafo único. A ação declaratória não será necessária para rever o que fora decidido anteriormente pela sentença inexistente, bastando o ajuizamento de nova demanda para tentar alcançar a pretensão antes impossibilitada, desde que não esteja esta obstada por prescrição ou decadência.
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Entendemos que o instituto da coisa julgada possui natureza constitucional, diante de sua vital importância no Estado Democrático de Direito, sendo, inclusive, inerente a este. Além disso, a res judicata caracteriza-se por ser corolário da segurança jurídica, a qual é direito fundamental de primeira geração, assegurado expressamente no art. 5º, caput, da Constituição Federal.
Desse modo, como o instituto da imutabilidade das decisões judiciais possui índole constitucional e natureza jurídica de direito fundamental, deve coabitar com os demais direitos constitucionalizados de forma harmônica, haja vista que não existe direito absoluto em nosso sistema normativo. Outrossim, não pode o caso julgado sobressair-se em relação a todos os demais dispositivos constitucionais, quebrando a unidade do ordenamento jurídico.
A nossa carta magna não estabeleceu diferenciações entre normas constitucionais, bem ainda a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que não há hierarquia entre essas, portanto, é incorreto defender que a coisa julgada deve prevalecer a todo custo, apesar de ser essencial ao Estado Democrático Constitucional de Direito.
Nesse sentido, o próprio ordenamento jurídico prevê a revisão criminal, a ação rescisória, os embargos a execução e a impugnação ao cumprimento de sentença como formas de revisão da coisa julgada que infringe a constituição ou as leis. Percebe-se, com isso, que a res judicata, a despeito de seu prestígio no Direito Brasileiro, pode sucumbir até mesmo diante de conflito com literal dispositivo de lei.
Portanto, o Sistema Normativo já estabelece hipóteses de revisão dos casos definitivamente julgados, o que denominamos de relativização típica. Isso ocorre porque os atos do Poder Judiciário não estão imunes aos mandamentos constitucionais. No entanto, o legislador infraconstitucional, ao regulamentar as hipóteses de revisão da coisa julgada, não tinha como prever todas as situações possíveis de confronto entre o instituto da imutabilidade das decisões judiciais e a Constituição Federal, bem ainda as demais situações onde a coisa julgada deve ceder espaço a uma inevitável revisão.
Assim, pensamos ser possível rever de forma atípica (não prevista expressamente) a res judicata, com o objetivo de harmonizar eventuais decisões conflitantes com a Constituição Federal. Para isso, propomos a utilização do método da ponderação de bens, a partir do qual seria possível determinar, no caso concreto, o que deve prevalecer: a coisa julgada ou outro direito constitucional. Com a finalidade de tornar possível a utilização deste método, seria o caso de propor ação autônoma de impugnação da decisão judicial, a qual poderia ser ajuizada a qualquer tempo, e será alvo de maiores explicações na parte seguinte deste artigo.
Quanto aos casos de inexistência jurídica da decisão judicial, o tratamento é distinto. Nesses casos, não ocorre formação da coisa julgada material, tendo em visto que a teratologia da decisão judicial sequer permite que o ato judicial possa existir no sistema normativo. Logo, não seria necessário ajuizar uma ação autônoma para desconstituir o julgado, bastaria propor uma nova ação de igual teor, desconsiderando a decisão anterior. Todavia, deve-se ressaltar que é possível propor ação declaratória de inexistência jurídica, com o único objetivo de obter o reconhecimento judicial da inexistência da decisão teratológica.
Além da inconstitucionalidade e da inexistência jurídica, pensamos que também é possível rever de forma atípica a coisa julgada com base no surgimento de uma nova modalidade de prova, a qual não existia à época da decisão judicial ou a que a parte, justificadamente, não tinha acesso. Nessa situação, a coisa julgada não poderia se manter, caso contrário, a realidade se chocaria com o Direito, de tal forma, que este perderia sua legitimidade.
Para ser mais preciso, entendemos que, neste último caso, só será possível a revisão da coisa julgada se a matéria de direito possuir índole constitucional, ou seja, seria o caso de aplicar a técnica da ponderação de bens e de utilizar a ação autônoma de impugnação da sentença, também denominada de Querela Nullitatis. À luz dessas considerações, tal hipótese possui o mesmo tratamento da coisa julgada contrária à Constituição Federal.
Ressalte-se que, diante da importância da coisa julgada em nosso ordenamento jurídico, nem todo direito fundamental será capaz de se opor a ela. Reserva-se, assim, a relativização para casos extremos.
Por fim, pensamos que os críticos da teoria da relativização da coisa julgada estão errados ao afirmar que a teoria destruiria por completo a segurança jurídica nas relações sociais. Para nós, aquele que de fato é possuidor do direito não sofrerá assédio no resultado do processo original, tendo em vista que não se pode provar contra a realidade, salvo, por óbvio, nos casos de fraudes, as quais também são combatidas pela relativização.
Destarte, os ameaçados pela relativização da coisa julgada são aqueles que se enriquecem ilicitamente ou obtêm vantagens judiciais indevidas, utilizando-se de fraudes, influência do poder econômico e outras condutas eticamente condenáveis. De toda forma, a jurisprudência indicará as possibilidades de aplicação da teoria, tendo em vista que não é possível propor um regramento fechado para sua utilização.
Ademais, diante da possibilidade de levantar a relativização como meio de defesa contra execuções patrimoniais, não há como impossibilitar a relativização, mesmo que por meios atípicos, quando se trata de situações mais graves, como o estado de pessoas e declarações referentes a direitos da personalidade.
O direito serve à justiça. O judiciário, sob o pretexto de enxugar o número de processos, não pode negar a prestação jurisdicional e rasgar a Constituição Federal.
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Nota:
[1] Quando falamos das hipóteses de inexistência jurídica da decisão afirmamos que, nesses casos, não há formação de coisa julgada, no entanto, utilizaremos o termo revisão ou relativização da coisa julgada, na ausência de outro que indique melhor a situação, mesmo cientes de sua inadequação técnica.
Procurador da República.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VASCONCELOS, Felipe Torres. Considerações acerca da relativização atípica da coisa julgada no âmbito cível Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jan 2013, 07:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33715/consideracoes-acerca-da-relativizacao-atipica-da-coisa-julgada-no-ambito-civel. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
Por: PRISCILA GOULART GARRASTAZU XAVIER
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