Inicialmente, deve-se considerar que a revelia é um fenômeno processual que se verifica quando o réu, a despeito de ter sido regularmente citado, deixa de apresentar a contestação no prazo legal.
Em verdade, conquanto na atualidade o conceito do que seja a revelia esteja intimamente relacionado com a noção de inação, Ovídio Baptista assevera que, na origem, o instituto tinha relação com “a estrutura primitiva e rudimentar do processo civil, conhecido como uma relação contratual sui generis, a que deveria aderir o demandado. Em Roma, como se sabe, a relação processual só tornava viável se a ela aderisse espontaneamente o réu, através da solenidade conhecida como ‘litis contestatio’, de tal modo que o direito romano não conheceu o processo contumacial. Somente no direito medieval passou-se a conceber a formação regular da relação processual ainda que o demandado não comparecesse para defender-se” (Silva, Ovídio A. Baptista da.Curso de processo civil, vol. I: Processo de Conhecimento. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pág. 314).
De efeito, a revelia, na atual quadra, é um ato processual reconhecido pelo sistema jurídico como um fato, sendo, pois, absolutamente irrelevante a análise de qualquer elemento volitivo para que dela decorram seus naturais efeitos (Didier Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, vol. I: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. 12ª Ed. Salvador: Editora JusPODIVM, 2010, págs. 261 e 521).
Em verdade, é certo que o processo existe não apenas como instrumento tendente a solucionar os interesses das partes, senão também como ferramenta de que se vale o próprio Estado para restabelecer a paz social. Outra, aliás, não é lição de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, para os quais:
“Efetivamente, é cediço que o processo se estabelece não apenas no interesse das partes, mas primordialmente em benefício do próprio Estado, que assumiu o monopólio da jurisdição e, portanto, deve velar para solução dos conflitos surgidos no seio social, para o fim de atingir a seus próprios escopos, enquanto núcleo em torno do qual gravita a sociedade” (Marinoni, Luiz Guilherme; Arenhart, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 5ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, págs. 131/132).
Eis, portanto, a razão de a legislação prever consequências para o réu que deixa transcorrer o prazo de defesa sem apresentar a sua contestação.
Tais as considerações, ressalte-se que não se pode confundir o fenômeno da revelia, ato-fato processual, com os efeitos que dela decorrem (ou ao menos podem decorrer). Sobreleva anotar, prima facie, que da revelia emergem efeitos materiais e processuais. De fato, quanto ao viés processual, o artigo 322 do CPC prevê o seguinte: “Contra o revel que não tenha patrono nos autos, correrão todos os prazos, independente de intimação, a partir da publicação de cada ato decisório”.
Nada obsta, todavia, que o réu revel intervenha posteriormente nos autos do processo, momento a partir do qual, se devidamente representado por procurador, deve a ser intimado dos atos subsequentes. Nesse sentido, confira-se o seguinte precedente:
RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. RÉU REVEL COM PROCURADOR CONSTITUÍDO NOS AUTOS. INEXISTÊNCIA DE DEFESA. PRAZOS SUBSEQUENTES. NECESSIDADE DE INTIMAÇÃO. APLICAÇÃO DO DISPOSTO NO ART. 322 DO CPC. PRECEDENTES. 1. O comparecimento do revel no processo, quando devidamente representado por advogado regularmente constituído, assegura o direito à intimação de todos os atos judiciais subsequentes à sua intervenção no feito, inclusive da sentença. 2. Recurso especial provido (REsp 726396/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas BôasCueva, DJe 29/06/2012).
O referido efeito é, de fato, aplicável à Fazenda Pública.
A questão que deve ser analisada com mais vagar refere-se à aplicabilidade ou não do efeito material da revelia quando a Fazenda resta revel. De plano, a conclusão a que se chega é no sentido de que, no ponto, em regra, não se aplica a presunção que emerge do artigo 319 do CPC (“Se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor”).
Tal constatação decorre do fato de que o efeito material da revelia, qual seja, a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor, deve ser afastada quando o litígio versar sobre interesses indisponíveis, tais quais aqueles usualmente titularizados pelo Estado.
Realmente, os atos administrativos, a par de revelarem nítido viés de indisponibilidade, gozam, como regra, da presunção de legalidade e legitimidade, características que não podem ser afastadas em detrimento da Fazenda Pública apenas e tão-somente por não ter contestado o pedido deduzido na demanda, porquanto incide, na espécie, o teor normativo do artigo 320, II, do CPC, que assim dispõe: “A revelia não induz, contudo, o efeito mencionado no artigo antecedente: II – se o litígio versar sobre direitos indisponíveis”.
A rigor, mesmo quando revel a Fazenda Pública, deve o autor demonstrar ao juízo os fatos constitutivos de seu direito, providência sem a qual é inviável afastar a higidez que naturalmente emana dos atos públicos. A corroborar tais assertivas, veja-se a lição de Leonardo Carneiro da Cunha, in verbis:
“Como se sabe, ressuma como decorrência do princípio da prevalência do interesse coletivo frente ao individual e da indisponibilidade do interesse público a presunção de veracidade e legitimidade dos atos oriundos das autoridades administrativas. (....) de maneira que cabe ao autor, numa demanda proposta em face da Fazenda Pública, demonstrar, e comprovar, as alegações contidas em sua petição inicial. Não o fazendo, mediante a produção de qualquer prova se restará a consequência da improcedência” (Cunha, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 10. Ed. São Paulo: Dialética, 2012, pág. 99).
Dos julgados do Eg. Superior Tribunal de Justiça colho os seguintes acórdãos:
PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO CONFIGURADA. ISS. LISTA DE SERVIÇOS (DL 406/68). TAXATIVIDADE. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. POSSIBILIDADE. SERVIÇOS DE PRATICAGEM. PRECEDENTES DO STJ. EFEITOS DA REVELIAEM FACE DA FAZENDA PÚBLICA.ARTS. 319 E 320 DO CPC. 1. Os efeitos da revelia não se operam integralmente em face daFazenda Pública,posto indisponíveis os interesses em jogo, na forma do art. 320, II, do CPC. Precedentes do S.T.J: REsp 635.996/SP, DJ 17.12.2007 e REsp 541.239/DF, DJ 05.06.2006. (...) (EDcl no REsp 724111/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 12/02/2010).
PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. IPI. CRÉDITO-PRÊMIO. DECRETOS-LEIS NºS 491/69, 1.724/79, 1.722/79, 1.658/79 E 1.894/81. PRESCRIÇÃO QÜINQÜENAL.EXTINÇÃO DO BENEFÍCIO. (...) (4. Revelia em primeiro grau da Fazenda pública a qual, não obstante, não operou integralmente os seus efeitos, posto indisponíveis os interesses em jogo, na forma do art. 320, II, do CPC que assim dispõe: "Art. 320 - A revelia não induz, contudo, o efeito mencionado no artigo antecedente: II - se o litígio versar sobre direitos indisponíveis; (...) (REsp 541239/DF, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 05/06/2006).
Porém, casos há em que a Administração Pública não está no exercício de suas potestades decorrentes da supremacia do interesse público, já que se encontra em mesmo nível de igualdade com os particulares, hipóteses evidenciadas a partir da constatação de que Poder Público pratica atos privados, espécie de atos da Administração, bem assim celebra contratos atípicos, os quais também são regulados eminentemente pelo direito privado. A propósito, José dos Santos Carvalho Filho assim leciona:
“Na verdade, entre os atos da Administração se enquadram atos que não se caracterizam como propriamente como atos administrativos, como é o caso de atos privados da Administração. Exemplo: os contratos regidos pelo direito privado, como a compra e venda, a locação, etc (Carvalho Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22ª Ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2009, pág. 92). (...). A primeira das espécies dos contratos dessa categoria é a dos contratos privados da Administração, regulados pelo Direito Civil ou Empresarial. É evidente que, quando a Administração firma contratos regulados pelo direito privado, situa-se no mesmo plano jurídico que a outra parte, não se sendo atribuída qualquer vantagem especial que refuja às linhas do sistema contratual comum. Na verdade, considera-se que, nesse caso, a Administração age no seu ‘iusgestionis’, com o que sua atuação jurídica muito se aproxima da do particular” (Ibidem. Pág. 168).
Destarte, quando a lide versar sobre direitos disponíveis da Administração Pública, não há razão para se deixar de aplicaro artigo 319 do CPC, porquanto fica afastado o óbice a que alude o inciso II do artigo 320 do mesmo diploma legal.
De fato, se a controvérsia versar sobre atos privados ou mesmo contratos atípicos e a Fazenda Pública não apresentar, no prazo legal, a sua contestação, nada impede que se presuma verdadeira a narrativa contida na peça vestibular, salvante, frise-se, a presença, no caso concreto, das situações estabelecidas nos incisos I e III do retrocitado artigo 320 do CPC (“A revelia não induz, contudo, o efeito mencionado no artigo antecedente: I – se, havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação; (...); III – se a petição inicial não estiver acompanhada do instrumento público, que a lei considere indispensável à prova do ato”). Nesse mesmo sentido caminha o recente posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:
DIREITO CIVIL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA AJUIZADA EM FACE DE MUNICÍPIO. CONTRATO DE DIREITO PRIVADO (LOCAÇÃO DE EQUIPAMENTOS COM OPÇÃO DE COMPRA). AUSÊNCIA DE CONTESTAÇÃO. EFEITOS MATERIAIS DA REVELIA. POSSIBILIDADE. DIREITOS INDISPONÍVEIS. INEXISTÊNCIA. PROVA DA EXISTÊNCIA DA OBRIGAÇÃO. DOCUMENTAÇÃO EXIBIDA PELO AUTOR. PROVA DO PAGAMENTO. NÃO OCORRÊNCIA.ÔNUS QUE CABIA AO RÉU. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. CONCLUSÃO A QUE SE CHEGA INDEPENDENTEMENTE DA REVELIA. 1. Os efeitos materiais da revelia não são afastados quando, regularmente citado, deixa o Município de contestar o pedido do autor, sempre que não estiver em litígio contrato genuinamente administrativo, mas sim uma obrigação de direito privado firmada pela Administração Pública. 2. Não fosse por isso, muito embora tanto a sentença quanto o acórdão tenham feito alusão à regra da revelia para a solução do litígio, o fato é que nem seria necessário o apelo ao art. 319 do Código de Processo Civil. No caso, o magistrado sentenciante entendeu que, mediante a documentação apresentada pelo autor, a relação contratual e os valores estavam provados e que, pela ausência de contestação, a inadimplência do réu também. 3. A contestação é ônus processual cujo descumprimento acarreta diversas consequências, das quais a revelia é apenas uma delas. Na verdade, a ausência de contestação, para além de desencadear os efeitos materiais da revelia, interdita a possibilidade de o réu manifestar-se sobre o que a ele cabia ordinariamente, como a prova
dos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor (art. 333, inciso II, CPC), salvo aqueles relativos a direito superveniente, ou a respeito dos quais possa o juiz conhecer de ofício, ou, ainda, aqueles que, por expressa autorização legal, possam ser apresentados em qualquer tempo e Juízo (art. 303, CPC). 4. Nessa linha de raciocínio, há nítida diferença entre os efeitos materiais da revelia - que incidem sobre fatos alegados pelo autor cuja prova a ele mesmo competia - e a não alegação de fato cuja prova competia ao réu. Isso por uma razão singela: os efeitos materiais da revelia dispensam o autor da prova que lhe incumbia relativamente aos fatos constitutivos de seu direito, não dizendo respeito aos fatos modificativos, extintivos ou impeditivos do direito alegado, cujo ônus da prova pesa sobre o réu. Assim, no que concerne aos fatos cuja alegação era incumbência do réu, a ausência de contestação não conduz exatamente à revelia, mas à preclusão quanto à produção da prova que lhe competia relativamente a esses fatos. 5. A prova do pagamento é ônus do devedor, seja porque consubstancia fato extintivo do direito do autor (art. 333, inciso II, do CPC), seja em razão de comezinha regra de direito das obrigações, segundo a qual cabe ao devedor provar o pagamento, podendo até mesmo have recusa ao adimplemento da obrigação à falta de quitação oferecida pelo credor (arts. 319 e 320 do Código Civil de 2002). Doutrina. 6. Recurso especial não provido (REsp 1084745/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 30/11/2012).
Em arremate, se a relação jurío-processual envolver um direito indisponível de que seja titular a Fazenda Pública, realmente não se afigura possível, diante de sua revelia, presumir verdadeiros os fatos articulados pelo autor, mercê do conteúdo normativo previsto no artigo 320, II, do CPC. Ao revés, se a relação subjacente tiver contornos privatísticos, a revelia produz, tal e qual se dá em relação a um particular, o seu efeito material.
Bacharel em Direito pelo UniCeub. Especialista em Direito Tribuntário e Finanças Públicas pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Especialista em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios - FESMPDFT. Servidor do Superior Tribunal de Justiça - STJ.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINHEIRO, Igor Itapary. Os efeitos da revelia e a Fazenda Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 fev 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33952/os-efeitos-da-revelia-e-a-fazenda-publica. Acesso em: 25 nov 2024.
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Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
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