1. Introdução
O objetivo do presente artigo é promover uma análise da ação do Júri Popular dentro do Sistema Penal partindo de uma perspectiva criminológica crítica, isto é, analisando, diante de um sistema penal construído e direcionado para a reprodução das relações sociais de dominação e controlado pelos detentores do poder, a possibilidade da participação, apesar de restrita, de pessoas dos estratos inferiores no processo de julgamento criminal. Para melhor compreensão do tema proposto, é necessário, primeiramente, uma exposição dos principais pontos do atual paradigma criminológico, que servirão de pressupostos para o estudo proposto, bem como uma breve visão da evolução da instituição do júri.
2. Aspectos da Criminologia
A Criminologia nasceu como ciência sob o paradigma etiológico, resultado dos estudos da Antropologia Criminal e da Sociologia Criminal, que pregava como tarefa da criminologia a explicação causal das condutas criminosas, ou seja, buscava determinar, partindo de estudos empíricos com a população carcerária, motivos ou características comuns que levavam as pessoas a delinqüir[1]. Com tais estudos, eram traçadas certas características que determinavam se uma pessoa iria se tornar criminosa ou não. Assim, para a Escola Positivista, os criminosos eram pessoas pré- dispostas ao crime por suas características biológicas ou sociológicas, sendo, portanto, diferentes das pessoas “normais”. Poderia-se dividir, então, a população entre uma minoria composta por essas pessoas desviantes, que eram potencialmente perigosas, e a maioria da população, dita “normal”.
O resultado dos conceitos da Escola Positivista e também da Escola Clássica, que a antecedeu , foi a formulação e a difusão da ideologia da defesa social, que configura um conjunto de princípios adotados pela dogmática penal, constituindo “mais que um elemento técnico do sistema legislativo ou do dogmático, este conceito tem uma função justificante e racionalizante em relação àqueles”[2]. Esse conjunto de princípios, que serão a seguir descritos, é admitido por boa parte da sociedade e isso é fundamental para que o sistema penal vigente seja aceito pela população, já que o fato de grande parte da sociedade considerar tais princípios verdadeiros constitui um decisivo fator de legitimação do nosso sistema penal.
A ideologia da defesa social pode ser explicitada nos seguintes princípios: legitimidade, que significa que o Estado, por meio de suas agências de controle, é o ente legitimado para reprimir a criminalidade, representando a vontade da maioria da sociedade; princípio do bem e do mal, segundo o qual a sociedade é dividida entre os elementos desviantes (que representam o “mal”) e os normais (que representam o “bem”); princípio da igualdade, que prega que a lei e as sanções, bem como as atuações das agências de controle, são iguais para todos indistintamente; culpabilidade, significando que o desviante comete a conduta criminosa sabendo da sua reprovabilidade; princípio da finalidade, segundo o qual as penas têm uma finalidade, que é a retribuição e a prevenção do dano; e o princípio do delito natural, que defende a idéia de que os delitos são universais e pré- constituídos, sendo prejudiciais à sociedade.
As Escolas Sociológicas, surgidas principalmente na América do Norte, começaram a questionar alguns desses princípios, abrindo espaço para uma mudança paradigmática. O paradigma surgido foi o da reação social, que não vê mais o crime como algo dado, mas como um processo de construção pela reação da sociedade a determinada conduta. As condutas criminosas não são mais regidas pelo determinismo marcante da escola Positivista, mas pelo livre- arbítrio. O novo paradigma adotou uma visão dinâmica da sociedade e do crime, buscando estabelecer não mais causas, mas o processo de atribuição da qualidade criminosa a determinada conduta
De fato, constatou-se que as condutas desviantes não eram exclusividade de uma minoria da sociedade, pelo contrário, grande parte da sociedade comete condutas definidas como desviantes, mas nem todos são rotulados de criminosos. Os estudos sobre os crimes de colarinho branco e as cifras negras mostraram que, apesar de as cadeias serem formadas em sua quase totalidade por presos pertencentes aos estratos inferiores, grande parte da sociedade pratica crimes, mas nem todas essas práticas são perseguidas, havendo uma diferença entre a criminalidade real e a estatística.
Essa mudança de enfoque do estudo foi de grande relevância, já que as teorias anteriores (da Escola Positivista) usavam como base de suas pesquisas a população carcerária, não levando em consideração que o sistema penal já é voltado para punir de forma massificada a classe menos favorecida.
Os processos de definição e seleção sofrem grande influência das relações sociais de poder. Isso não significa que uma pessoa pertencente a um estrato social menos favorecido possua mais chances de delinqüir, mas ela tem, sim, maior probabilidade de vir a ser rotulada de criminosa. Enquanto as penas e a própria estigmatização das condutas típicas das classes mais baixas são punidas e perseguidas severamente, o processo de definição e a técnica de formulação dos tipos penais característicos das classes dominantes são protetivos e garantistas, descriminando condutas típicas e criando diversos mecanismos de imunização.
O processo de seleção e atribuição do status de criminosos a determinadas condutas e a apenas determinadas pessoas que praticam tais condutas pode ser formal ou informal. Este é aquele feito pela população em geral, valendo-se dos seus valores comuns e seus estereótipos para criminalizar determinadas condutas/sujeitos. Interessante notar que, mesmo observando sociedades diversas, tais padrões se repetem, de forma a sempre concentrar a criminalização nos estratos inferiores, assegurando a manutenção do status quo.
Em relação às agências formais de controle, pode-se dividir a criminalização em três etapas, denominadas criminalizações primária, secundária e terciária. A primeira delas está ligada à atividade legislativa, ou seja, à criação dos tipos penais. Nela, o legislador escolhe, refletindo o tipo de sociedade existente, as condutas que serão definidas como crime em detrimento de outras, bem como qual pena deverá ser aplicada para cada caso. Já nessa fase é possível observar a influência das relações de poder na definição das condutas criminosas. O legislador, membro da classe dominante, prefere definir como criminosas condutas que são normalmente praticadas por membros das classes desfavorecidas. Como afirma BARATTA,
“no que se refere ao direito penal abstrato (isto é, a criminalização primária), isto tem a ver com os conteúdos, mas também com os “não- conteúdos” da lei penal. O sistema de valores que neles se exprime reflete, predominantemente, o universo moral próprio de uma cultura burguesa- individualista, dando a máxima ênfase à proteção do patrimônio privado e orientado-se, predominantemente, para atingir as forma de desvio típicas dos grupos socialmente mais débeis e marginalizados.” [3]
Tal processo se vê tanto na definição abstrata das condutas criminosas como nas penas cominadas e também na definição das circunstâncias agravantes e atenuantes e na criação de mecanismos que imunizam as pessoas mais favorecidas que praticam algum crime.
Os agentes do sistema penal (Polícia, Ministério Público e Juiz) também não estão imunes a fatores externos ao direito penal que condicionam o processo de criminalização. Esse processo é chamado de criminalização secundária. Nessa fase, os processos de seleção são mais evidentes do que aqueles que aparecem na criminalização primária, afinal, o legislador tem que se esforçar para manter a aparência de igualdade de todos perante a lei, que, como mencionado, é um dos princípios fundamentais para a sustentação e aceitação do direito penal. O primeiro aspecto a ser observado nessa criminalização é que os membros do sistema penal são, em sua enorme maioria, devido à forma de ingresso nessas carreiras, oriundas das classes dominantes. Sendo assim, já trazem consigo um conjunto de valores e estereótipos próprios dessa classe e que coincidem com aqueles protegidos e difundidos pelo direito penal, e que não vão desaparecer em nome da imparcialidade, mas direcionarão e definirão todo o processo de atuação desses agentes.
A imparcialidade de tais agentes, mormente dos juízes, só pode se resumir à ausência de interesse no ganho de uma das partes, mas não é capaz de abranger o abandono de determinados valores e nem poderia ser diferente, já que se tratam de pessoas, revestidas de toda subjetividade típica dos seres humanos. Assim, todos esses agentes são imbuídos de um conjunto de valores e normas sociais que vão servir, juntamente com as normas jurídicas, e talvez de forma mais intensa do que estas, para guiar sua ação seletiva. Desse modo, a polícia não persegue e investiga de forma equânime os diversos crimes que chegam ao seu conhecimento. Nem o promotor e o juiz vão avaliar de forma igual crimes que, embora objetivamente iguais, tenham sido cometidos por pessoas diferentes.
“Nada mais errôneo supor (como faz a Dogmática Penal) que, detectando um comportamento delitivo, seu autor resultará automática e inevitavelmente etiquetado. Pois, entre a seleção abstrata, potencial e provisória operada pela lei penal e a seleção efetiva e definitiva operada pela instâncias de criminalização secundária, medeia um complexo e dinâmico processo de refração.”[4]
Todo esse processo de criminalização tem um efeito funil, ou seja, há um grande número de tipos penais abstratamente previstos, sendo muitos deles praticados pela maioria da sociedade. Desses desviantes, apenas alguns sofrem um controle social informal, sendo rotulados de criminosos. Dos crimes que a polícia toma conhecimento, apenas alguns são selecionados para serem investigados de forma mais contundente. Dos inquéritos instaurados, alguns vão ser arquivados e outros vão ingressar no Judiciário. Dos criminosos que são julgados, serão condenados, em grande maioria, aqueles pertencentes aos estratos mais baixos. Dos que são condenados, só chegam ao sistema penitenciário aqueles que se enquadram no estereótipo da pessoa que o sistema penal tem interesse em punir.
A chamada criminalização terciária, representada pelo sistema prisional, é a ponta desse sistema funil. O sistema carcerário tem uma clientela padrão, compostas por membros das classes mais baixas, que cometeram crimes contra o patrimônio . A questão que deve ser abordada é o poderoso efeito dessa forma de punição na identidade do desviante. Como expõe BARATTA:
“ A aplicação seletiva das sanções penais estigmatizantes, e especialmente o cárcere, é um momento superestrutural essencial para a manutenção da escala vertical da sociedade. Incidindo negativamente sobretudo no status social dos indivíduos pertencentes aos estratos sociais mais baixos, ele age de modo a impedir sua ascensão social. Em segundo lugar, e esta é uma das funções simbólicas da pena, a punição de certos comportamentos ilegais serve para cobrir um número mais amplo de comportamentos ilegais, que permanecem imunes ao processo de criminalização.” [5]
3. Evolução histórica do Júri
Para uma melhor compreensão do papel do Júri dentro da dogmática penal atual, é necessária uma breve consideração acerca da origem e do desenvolvimento de tal instituto, a fim de se evidenciar como o júri foi adquirindo os contornos desejados pelas classes dominantes. O júri, no formato atualmente existente no ordenamento jurídico brasileiro, foi criado na Inglaterra, como forma de abolição das ordálias, no século XII. O art. 48 da Magna Carta, editada em 1215, dispunha que “ninguém poderá ser detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e liberdade, senão em virtude de julgamento de seus pares, segundo as leis do país.”
Nessa época, os júris era normalmente compostos de vizinhos do acusado. Serviam, assim, levando em conta o contexto social da época, em que nobreza e monarquia buscavam um acordo, como uma forma de impedir que os membros da nobreza fossem julgados pelo arbítrio do rei. Já na França, frente à desconfiança que a burguesia possuía em relação aos juízes, membros da nobreza, o júri foi uma excelente forma de retirar o poder jurisdicional das mãos dos juízes, transferindo-o ao povo.
No Brasil, o júri foi criado por lei, sob forte influência inglesa, em 18 de junho de 1822, ou seja, antes mesmo da nossa independência, mas somente para julgar os crimes de liberdade de imprensa. A Constituição de 1824 ampliou a abrangência do Júri, atribuindo-lhe competência tanto no cível como no crime para decidir sobre os fatos, cabendo aos juízes a aplicação da lei. Em 1832, o Código de Processo Criminal do Império restringiu a possibilidade de ser jurado apenas àqueles cidadãos que pudessem ser eleitores, de bom senso e probidade. Como vigorava, na época, o voto censitário, ser jurado passou a ser um privilégio dos nobres. As revoltas do período regencial desembocaram na reforma processual de 1841. Tal reforma extinguiu o Júri de acusação, que fazia um juízo de admissibilidade da acusação e que, de uma forma ou de outra, tinha um conteúdo democrático. Os competentes para admitir ou não a acusação eram os juízes, nomeados pelo imperador, que também nomeava os delegados de polícia, responsáveis pela elaboração da lista de jurados. Tais alterações facilitaram as condenações que conviessem aos interesses da nobreza e do rei, já que concentraram todo o poder de julgamento nas mãos dos funcionários do rei e daqueles cidadãos de boa condição econômica (que podiam votar).
A Constituição de 1891 manteve o Júri, inserindo-o na seção da declaração dos direitos. A Constituição de 1934, apesar de manter a instituição do júri, inseriu-o na parte referente ao Poder Judiciário e não mais entre os direitos individuais. Na instalação da ditadura., em 1937, a omissão da Constituição acerca da manutenção do júri fez com que muitos acreditassem que a instituição havia sido extinta, até que, em 1938, foi promulgado o Decreto-lei nº 167, que regulava o júri, mas permitia que suas decisões fosse reformadas pelos tribunais. Como os tribunais eram controlados pelo Ditador (é claro que, atualmente, o Chefe do Executivo também exerce grande influência sobre os nossos tribunais), o júri popular, nesse momento histórico, perdeu muito sua soberania, já que os tribunais poderiam rever as decisões “injustas”, tendo o poder de inclusive absolver o réu condenado pelos jurados e vice-versa.
Com o Estado- Novo, o júri passou a ser composto de sete jurados, sendo vedada a comunicação entre eles. Para muitos, essa proibição de discussão entre os jurados representa uma forma de o governo controlar a difusão de idéias revolucionárias, já muito utilizado na História e tendo seu expoente no período inquisitorial. Conforme expões Paulo Rangel: “O silêncio dos jurados é uma censura imposta como a mais forte arma que os regimes totalitários utilizam, desde a Antigüidade, para impedir a propagação de idéias que podem pôr em dúvida a organização do Poder e o seu direito sobre a sociedade.”[6]
Com o fim da ditadura, o Júri recuperou a soberania dos seus veredictos na Constituição de 1946, que, além de voltar a inserir o júri na parte das garantias individuais, fixava o número ímpar de jurados e a competência mínima para os crimes dolosos contra a vida. Nesse momento, então, as decisões dos jurados não podiam mais ser alteradas pelo Tribunal de Apelação, só podendo ser revista pelos jurados, coincidindo com o período democrático em vigor. A Constituição de 1967, já após o Golpe Militar, manteve o júri e sua soberania. Evidente que essa soberania, na prática, não se verificou, já que incompatível com o regime militar de então. Com a reinstauração do regime democrático, com a Constituição de 1988, o Júri adquiriu novos contornos. Inserido no capítulo das garantias e direitos fundamentais, a Constituição assim dispõe:
“Art. 5º. XXXVIII. É reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;”
Observa-se, assim, que júri, nascido com pretensões democráticas e com o escopo de retirar das mãos do soberano o poder de julgar, acabou se tornando um instrumento de controle das classes mais altas (nobreza e burguesia) sobre o proletariado, que acabavam conseguindo direcionar os julgamentos para atingir seus objetivos. Os jurados, na maioria das épocas, eram indicados por autoridades estatais, tendo a lei sempre colocado critérios para a escolha dos jurados, como cidadãos de probidade, inteligência, bom senso, bons costumes, etc.. O atual Código de Processo Penal manteve a estrutura básica do júri então em vigor.
4. A participação dos jurados na criminalização secundária
Abordados alguns aspectos gerais da criminologia crítica e da evolução do júri, pode-se passar para a análise do objeto do presente trabalho que é a forma como essas pessoas se comportam no papel de julgadores, isto é, como participantes do sistema penal. É claro que, assim como os juízes, elas vão usar no julgamento todo aquele conjunto de normas morais que possuem. O que vai diferenciar o julgamento desses dois agentes do sistema penal é a possibilidade de haver uma identificação dos valores dos jurados com os do réu, o que dificilmente ocorre com o magistrado, já que, como visto, este, na quase totalidade das vezes, pertence às classes dominantes, ao contrário do réu, que, predominantemente, é oriundo dos estratos sociais mais inferiores, por todo aquele processo de seleção já exposto.
O sistema penal, como já abordado, é composto de vários procedimentos e rituais, que são necessários para a sua legitimação. A idéia de que há uma vinculação dos juízes à lei, ou seja, de que todas as suas decisões e ações seguem um modelo, um ritual pré- estabelecido em uma norma jurídica, apesar de falsa, frente às várias lacunas deixadas pela lei, gera uma impressão de que eles são as pessoas capazes e legítimas para julgar. Essa suposta vinculação é chamada por Jorge de Figueiredo Dias de ação pré- programada. O autor afirma que “é, de resto, esta concepção da acção jurisdicional como plenamente pré- programada que empresta à administração da justiça a sua legitimidade”[7]
Tal pensamento, enraigado pela ideologia da defesa social (princípio da legitimidade estatal), é indispensável à sua manutenção e faz com que muitos acreditem que os jurados, por não serem juízes togados vinculados à lei, não são legitimados, muito menos, capazes de julgar, o que contribui para o desprestígio dessa instituição, conforme se observa na opinião de alguns doutrinadores:
Cezare Lombroso, expoente da escola positivista, afirmava que “não há garantia alguma sobre a incorruptibilidade do jurado que, nada tendo a perder, nem sendo responsável pelo veredictum proferido, põe a justiça em leilão e vende a consciência ao acusado” [8]. Pinto da Rocha, em obra de 1919, afirmou que o júri “entrega a decisão de uma causa aos discípulos ignorantes, arrancando-a ao talento dos mestres”[9].
Frederico Marques afirmava que “o jurado não tem parcela alguma de mandato popular, pois não é escolhido pelo povo para o exercício de suas funções.” E ainda: “O que em verdade se critica na justiça togada, não é a sua conduta inflexível, mas, em última análise, o seu repúdio consciente à impunidade, que tão facilmente campeia nos tribunais populares.(...)Os júris e os tribunais de exceção constituem os pólos da justiça sem lei.” [10]
Vê-se, assim, que os jurados não vêm sendo vistos com bons olhos pela Dogmática Penal.
O universo do sistema penal é completamente estranho para a maioria dos réus, que, devido à parcialidade dos processos de seleção, são majoritamente pertencentes às classes mais desfavorecidas. É claro que esse desconhecimento influi no processo de seleção, prejudicando aqueles acusados provenientes das classes mais baixas e, por outro lado, favorecendo aqueles que têm mais intimidade com o discurso jurídico. Como Jorge de Figueiredo Dias[11] afirma, é indiscutível que os grupos sociais enfrentam os tribunais em condição de “insuperável desigualdade”.
Os tribunais fazem parte do mundo próprio daqueles membros das classes superiores, que vêem nos agentes de controle (juiz, promotor, etc.) pessoas do seu cotidiano, que freqüentam os mesmos bares, restaurantes, muitas vezes amigos ou vizinhos. Assim, todo esse simbolismo que permeia o sistema penal serve tanto para legitimar a atuação dos seus agentes de controle, como para desfavorecer a participação nesse processo de determinadas pessoas, selecionadas pelo direito penal.
O Júri é uma instituição cheia de rituais e símbolos, chegando quase a um teatro. O interessante no Júri é que ele traz a possibilidade de o réu ser julgado por pessoas para quem esse universo também é estranho. O Código de Processo Penal dispõe, no seu art. 436, que “o alistamento compreenderá os cidadãos maiores de 18 (dezoito) anos de notória idoneidade”. Vê-se, nessa qualidade exigida pela lei, uma forma de o juiz, que os escolhe, utilizar seus valores na escolha. Como afirma Lenio Luiz Streck, “ A noção de que seja um cidadão de notória idoneidade- pressuposto para alguém fazer parte do corpo de jurados- pode ser vista como uma definição persuasiva, que, sem dúvida, expressa as crenças valorativas e ideológicas do juiz que escolhe os jurados.” [12]
Apesar dessa restrição, há, na prática, em algumas cidades, a possibilidade de pessoas que fazem parte do cotidiano do réu integrarem o corpo de jurados. Claro que isso só se verifica em determinadas circunscrições. Em algumas cidades, os jurados são pessoas que moram onde o réu mora, muitas vezes possuindo o mesmo nível sócio- econômico do réu. É claro que a identificação desses jurados pode se dar de forma mais intensa, afinal, os jurados também foram criados numa cidade violenta, com todos as dificuldades da vida, ou seja, elas sabem que as oportunidades não são iguais para todos, passando, muitas vezes, pelas mesmas estigmatizações enfrentadas pelo réu.
Ocorre que essa possibilidade de pessoas pertencentes às classes sociais mais baixas participarem do júri, que nos parece o momento em que o júri adquire seu real aspecto democrático, é visto por muitos como algo temerário. Parece haver uma opinião geral dentro da classe dominante de que o júri deveria ser abolido, já que pode gerar decisões sem amparo legal. Na verdade, o medo dessa classe social é de que uma pessoa vista por ela como um grande mal à sociedade seja absolvida, gerando toda aquela indignação pela impunidade, que faz com que as pessoas queiram ver cada vez mais leis punitivas e cada vez mais pessoas sendo condenadas e presas, como se isso fosse a solução para a violência. É compreensível esta posição das pessoas, já que essa é a idéia vendida e mantida, não só pelo direito penal, mas por todas as leis, bem como pelas escolas e meios de comunicação.
O que causa estranheza é a opinião de determinados “operadores do direito”, como o exemplo a seguir, em que o autor afirma, em um artigo, que:
“a escolha dos jurados, cuja lista é feita periodicamente, deixa muito a desejar. Jurados sem um mínimo de preparo intelectual que lhes dê condições de compreender o que se debate e as conseqüências de sua decisão. Recentemente, num Júri em que atuei, deparei-me, na relação dos jurados que me fora fornecida, com a seguinte abreviatura da profissão de um deles: “emb.”. Procurando saber o que significava, um dos oficiais da sessão me informou tratar-se de um “embalador”, ou seja, empacotador, havendo um outro “aux. de emb.”, isto é, auxiliar de embalador.”[13]
Isso demonstra como algumas pessoas de determinadas classes sociais são vistas de forma discriminatória, devendo permanecer, nessa visão, marginalizadas e excluídas, não podendo ser erigidas à condição de julgadora, pois tal função deveria permanecer sendo monopólio da classe “preparada”, ou seja, a classe dominante. Contudo, a participação efetiva de pessoas de diferentes classes sociais no corpo de jurados não deve ser vista como a decadência do júri, mas, pelo contrário, como o apogeu dessa instituição.
Uma outra questão que merece atenção e preocupação é a força da dogmática penal na formação da convicção dos jurados. O que pode acontecer é que todo o jogo de oratória e ritualismo do júri, com todos os discursos de poder e dominação do sistema penal, tenham uma influência tão grande sobre os jurados que, apesar da existência de uma identificação de fato entre o réu e os jurados, esta identificação não se concretize no julgamento. A verificação prática da existência de tal obstáculo, entretanto, dependeria da realização de uma pesquisa empírica nos julgamentos em que o corpo de jurados seja composto de pessoas identificáveis com o réu, o que não é a pretensão do presente trabalho.
5. Considerações finais
Diante da atual dogmática penal, já exposta neste artigo, que direciona todas as instituições do sistema penal para seu objetivo oculto, qual seja, a manutenção da ordem social vigente, de forma marginalizadora e excludente, não se pode deixar que a única dessas instituições que não está completamente concentrada nas mãos da classe dominante se torne mais um instrumento de dominação. A despeito das incontáveis posições doutrinárias contrárias, é de fundamental importância a existência do júri pela possibilidade que ele traz da interferência das classes mais desfavorecidas no poder de julgar, até como forma de favorecer a inclusão social e cultural dessas pessoas.
A possibilidade de identificação entre o réu e os seus julgadores é o real sentido que o júri deveria alcançar, ou seja, o direito do réu de ser julgado pelos seus pares, no sentido fiel do termo e não como, muitas vezes, ocorre na prática, de haver um abismo sócio- cultural entre essas duas figuras do direito penal. Afinal, não haveria nenhuma diferença entre o julgamento de um juiz togado e o de um jurado da classe dominante, sendo que, neste caso, poderia ser até pior, já que esses jurados, além de serem imbuídos dos valores elitistas do sistema penal, que creem que pessoas como o réu representam um grande mal à sociedade e que precisam ser expurgadas da sociedade, não têm a mesma vinculação à lei que tem o juiz togado.
Vale lembrar a afirmação de Vera Regina Andrade, que, “pela sua origem, cultura e interesses, o juiz é um agente credenciado da classe dominante, na opressão das classes inferiores representadas no tribunal pelo delinqüente”[14] . Sendo assim, o júri não teria sentido se ele só pudesse ser composto de pessoas que vão exercer esse mesmo papel opressor. É necessário, como afirma Lenio Luiz Streck,[15] uma democratização do Júri na sua composição, a fim de deselitizar as listas de jurados, possibilitando a participação de todas as camadas sociais, e também nos seus aspectos estruturais, por meio de mudanças formais, que permitam uma melhor inserção e participação dos jurados no julgamento.
6. Bibliografia
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Livraria do Advogado. 2º edição, Porto Alegre, 2003.
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Ed. Revan. 3ª edição, Rio de Janeiro, 2002.
CASTRO, Kátia Duarte de. O Júri como instrumento do controle social. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre, 1999.
DELMANTO, Roberto. O descrédito do júri. IN: Consulex : revista jurídica, v.8, n.181, p.46-47, jul. 2004.
DIAS, Jorge de Figueiredo.Criminologia : o homem delinquente e a sociedade criminogena Jorge de Figueiredo Dias, Manuel da Costa Andrade. Coimbra : Coimbra Ed., 1997
MARQUES, José Frederico. A instituição do júri. Vol I. Editora Saraiva, São Paulo, 1963.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Ed. Lumen Juris. 8ª edição, Rio de Janeiro, 2004.
ROCHA, Pinto da. O Jury e a sua evolução. Editora Leite Ribeiro & Maurillo, Rio de Janeiro, 1919.
SOARES, Orlando. Causas da criminalidade e fatores criminógenos. Editora Científica. Rio de Janeiro, 1978.
STRECK, Lenio Luis. Tribunal do Júri: Símbolos & rituais. Livraria do Advogado. 2ª edição, Porto Alegra, 1994.
[1] O médico italiano Lombroso, em obra publicada em 1876, buscou a causa do crime no próprio criminoso, individualizando, nos criminosos, doenças e anomalias, sobretudo anatômicas e fisiológicas, que denunciavam o tipo antropológico delinqüente. Assim, para Lombroso, o atavismo, a loucura e a epilepsia eram causas da criminalidade, sendo seus possuidores criminosos natos. Já Ferri, sob uma perspectiva sociológica, adicionou como causa da criminalidade fatores sociológicos. ( VERA REGINA p. 65)
[2] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Ed. Revan. 3ª edição, Rio de Janeiro, 2002. P. 43.
[3] BARATTA, Op Cit. P. 176
[4] ANDRADE. Op. Cit. P. 260
[5] BARATTA. Op cit. P. 166
[6] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Ed. Lumen Juris. 8ª edição, Rio de Janeiro, 2004. p. 497
[7] DIAS, Jorge de Figueiredo.Criminologia : o homem delinquente e a sociedade criminogena / Jorge de Figueiredo Dias, Manuel da Costa Andrade. Coimbra : Coimbra Ed., 1997 p. 505
[8] LOMBROSO, Cezare. Citado em ROCHA, Pinto da. O Jury e a sua evolução. Editora Leite Ribeiro & Maurillo, Rio de Janeiro, 1919.p. 104.
[9] ROCHA, Pinto da. O Jury e a sua evolução. Editora Leite Ribeiro & Maurillo, Rio de Janeiro, 1919. p. 118
[10] MARQUES, José Frederico. A instituição do júri. Vol I. Editora Saraiva, São Paulo, 1963.pp. 6 e 88
[11] DIAS. Op. Cit.
[12] STRECK, Lenio Luis. Tribunal do Júri: Símbolos & rituais. Livraria do Advogado. 2ª edição, Porto Alegra, 1994.p. 138
[13] DELMANTO, Roberto. O descrédito do júri. IN: Consulex : revista jurídica, v.8, n.181, p.46-47, jul. 2004.
[14] ANDRADE. Op cit. P. 557
[15] Streck propõe, na sua obra Tribunal do Júri símbolos e rituais, alterações formais no procedimento do júri, entre elas, maior celeridade ao rito processual, a simplificação dos quesitos, julgamento sempre por maioria de votos, a abolição da sala secreta e extinção do recurso ex officio. (Streck, 1994)
Defensora Pública do Distrito Federal, lotada no Tribunal do Júri de Sobradinho/DF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CINTRA, Regina Andrade Barreto. O Tribunal do Júri no Sistema Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 mar 2013, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34051/o-tribunal-do-juri-no-sistema-penal. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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