O artigo 227 da Constituição Federal dispõe que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Pois bem, entrando estritamente no tema que pretendemos tratar, a grande indagação é saber se o direito de estar e de se desenvolver em uma família composta de ambos os progenitores é um direito subjetivo. Uma pessoa tem o direito de exigir que ambos os pais a crie? Que ambos os pais participem da formação de sua personalidade? Que ambos os pais acompanhem seu desenvolvimento? Se pensarmos materialmente, a resposta prontamente será positiva. Os pais possuem o dever de suprir as necessidades materiais que um filho necessita.
E se pensarmos subjetivamente? Os pais devem dar carinho, atenção, afeto? A resposta parece óbvia: sim. Mas esse afeto é um direito (e ao mesmo tempo um dever)? Se para esta última pergunta houver uma resposta afirmativa, então teremos a responsabilização civil.
Não obstante, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul entende pela impossibilidade de se indenizar monetariamente uma pessoa que nunca teve contato com um dos pais, por abandono voluntário deste. Segundo o Tribunal Gaúcho, a questão exige cuidado, uma vez que fixar indenização monetária em casos como o presente significaria fixar preço para o amor. Seria uma tarifação do afeto.
A questão também pode ser analisada sob outro ponto de vista, como fez o Superior Tribunal de Justiça. Vejamos trecho do voto da Min. Nancy Andrighi: “Sob esse aspecto, calha lançar luz sobre a crescente percepção do cuidado como valor jurídico apreciável e sua repercussão no âmbito da responsabilidade civil, pois, constituindo-se o cuidado fator curial à formação da personalidade do infante, deve ele ser alçado a um patamar de relevância que mostre o impacto que tem na higidez psicológica do futuro adulto. Nessa linha de pensamento, é possível se afirmar que tanto pela concepção, quanto pela adoção, os pais assumem obrigações jurídicas em relação à sua prole, que vão além daquelas chamadas necessarium vitae.”
Essa percepção do cuidado como tendo valor jurídico já foi, inclusive, incorporada em nosso ordenamento jurídico, não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.
Vê-se, hoje, nas normas constitucionais a máxima amplitude possível e, em paralelo, a cristalização do entendimento, no âmbito científico, do que já era empiricamente percebido: o cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente; ganha o debate contornos mais técnicos, pois não se discute mais a mensuração do intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar.
Negar ao cuidado o status de obrigação legal importa na vulneração da membrana constitucional de proteção ao menor e adolescente, cristalizada, na parte final do dispositivo citado: “(...) além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência (...)”.
E, realmente, parece-nos certa a posição adotada pela Ministra Nancy Andrighi. A psiquiatria definitivamente considera essencial para a formação da personalidade de uma pessoa o seu relacionamento familiar. No momento em que duas pessoas decidem conceber e criar um filho, existe a responsabilidade pelo descumprimento dos deveres que são inerentes desse fenômeno natural (concepção) ou civil (adoção), que também é um fenômeno jurídico.
Não é à toa que a Constituição Federal protege o direito da criança em ter uma família e o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 19) que toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família.
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